Depois de os Estados Unidos terem matado o general Qassem Soleimani, um dos principais líderes militares iranianos, o líder do Irão, Ali Khamenei, assegurou que a vingança contra a América seria “implacável“. Quatro dias depois, o Irão bombardeou duas bases militares iraquianas que albergam tropas norte-americanas. Sem mortos, o ataque foi interpretado como uma oportunidade para os EUA reduzirem a tensão na região em vez de avançarem para uma guerra que muitos viam como inevitável.

Donald Trump percebeu as pistas e anunciou, num discurso aguardado com expectativa, que não iria prolongar o conflito militar — optando por responder com novas sanções económicas. A resposta norte-americana resultou de um dia de trabalho intenso na Casa Branca, que começou com os alertas para a possível retaliação iraniana a qualquer momento e terminou já na manhã seguinte com a preparação, até ao último segundo, do discurso perfeito para evitar a guerra — reconstituído esta quinta-feira pela imprensa norte-americana com detalhes dignos dos melhores filmes de espiões de Hollywood.

Os EUA já sabiam que o Irão iria retaliar pela morte do general Qassem Soleimani. Depois de, nos primeiros dias, se ter discutido todo o tipo de possibilidades que o regime iraniano tinha para vingar a morte do líder militar (como ciberataques ou até uma guerra nuclear), a resposta acabou por ser mais contida — e os EUA souberam exatamente o que ia acontecer, quando e onde. Primeiro, de forma ainda genérica, o Irão avisou o Iraque sobre os locais do ataque, informação essa que foi passada depois às autoridades norte-americanas.

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Segundo conta o The New York Times, por volta das 14h de terça-feira (19h em Lisboa), chegou à Casa Branca um alerta das agências de informações norte-americanas: estava iminente um ataque iraniano a bases dos EUA no Iraque. Durante aquela tarde, chegariam várias informações, ainda vagas, oriundas das comunicações iranianas intercetadas pela Agência de Segurança Nacional (NSA) e das movimentações de armamento iraniano registadas pelos satélites norte-americanos. Uma das informações apontava inclusivamente para a possibilidade de o Irão retaliar através de um ataque terrestre, levado a cabo pela milícia pró-iraniana Kataib Hezbollah, contra a base de al-Asad — uma das mais vulneráveis dos EUA na região por não estar equipada com sistema anti-míssil.

Porém, dado que as informações não eram ainda concretas — e uma vez que as forças norte-americanas no terreno já estavam avisadas para a possibilidade do ataque e tinham ordem para evacuar a base e se abrigar —, a agenda de Donald Trump foi mantida. Naquele dia, o presidente dos EUA encontrou-se com o primeiro-ministro da Grécia, Kyriakos Mitsotakis, ao mesmo tempo que na sala de crise da Casa Branca já se encontravam alguns dos principais líderes militares dos EUA a monitorizar a situação. No fim do encontro com Mitsotakis, o tema dominou as perguntas dos jornalistas. “Se o Irão fizer alguma coisa que não devia fazer, vai sofrer as consequências“, avisou Trump.

Foi precisamente durante o encontro com o governante grego que chegou à sala de crise a confirmação: a retaliação seria um ataque com mísseis. O vice-presidente dos EUA, Mike Pence, já estava na sala, bem como o secretário de Estado, Mike Pompeo, e o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Mark Milley. Trump juntou-se ao grupo assim que terminou a reunião com Mitsotakis — e dali não sairiam tão cedo. Numa mesa lateral, dezenas de sandes asseguravam que ninguém precisaria de sair para comer. Por videoconferência, juntou-se a diretora da CIA, Gina Haspel.

