Pão de ló
O pão de ló é um bolo muito simples que, apesar do nome, não contém “ló” entre os seus ingredientes. Leva ovos, açúcar e farinha, uma receita tão simples e fácil que o torna omnipresente – é a base sobre a qual se constroem os bolos de aniversário e a primeira pedra na edificação de um bolo de noiva.
É preciso dar-lhe valor: o pão de ló está em todos os momentos importantes da nossa vida. Mesmo que clandestinamente, coberto por um manto espesso de massapão ou disfarçado de campo de futebol e enfeitado com velas.
Esta espécie de esponja comestível tem, no entanto, alguns problemas de identidade. É altamente influenciável pelos ingredientes que lhe acrescentam (massa de pão de ló + laranja = bolo de laranja; massa de pão de ló + iogurte = bolo de iogurte). Será o pão de ló o tofu dos bolos?
Paradoxalmente, é um bolo genérico com várias interpretações regionais. É igual em todo o lado, mas também é o bolo típico de Arouca, Alfeizerão, Ovar e Margaride. Uma pequena alteração nos ingredientes ou método de cozedura é suficiente para transformar uma receita banal na estrela de uma paróquia.
A vida não deve ser fácil para o pão de ló, que ainda por cima nem sequer é pão e não se sabe ao certo de onde vem o apelido “ló”. Uns dizem que é uma derivação de “Lot”, nome do confeiteiro alemão que o inventou. Outros garantem que o “ló” do nome se refere a um tecido fino com que os bolos eram cobertos antigamente.
Com um passado destes, não admira que este bolo tenha tantos problemas de afirmação pessoal.
Bolo de arroz
É o bolo mais simpático de toda a pastelaria portuguesa. Porquê? Porque é o único que se apresenta. No meio das vitrines apinhadas de doçaria amarela, há apenas um elemento com o nome enfaixado à sua volta – parece um bolo no seu primeiro dia de escola.
“Olá turma, eu sou o Bolo de Arroz.” Mesmo o cidadão menos familiarizado com os cambiantes da nossa pastelaria pode pedir este bolo pelo nome, sem ter de recorrer ao dedo indicador e à frase “quero aquele ali”.
É também o bolo com o nome menos imaginativo de todos. No meio de russos, parras, quindins, babás, garibaldis e jesuítas, há um bolo, feito com farinha de arroz, a que decidiram chamar “bolo de arroz”. Imaginem que a mesma pessoa que batizou o bolo de arroz ficava responsável por dar nomes a outras coisas. Uma lâmpada seria um “frasco de luz”, um relógio um “disco de horas” e uma ovelha um “bicho de lã”.
Ideia: chamar-lhe “O Chanfrado” e dizer que a faixa que o envolve é um colete de forças.
Faz sentido. A grande parte dos bolos de arroz que vemos hoje em dia têm pouca ou nenhuma farinha de arroz. São impostores feitos a partir de massa de queque, enfiados dentro de um corpete de papel, assumindo a identidade de um ícone da nossa pastelaria. Podem apresentar-se como bolo de arroz, mas são uma versão de karaoke manhosa de um dos nossos bolos favoritos.
Guardanapo
O guardanapo tem a particularidade de nos permitir chegar a um café e dizer: “Queria um guardanapo e um guardanapo.” É claro que nenhum empregado vai achar piada a isto, mas nós ficamos satisfeitos por termos pedido duas coisas diferentes utilizando apenas uma palavra.
Este bolo, parte fundamental do cânone das pastelarias e cafés nacionais, é nada mais nada menos que uma torta 2D. Uma versão plana do famoso bolo cilíndrico. O consumidor mais afoito, arrependido por ter pedido um guardanapo e apercebendo-se de que prefere uma torta, pode facilmente resolver o problema sem ter de chamar o garçon: abre o guardanapo, transforma o triângulo em quadrado e enrola-o com as pontas dos dedos. Adeus guardanapo, olá torta.
Esta forma geométrica fofa, recheada de creme de pasteleiro, tem uma receita simples que podemos tentar fazer em casa. Mas ninguém quer fazer um guardanapo em casa. É um bolo que só faz sentido num café, servido num prato e acompanhado por um um daqueles garfos pequenos de pastelaria.
O açúcar polvilhado por cima dá alguma crocância a este bolo esponjoso, mas cai-nos pelos queixos abaixo e salpica para o colo. É por isso que convém pedir um guardanapo quando se pede um guardanapo.
Pastel de nata
Tornou-se recentemente um símbolo patusco das exportações portuguesas. Um sucesso assinalado sempre por uma daquelas reportagens ligeiras no final do Telejornal. E nós ficamos todos contentes porque os alemães, os americanos e os japoneses estão a aprender uma coisa que nós sabemos há anos: os pastéis de nata são deliciosos.
Os lisboetas têm o hábito de estragar a festa, alegando que uns pastéis muito parecidos feitos ali para os lados de Belém são muito melhores. Se calhar até têm razão, mas o melhor da Fábrica dos Pastéis de Belém não são os bolos – é a tolerância. Ali, qualquer pessoa pode comer dois ou três pastéis de seguida e ser vista como um gourmet encantado com uma iguaria rara. Se fizermos o mesmo em qualquer outro lado, somos assinalados como pré-diabéticos e assistidos por um nutricionista chamado de urgência ao local.
O pastel de nata é uma atração turística comestível, um monumento que se visita mexendo os maxilares em vez das pernas. É estaladiço por fora, cremoso por dentro e deve comer-se quente. O ritual inclui ainda a aspersão de canela e açúcar em pó, mas aceitam-se abordagens menos ortodoxas – incluindo a desconstrução manual levada a cabo por todas as pessoas que comem primeiro o creme com a ajuda de uma colher de café e em seguida atiram-se à massa folhada. É chocante? É. Mas se queremos que o pastel de nata seja do mundo inteiro temos de estar abertos a todas as interpretações.
Travesseiro
Esta almofada de doce de ovo e amêndoa tem uma das massas folhadas mais problemáticas da nossa pastelaria. À primeira dentada, aquela complexa estrutura de farinha e margarina desmorona-se e cai sobre nós um enxame de migalhas. Talvez por isso o consumo responsável do travesseiro exija uma pequena coreografia: a mão direita leva o travesseiro à boca enquanto a esquerda se segura aberta por baixo do queixo por forma a conter as migalhas. Mas o motivo pelo qual nos submetemos a este exigente processo de degustação é só um: o creme. Uma mistura de ovos, açúcar e amêndoa que consegue conter em si pelo menos dois pecados mortais.
Ficamos na dúvida se estes bolos se chamam travesseiros porque se parecem com uma almofada comprida ou porque “travesseiro” é um substantivo derivado da palavra “travesso”.
Este bolo é um ex libris de Sintra, uma especialidade criada pela centenária Casa Piriquita. Existem travesseiros noutras pastelarias da vila e noutros pontos do país, mas só os bolos comprados na fonte, no seu sítio de origem, contêm aquele travo doce das coisas genuínas.
Sim, há sempre fila. Mas faz parte da experiência aguardar entre os turistas – todas as pessoas com um ar semi envergonhado, como se estivessem na sala de espera para uma orgia. Os mais atrevidos comem o travesseiro logo ali, à frente de toda a gente. Mas as pessoas mais recatadas pedem a caixinha e afastam-se discretamente antes de enfiar o travesseiro na fronha.
Artigo publicado originalmente na revista Observador Lifestyle 5 – Especial Comida (setembro de 2019).