Chegou a equacionar-se a hipótese de eletrificar as grades de ferro frente à Assembleia da República e instalar um sistema que “varresse” os manifestantes, caso conseguissem alcançar o topo da escadaria, mas nem perto das grades — reforçadas com betão no dia anterior — os elementos das forças de segurança chegaram. Afinal, dizem, a única coisa que há a temer é o enfraquecimento das forças de segurança e da capacidade de atuação das mesmas todos os dias.

“Devem achar que estamos completamente loucos. Nós sabemos que os agentes que estão do outro lado amanhã estarão sentados numa secretária ao nosso lado. Nunca iríamos ser violentos com os nossos, nem eles connosco“, dizem ao Observador alguns dos manifestantes, já bem no final de um longo dia de manifestação nas ruas da capital portuguesa.

(FILIPE AMORIM/OBSERVADOR)

Preferem não ser identificados porque, afinal, têm muito mais a reclamar para além da inércia dos governos nos últimos anos. “Há muito por saber, muita coisa que se passa e ninguém comenta. Os agentes têm medo e vão continuar em silêncio”, dizem. À primeira pergunta, fogem e acenam que não com a cabeça, não falam. Uns minutos depois, deixam sair algumas informações. Uns já viram muitos serem promovidos à sua frente por, alegadamente, se submeterem àquilo que são as indicações superiores sem questionar, sem comentar, “fazendo vénias”. Outros identificam-se porque, no limite, abandonaram a profissão de agente da PSP e saíram das forças de segurança portuguesas.

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É o caso de Hélder Gomes. Diz que não só a situação financeira se tornou insustentável, mas que o ambiente que vivia de “stress, exigência, desrespeito e desvalorização” diários o levaram a ponderar abandonar a carreira, o que acabou por fazer. Continua a juntar-se aos ex-colegas na reivindicação de melhores condições e afirma que as medidas de segurança adicionais que foram tomadas para a manifestação desta quinta-feira “só enfraquecem as forças de segurança no país”.

Hino cantado de costas para o Parlamento e críticas a Marcelo

Com a concentração agendada para as 13h00 na rotunda do Marquês de Pombal, os manifestantes foram chegando a longos espaços, para compor uma moldura humana de milhares de agentes que haveria de subir rumo ao Largo do Rato e descer até à Assembleia da República. E não houve na cidade — pelo menos naquela zona da cidade — quem não desse pela passagem dos manifestantes. O ruído dos apitos era ensurdecedor e assomavam-se às janelas algumas pessoas para os aplaudir. Entre gritos de união “A polícia unida, jamais será vencida” ou gritos de “Portugal, Portugal”, ecoava o nome do movimento que os reuniu ali (ainda que a manifestação tenha sido convocada pelos sindicatos, porque o movimento não pode requerer a realização de manifestações) “Zero, zero!”. A grande maioria dos manifestantes envergava t-shirts do movimento e mesmo os que vestiam t-shirts dos vários sindicatos acabavam por confessar que também fazem parte do Movimento Zero.

O momento mais emotivo do dia terá sido, talvez, quando seis utentes do lar de idosos Casa das Hortênsias, ali bem perto do Marquês de Pombal, exibiram cartazes a agradecer aos agentes o trabalho diário que fazem. “Um trabalho de proximidade de excelência”, dizem ao Observador.

(FILIPE AMORIM/OBSERVADOR)

Uns metros mais à frente e a emotividade dava lugar à contestação — afinal, estavam a passar na frente da sede do Partido Socialista e havia uma mensagem a gritar. Viraram costas ao edifício e cantaram o hino nacional, o mesmo que, 20 minutos depois, fariam em frente à Assembleia da República. Ao som do hino nacional, alguns manifestantes deixavam escapar algumas lágrimas, explicando-se rapidamente com o orgulho em servir o país enquanto agente da PSP.

Sobre as medidas de segurança junto à Assembleia da República, ainda mais radicais do que as que eram visíveis, que chegaram a ser equacionadas, é um “Chefe” que, horas mais tarde, fala ao Observador. Garante que, a nível nacional, quem está na coordenação pensou em medidas que “não lembram a ninguém” e acrescenta que “só se fossem loucos” é que faria algum sentido. Queriam eletrificar as grades de ferro e, no cimo da escadaria, instalar um sistema que “varresse os manifestantes” caso conseguissem lá chegar lá, diz ao Observador. E faz ainda uma denúncia: durante o dia, o número de manifestantes só não foi maior porque, à hora do protesto, houve chefes a colocar os agentes durante horas em formatura. “E não foi só um, nem dois, foram vários, houve várias esquadras em que isso aconteceu”, garante.

(FILIPE AMORIM/OBSERVADOR)

Além do caderno de reivindicações, que não têm esperança de conseguir ver atendido até dia 21 de janeiro — data em que ficou pré-agendada nova manifestação —, denunciam aquilo que consideram ser “o quadro mais negro”. Garantem que os comandantes não sabem gerir os recursos humanos de que dispõem e dizem que os cargos de diretores nacionais são nomeações do governo para poder manipular a PSP e que servem “de catapulta para outros voos”. Não se sentem representados, sublinham, e isso “aumenta ainda mais o descontentamento”.

E nem Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente da República com elevada popularidade junto dos eleitores, escapa ao descontentamento das forças de segurança. Recordando os acontecimentos no Bairro da Jamaica, os agentes frisam que, sempre que há algum incidente, a opinião pública fica do lado do infrator e não do agente. “As imagens divulgadas normalmente só mostram o final, ninguém imagina a violência com que somos recebidos muitas vezes”, dizem. E, nessa perspetiva, o Presidente da República não ajudou quando, no dia seguinte à divulgação pública dos vídeos do alegado uso excessivo da força pela PSP, se dirigiu ao bairro para estar com a população.