Ao mesmo tempo, durante a reunião na sala de crise, chegou um alerta: tinha havido um bombardeamento num campo de treino a norte de Bagdade. Porém, foi falso alarme. A verdadeira retaliação iraniana chegaria uma hora depois, quando já eram 17h30 em Washington (22h30 em Lisboa). O Irão tinha disparado, a partir de três lugares do seu território, uma série de mísseis Fateh 110 e Shahab. A primeira análise a partir do Pentágono era de que os danos tinham sido limitados: um helicóptero, um drone, parte de uma torre de controlo e várias tendas tinham sido destruídos. Alguns minutos depois, caíram os mísseis na base aérea de Erbil, outro dos locais identificados à partida como potencial alvo.

Segundo a CNN, a primeira reação dentro da sala de crise da Casa Branca foi de surpresa. Porque teriam os iranianos disparado tão poucos mísseis — têm milhares daqueles — e todos para zonas das bases militares onde não se encontravam militares? Sobretudo, como notou um dos presentes na reunião, o Irão não tem histórico de falhar os alvos. O exemplo do ataque às refinarias de petróleo sauditas indicava isso mesmo: se o Irão quisesse, podia ter matado muitos americanos e causado muito mais danos às instalações militares. A surpresa deu lugar à calma — detalha a CNN, citando fontes presentes na reunião — quando os líderes norte-americanos começaram a equacionar que o Irão estaria mais interessado em enviar uma mensagem aos EUA, não em matar americanos.

https://observador.pt/2020/01/07/irao-lanca-misseis-a-bases-dos-eua-no-iraque/

Em menos de uma hora, foi necessário informar todos os líderes políticos de mais alto nível que não se encontravam naquela sala, nomeadamente os líderes das bancadas da Câmara dos Representantes e do Senado. Os republicanos (líder da maioria no Senado e da minoria na Câmara dos Representantes) foram informados diretamente por Donald Trump. Os democratas — a presidente da Câmara dos Representantes Nancy Pelosi e o líder da minoria no Senado, Chuck Schumer — foram informados pelo vice-presidente, Mike Pence. De acordo com a CNN, Nancy Pelosi estava numa reunião com membros do Partido Democrata a debater a situação no Irão quando lhe foi entregue uma nota em papel dando conta dos ataques. “Rezemos“, disse aos presentes na reunião.

Logo após o ataque, o Pentágono tentou contactar o primeiro-ministro iraquiano, Adil Abdul al-Mahdi, para debater o que tinha acabado de acontecer. Porém, detalha a CNN, não teve sucesso através do número de telefone do gabinete de al-Mahdi — até porque, entretanto, já eram 3h da manhã em Bagdade. Foi através do embaixador iraquiano em Washington que foi possível chegar à fala com o governante do Iraque. De imediato, Trump anunciou aos seus conselheiros que queria falar à nação. Tinha sido criticado por não ter falado imediatamente após a morte de Soleimani e não queria cometer o mesmo erro. Jared Kushner, genro de Trump e conselheiro da Casa Branca, foi um dos principais impulsionadores da necessidade de preparar imediatamente um discurso.

A decisão tomada na sala de crise foi a de que Trump não falaria de imediato. Era preciso esperar por mais informações que confirmassem a intenção do Irão com o ataque contido. Durante toda a noite de terça para quarta-feira, a equipa da Casa Branca escreveu dezenas de versões do discurso e estudou diversas possibilidades de reação ao ataque. Durante a noite, chegaram informações cruciais que viriam a pesar na decisão do presidente norte-americano: através de canais diplomáticos (incluindo pela Suíça), o Irão tinha feito chegar aos EUA a informação de que aquela tinha sido a única resposta à morte de Soleimani. Paralelamente, o relatório final do Pentágono — que chegou já pela 1h da manhã (6h em Lisboa) — confirmou que ninguém tinha morrido no ataque.

Na manhã de quarta-feira, Trump, que já tinha dito que preferia evitar uma escalada de tensão no Médio Oriente, optou pelas sanções económicas. Donald Trump pegou nas notas preparadas pelos conselheiros e editou-as ao seu gosto. O discurso foi escrito com tanta cautela, e editado por tanta gente, que levou mesmo a um atraso de meia hora relativamente ao momento para o qual estava marcado.