Para entender o trabalho de Tales Frey é necessário conhecê-lo. Nasceu no interior de São Paulo numa família de historiadores e artistas. O avô tocava violino, recitava poesia e foi preso durante a ditadura militar pelos livros de história “suspeitos” que tinha em casa, o pai foi professor de história e a mãe coreógrafa. Escolheu formar-se em artes cénicas. “O meu primeiro contacto com a arte foi através do teatro”, afirma o artista de 37 anos em entrevista ao Observador.

Ao trabalhar como ator percebeu que preferia estar nos bastidores do que no palco. Já no Rio de Janeiro, além de interpretar papéis, também dirigiu peças, foi figurinista e aderecista, mais “fascinado pelo processo de construção e não tanto pelo resultado final”.  O texto decorado e a postura corporal ensaiada ao detalhe, fizeram-no desenvolver “uma espécie de pânico de estar em palco”. Foi neste cenário que descobriu a performance. “Esse desespero e medo do fracasso não existe na performance. Nela há muito mais liberdade, posso falhar e errar, está tudo em aberto”.

Em 2006 Tales Frey aventurou-se nesse universo, “um mercado ainda restrito”, embora o que o mantivesse financeiramente no Rio era o teatro. Dois anos depois, em 2008, chegou ao Porto em plena crise nacional para fazer o mestrado em teoria e crítica da arte, na Faculdade de Belas Artes. A adaptação não foi fácil, obrigou-o a acalmar e a saborear melhor o tempo e, talvez, as pequenas coisas. “Quando finalmente me adaptei, percebi que tinha tempo para todas as coisas e mais qualidade de vida, mas não tinha expectativa de ficar.”

Durante um período de dois anos de estudo essencialmente teórico, Tales sentiu falta da prática. Com o currículo debaixo do braço, bateu a algumas portas para apresentar o seu trabalho, mas todas se fecharam e, então, decidiu fazer performance no espaço público.

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“A primeira foi em janeiro de 2009 na Rua dos Clérigos, chamava-se ‘O Outro Beijo no Asfalto’ e consistia num beijo de 30 minutos entre um homem e uma mulher vestidos de noivos de forma invertida no que diz respeito ao género”. Tudo aconteceu sem aviso prévio, em total espontaneidade, e as reações balançaram entre o espanto, a observação e a inquietação.

Até 2012, ano em que com o marido, Paulo da Mata, fundou a revista online Performatus, seguiram-se outras até que Daniel Pires, dono dos Maus Hábitos – Espaço de Intervenção Cultural, lhe deu a oportunidade de expor o que fazia dentro de portas. “Quem hoje vai as galerias e aos museus? Talvez a arte tenha que sair desses lugares para chegar às pessoas. Os Maus Hábitos é um bar e restaurante, não é a típica galeria de arte, isso também atrai outro tipo de público.”

“O Outro Beijo no Asfalto”, a primeira performance de Tales Frey no Porto, em janeiro de 2009

O corpo como expressão e a arte como contestação social

Tales Frey mostra o seu trabalho nos quatro cantos do mundo, usa o corpo como principal meio de expressão, “ele é veiculo da mensagem, mas é também matéria para a criar”. “Dentro das artes visuais estou num limbo, enquadro o meu trabalho como arte plástica em movimento e por vezes como escultura cinética”.

O artista brasileiro, que também integra um grupo de investigação sobre a performance e artes cénicas na Universidade do Minho, debate-se com questões sobre as minorias em diferentes contextos, mas considera não estar “tão militante” nas suas últimas criações, apesar de admitir que existe “sempre uma contestação social” inerente.

 

“A intenção é sempre colocar alguém a pensar sobre isso, mas hoje não forço essa leitura. Deixo menos evidente justamente para evidenciar a minha diferença. Eu percebia nos meus trabalhos que o meu oponente pode estar em convívio comigo, isso passou a interessar-me mais do que antes.”

Para Frey, a arte é transformadora, produz conhecimento e está a ficar cada vez politizada. “No contexto atual, onde o acesso a informação é muito maior, é inevitável, todo o mundo está politizado. Qualquer posicionamento ou não posicionamento já é entendido como política. Na mesa do café, no autocarro, no Facebook. A arte é reflexo da atualidade em que está inserida e por isso responde exatamente ao que vivemos”.