Eu não mando os meus homens para situações desse género. No final, sim, para ir recolher os feridos, mas já não corro o risco de perder homens em confrontos”, diz um dos agentes em jeito de aviso para a desproteção que os homens no terreno sentem.

As dificuldades em voltar às localidades de onde são originários são outro dos problemas. Há quem seja de Leiria, de Viseu, do Porto, e têm uma lista de espera de transferência de 10 ou 15 anos pela frente — alguns chegarão à pré-reforma (aos 60 anos) antes disso. São também porta-vozes de quem sofre com os valores de arrendamento praticados em Lisboa. “Somos sempre colocados em Lisboa quando acabamos o curso, a ganhar 700 ou 800 euros e a pagar 500 por um quarto, torna-se impossível”, dizem.

António foi detido nos “Secos e Molhados”. Agora, 30 anos depois, viu Ventura a discursar em frente à Assembleia

A homenagem simbólica à manifestação dos “Secos e Molhados” já estava programada antes de começarem a caminhar, às 15h00, no Marquês de Pombal, mas nem todos sabiam disso. António Ramos tem hoje 63 anos e tinha 33 quando integrou a comitiva de seis agentes da PSP que entraram no Ministério, no Terreiro do Paço, para entregar um manifesto para a criação de sindicatos da polícia (e que acabaram detidos). A manifestação haveria de correr as manchetes dos jornais internacionais por ter polícias contra polícias, ambos fardados (algo que agora é proibido), quando os polícias de serviço utilizaram canhões de água para dispersar os colegas que se manifestavam.

Esta quinta-feira, António Ramos fez todo o percurso entre o Marquês de Pombal e a Assembleia da República, na frente dos manifestantes, e depois rumou também ao Terreiro do Paço, sem saber que muitos dos seus colegas tinham nas mochilas centenas de velas para acender em homenagem aos colegas que 30 anos antes já lutavam pelos seus direitos. “Continuamos a lutar e algumas coisas ainda são as mesmas, as condições agora estão pior que em 1989”, diz António Ramos, há três anos na pré-reforma.

Recorda que em 1989 “bastava ter havido um tiro e tinha sido uma tragédia” e que esta quinta-feira tudo decorreu com muita tranquilidade. António Ramos viu a receção que os colegas de profissão tiveram quando o deputado do Chega, André Ventura, chegou junto dos manifestantes, na frente da Assembleia da República, mas é mais crítico que a maioria que ovacionou o deputado único do partido e o levou quase em ombros até à carrinha que improvisava um palco onde haveria de discursar. O momento acabaria por motivar críticas dos sindicatos, que sublinharam que Ventura quis falar, mas não recebeu qualquer convite para isso, e que o discurso foi “um erro” porque o deputado “utilizou uma manifestação que é apartidária”.

(FILIPE AMORIM/OBSERVADOR)

“O que faz agora o [André] Ventura, fazia o Portas: fala”, diz António Ramos. O ex-dirigente sindical aponta que é necessário mais que falar — aquilo que vários partidos fizeram durante a tarde ao enviar deputados à manifestação. Dos momentos vividos ao longo do dia e da postura dos manifestantes ao longo do dia, destaca a calma. Na frente da escadaria as grades reforçadas com betão não serviram para mais do que “envergonhar” já que os manifestantes nem lhes tocaram. Alguns dos sindicalistas fizeram um cordão humano na frente da manifestação para que fosse deixado um corredor simbólico entre os manifestantes e as grades, atrás das quais figuravam elementos do corpo de intervenção — que iam cumprimentando os colegas do lado de lá, com sinais de grande cumplicidade.

No Terreiro do Paço, à volta de algumas velas estiveram umas dezenas de manifestantes mais resistentes. Estão pouco crentes que “alguma coisa se resolva” em dois meses e prometem voltar às ruas a 21 de janeiro.

Governo é “de diálogo”, mas desmente algumas queixas

O que fizeram esta quinta-feira não chegou, pelo menos, para que o governo cedesse de imediato às reivindicações. Em conferência de imprensa, ao início da noite, o ministro da Administração Interna destacava “o sindicalismo responsável” que viu na manifestação, lembrava as medidas que o governo pôs em vigor nos últimos anos, como o desbloqueamento das carreiras e a lei de programação de investimentos, mas era pouco concreto em relação às reivindicações concretas de hoje, mantendo apenas a promessa de empenho no diálogo.

E no que diz respeito à alegada falta de material, que levará polícias e militares a comprarem algemas ou coletes à prova de bala com o próprio dinheiro, Eduardo Cabrita quis mesmo deixar um desmentido claro:

Queria dizer com toda a transparência que equipamentos de proteção individual, como coletes balísticos, existem, são entregues às forças de segurança, que gerem em termos operacionais a que profissionais devem ser fornecidos em cada momento. E que todos os polícias e militares da GNR em atividade operacional têm algemas atribuídas e, portanto, é esse o quadro de fornecimento desse tipo de equipamentos pelas forças de segurança que não pode ser desmentido, independentemente de serem apresentadas aquisições particulares que, obviamente, desconheço o seu fundamento e a sua necessidade.”

Um desmentido direto às denúncias que têm sido feitas nas redes sociais, mas também a André Ventura que, no parlamento, mostrou faturas de alegadas compras de material, feitas pelos próprios agentes.