O bispo das Forças Armadas, D. Rui Valério, considera que o ataque contra a sede do grupo humorístico brasileiro Porta dos Fundos por parte de um grupo fundamentalista na sequência de um filme de Natal que retrata Jesus Cristo como homossexual representa “o fracasso do diálogo”. Em entrevista à Rádio Observador no programa Direto ao Assunto na manhã desta segunda-feira, o bispo português lamentou a “reação violenta” ao especial de Natal intitulado “A Primeira Tentação de Cristo” — e, embora classifique o filme como “de mau gosto“, lembrou que as críticas à figura de Jesus não são uma novidade e têm de ser tomadas “na sua justa medida e com justos critérios”.

Bispo das Forças Armadas não gostou do filme, ms condena ataque violento à sede da Porta dos Fundos

Assumindo que ainda não viu o filme, distribuído pela Netflix, D. Rui Valério comentou com base nos “ecos” que lhe têm chegado. “Em primeiro lugar, se foi uma crítica relativamente à figura de Jesus, em que se pôs a ridículo a figura de Jesus, nada de novo debaixo do Sol. Já os Evangelhos atestam que no seu tempo era acusado de tudo e de mais alguma coisa. Era amigo dos publicanos, foi acusado de se embriagar, de ser amigo de mulheres de má vida”, afirmou o bispo. “Agora, aquela associação com pessoas concretas, que é os homossexuais, penso que foi um bocadinho de mau gosto. Deveria haver uma delicadeza por parte de quem fez.”

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A obra foi muito criticada pela ala mais conservadora da sociedade brasileira. Na noite de Natal, a sede da produtora foi atacada com cocktails Molotov, num ataque depois reivindicado por um grupo integralista (que defende um Estado baseado na doutrina cristã). “Isso é o fracasso do diálogo e é do diálogo que nós obtemos a verdade e a justiça. Essa reação violenta que foi ali perpretada, é evidente que aquilo não tem justificação nenhuma. Todas estas coisas são para ser tomadas na sua justa medida e com justos critérios. É uma obra de arte, no entanto constato que a própria sociedade brasileira ainda não respeita muito nem Jesus Cristo nem se calhar os homossexuais”, considera D. Rui Valério.

Edifício da produtora da Porta dos Fundos alvo de ataque no Rio de Janeiro com cocktails molotov

Abusos sexuais são “uma situação que nos envergonha”

Numa retrospetiva sobre o ano de 2019 para a Igreja Católica, o bispo das Forças Armadas assinalou a resposta do Papa Francisco à crise dos abusos sexuais — em fevereiro, realizou-se no Vaticano uma cimeira inédita com perto de duzentos líderes católicos de todo o mundo para discutir o assunto, da qual saíram novas regras sobre a forma como os bispos devem investigar casos de abuso.

“É uma situação que nos envergonha, e a mim particularmente, por todas as razões e por mais uma. Desde o momento em que eu sei que a Igreja, os homens e as mulheres da Igreja, existem exatamente para suavizar, para responder, para ajudar o ser humano na esperança da sua vida, para os auxiliar, para reduzir o sofrimento, quando me é dito que a Igreja é a causa de sofrimento de alguém, isso é uma vergonha que me entristece e me deixa vermelho”, afirmou D. Rui Valério.

O que vão mesmo fazer os bispos portugueses para acabar com os abusos sexuais na Igreja?

Sobre a recente decisão do Papa Francisco de acabar com a imposição do segredo pontifício — o mais elevado nível de confidencialidade nos documentos da Santa Sé — às investigações de abuso sexual, D. Rui Valério considera que “ela vem fundamentalmente revelar o quanto a Igreja está seriamente empenhada em acabar com essa situação e com essa circunstância”. “É um grito que a Igreja lança à sociedade civil, aos seus mecanismos de justiça nomeadamente, para ajudar aquelas pessoas que praticando estes atos precisam de ser ajudadas. Pela justiça, pelo acompanhamento psicológico”, disse o bispo.

A obrigação da Igreja Católica deve ser a “de promover esforços e iniciativas e ação para, primeiro, acabar com a situação, e depois ajudar a pessoa que precisa de ser ajudada, que é tanto a pessoa abusada como o abusador”, considera o bispo das Forças Armadas. “Esse problema resulta na circunstância de duas pessoas que precisam de ser ajudadas.”