O Brasil dá o mote à performance onde os opostos podem conviver

“Adorno Político” foi a exposição que realizou há exatamente um ano nos Maus Hábitos, no Porto, onde se centrou em como as camadas externas das pessoas, “como a roupa ou a tatuagem” comunicam algo sobre elas, como se militam ou protegem através disso. “São as ditas minorias que hoje acabam por ser a maioria. Os negros no Brasil são chamados de minoria, por exemplo, mas mais de 60 ou 70% da população é negra”.

O que é ser negro, trans ou mulher no Brasil? Esta exposição procura respostas

“Aparelho surge como a continuação desse trabalho, motivado pelo atual contexto sociopolítico brasileiro. O nome faz referência aos grupos de ativistas que se formaram durante a ditadura militar (1964-1985) e se reuniam em lugares precários, “com camas suspensas por latas”, para discutir ideias, fazer arte ou encontrar o amor. Inspirado por estes aparelhos, Tales Frey reuniu 18 artistas brasileiros – Alice Yura, Arissana Pataxó, DUDX , Ed Marte, Grasiele Sousa a.k.a Cabelódroma, Helô Sanvoy, Letícia Maia, Marcela Tiboni, Marie Carangi, Maurício Ianês, Orlando Vieira Francisco, Panmela Castro, Paul Setubal, Paulo Aureliano da Mata, Pêdra Costa, Priscilla Davanzo, Sama e Yhuri Cruz – com diferentes abordagens que têm em comum o facto de se oporem ao atual governo brasileiro.

“Reuni artistas que, de algum modo, denunciem ou se posicionem contra essa atual necropolítica que combina fascismo e neoliberalismo. Estamos vivendo um momento em que o Estado se apresenta hostil às nossas existências.”

O curador destaca o trabalho “singelo, mas muito simbólico” de Marcela Tiboni que faz recortes de livros em forma de armas, impossibilitando a leitura, uma maneira de censura. “Mostra bem os discursos que existem no Brasil, por um lado a favor de mais investimento na educação e na cultura, e outro a favor das armas.”

Também o corpo feminino é tema desta exposição, onde Priscilla Davanzo mostra através de um vídeo a figura totalmente oposta à mulher casta, pura, delicada e “sem desejo” que é exigida socialmente. Já Helô Sanvoy explora o conceito de fake news e como elas “proporcionaram” a vitória de Jair Bolsonaro. Neste trabalho, o artista visual mostra como provocou um crime que nunca existiu.

“Ele embalou gesso em fita adesiva e plástico, criando blocos. Deixou 14 embalagens na Assembleia Legislativa de Goiânia durante uma madrugada e no dia seguinte começa a ser noticiada nos jornais e na televisão que foi encontrada cocaína”. Helô reuniu “todas as provas do crime”, impressões de jornais e comentários, e criou uma vídeo instalação.

O assassinato de Marielle Franco, as provas que desaparecem na investigação, a militância dos estudantes e os corpos que não se enquadram na sociedade são outros temas refletidos em filmes, documentários e performances. Já o coletivo MAAD – Mulheres, Artes, Arquitetura e Design parte da análise de alguns elementos da toponímia portuense e organiza uma caminhada que questiona sobre o quão representativo e inclusivo pode ser o espaço público.

“Não estou desesperado, estou só atento”

De três em três meses Tales Frey regressa ao Brasil, seja para trabalhar, visitar os amigos ou a família. Nunca perdeu o contacto, nunca ficou só pelas noticias. “Fico-me pela notícia e pela vivência.”

Apesar de ser um otimista assumido, garante que “o pior ainda está para vir”, prova disso é que no próximo ano ainda não tem trabalho agendado no seu país. “Acredito que as coisas estão a evoluir e o que está a acontecer é a reposta violenta a um avanço.”

Nómada, falador e de riso fácil, este brasileiro promete não deixar o Porto tão cedo e diz que até gosta da chuva e do frio. Independentemente do tempo que faz lá fora, a sua missão vai continuar. “O que faço é alertar para o facto da realidade brasileira possa ser aplicada noutros países. O que quero dizer é: ‘fiquem atentos, isto está a acontecer.’ Não estou desesperado, estou só atento.”

A exposição “Aparelho” é gratuita e acontece de 14 de novembro a 30 de dezembro nos Maus Hábitos – Espaço de Intervenção Cultural, no Porto.