Igreja tem de fazer “reflexão interna” sobre celibato

D. Rui Valério falou também sobre outro acontecimento que marcou 2019 para a Igreja Católica, o Sínodo da Amazónia, do qual saiu a sugestão de permitir a ordenação sacerdotal de homens casados para fazer face à falta de padres naquela região. “O Sínodo da Amazónia teve esse tema sobre a mesa (…). Mas, pelo amor de Deus, a Amazónia é muito mais que isso! É o problema do que nós estamos a fazer ao planeta”, considerou o bispo, salientando que o “estilo de vida burguês” do ser humano, “que não quer abdicar daquilo que prejudicou o planeta”, está no centro das preocupações da Igreja.

Padres casados, mulheres mais presentes — e uma estátua roubada. O que fica da reunião que pode mudar a Igreja Católica?

“O Papa Francisco tem uma perspetiva da chamada ecologia integral, onde o bem-estar do planeta tem de ser correspondido com um bem-estar do ser humano enquanto tal. Quando ele verifica que na Amazónia há comunidades que são cristãs, que têm uma identidade cristã, mas que estão privadas, por exemplo, da Eucaristia — e a Eucaristia é central e fulcral numa perspetiva de vida cristã — ele quer vir também ao encontro dessa carência, dando às pessoas a possibilidade de terem acesso aos sacramentos com a presença de sacerdotes. É uma resposta”, considerou.

No entanto, o bispo evita tirar a partir da Amazónia conclusões universais — nomeadamente sobre o fim do celibato em toda a Igreja. “Precisamos de encarnar o contexto amazónico para poder referir-nos a esse problema e a essa questão”, sublinhou, lembrando que o celibato, no contexto católico, é o “testemunho de uma disponibilidade de coração e efetiva para Deus e para o mundo“. Se deve ser ou não obrigatório, considera D. Rui Valério, “é uma questão para a própria Igreja, começando por uma reflexão interna que tem de realizar”, respondendo simultaneamente aos “requisitos que garantam a plenitude da disponibilidade” e aos apelos dos “novos tempos”.

Mulheres que lideram comunidades cristãs “dão-nos um exemplo maravilhoso”

Também em cima da mesa no Sínodo da Amazónia esteve a possibilidade de atribuir à mulher um papel de autoridade e tomada de decisão dentro da Igreja Católica — cujo clero está atualmente reservado aos homens. Para D. Rui Valério, “o Cristianismo, ao contrário do que as pessoas possam eventualmente pensar, foi pioneiro na concessão de importância à mulher”.

“Ao longo da história, a mulher tem tido um papel capital. Nos primeiros séculos da Igreja, até ao século III, século IV, havia mulheres que tinham o sacramento do diaconado. Eu gostava de que isso pudesse voltar a acontecer“, afirmou o bispo. O Papa Francisco criou em 2016 uma comissão científica para estudar o papel das mulheres diaconisas no início da Igreja Católica e, este ano, na sequência do Sínodo da Amazónia, essa comissão deverá ser reativada e prosseguir os estudos.

“Hoje em dia há muitas comunidades que são dirigidas por mulheres, muito embora a elas ainda não se faculte o sacramento do sacerdócio. Mas a realidade é que muitas comunidades são garantidas e são presididas por mulheres, fazem celebrações da palavra, dão-nos um exemplo maravilhoso”, sublinhou o bispo. “Estamos em caminho. A meta cada vez mais se aproxima e eu estou confiante de que provavelmente a reflexão dentro do seio da Igreja vai continuar.”

“Justiça e reconhecimento” para os ex-combatentes

Responsável pelo acompanhamento espiritual das forças armadas e de segurança em Portugal, D. Rui Valério, explicou que o acompanhamento dos militares tem em conta “o tecido da sua existência, os seus problemas, os seus desafios, as suas esperanças, as suas expectativas” — e lembrou que esta é uma realidade que vem desde o início de Portugal. “Já o D. Afonso Henriques e os seus soldados eram ajudados e coadjuvados pela presença de sacerdotes. O São Teotónio, por exemplo, foi um dos principais conselheiros de D. Afonso Henriques”, lembrou.

Hoje, mais do que o acompanhamento no campo de batalha, está em causa o apoio espiritual aos militares e membros das forças de segurança que prestam serviço nos vários contextos. Por isso, D. Rui Valério elogia a criação de uma secretaria de Estado com a incumbência dos antigos combatentes do Ultramar. “A sociedade portuguesa de hoje está finalmente serena para olhar para essa realidade com eficácia, com ciência, com racionalidade. A justiça tem-se vindo a realizar ao longo dos tempos.”

São pessoas que deram tudo à sua pátria, e o mínimo que agora nós podemos pedir é que a pátria olhe para eles com um sentido de justiça e de reconhecimento“, considerou.