A matéria está longe de ser uma novidade para as dezenas de marcas e empresas portuguesas fabricantes de calçado. Com um contributo de 1.300 milhões de euros para a balança comercial portuguesa, o setor propõe-se agora a tornar-se, até 2030, líder mundial no desenvolvimento de soluções sustentáveis. Apresentado em dezembro do ano passado, o Plano de Ação do Cluster do Calçado para a Sustentabilidade estará dividido em três eixos (Planeta, Pessoas e Empresas) e será composto por cerca de 50 ações.
“O calçado é muitas vezes apontado como um exemplo de sustentabilidade ao nível da economia portuguesa. Do ponto de vista do desenvolvimento de tecnologias de ponta, é já líder mundial, o objetivo passa agora por ser igualmente uma referência no que se refere ao ambiente e à responsabilidade social”, explica Paulo Gonçalves, diretor da APICCAPS (Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos), ao Observador.
Entre os objetivos para a década que agora começa estão o desenvolvimento da gestão circular de resíduos e produtos, o aumento da eficiência energética das empresas, a redução de emissões de gases com efeito de estufa e o trabalho para deixar a indústria mais próxima da neutralidade carbónica, meta que Portugal quer atingir em 2050, mas também a melhoria das condições de trabalho, num setor que emprega aproximadamente 40.000 pessoas.
Levado a cabo pela APICCAPS e pelo Centro Tecnológico do Calçado de Portugal (CTCP) e ainda sem um orçamento fechado, o referido plano vai envolver a formação do maior consórcio que alguma vez existiu no setor industrial português. Dele farão parte mais de 80 entidades, entre fabricantes, universidades — a do Minho e a de Aveiro estão incluídas, e organismos científicos e tecnológicos. Em conjunto, vão trabalhar, entre outras frentes, no desenvolvimento de novos materiais que permitam diminuir a pegada ambiental da indústria.
No âmbito da eficiência energética, outra das frentes do plano, as ações estão prestes a arrancar, nomeadamente a realização de auditorias energéticas a algumas fábricas. As prioridades sociais não ficam de fora. Um dos pontos diz respeito à criação de creches nas maiores unidades fabris, a grande maioria situada no norte do país. “Um programa destes, estruturado, com tantas medidas e envolvendo um leque de parceiros tão alargado e com tantas competências não existe, tanto quanto sabemos, em Portugal”, continua Paulo Gonçalves, que assinala ainda o facto de este ser um plano integralmente português.
Incluída nesta promoção da sustentabilidade está a defesa do uso de peles naturais na produção de calçado, como aproveitamento de um recurso que é excedente da indústria alimentar. Sobre este ponto, a APICCAPS alega ainda a durabilidade do produto, que chega a ser o triplo quando comparada com a de outros materiais, bem como a utilização frequente de matérias sintéticas e poluentes, provenientes de plásticos, em composições alternativas. Atualmente, as peles utilizadas pelo setor têm proveniência europeia — Espanha e Itália –, embora também haja matéria-prima a chegar do Brasil e do Paquistão. A estratégia de valorização do uso de pele no calçado e acessórios poderá ainda passar pela rastreabilidade deste recurso, permitindo ao consumidor final saber a origem e as fases pelas quais o material passou.
MICAM: uma montra de boas práticas em português
A decorrer até à próxima quarta-feira, em Milão, a MICAM é uma montra dos avanços da indústria portuguesa de calçado na área da sustentabilidade, com mais de 70 empresas nacionais a marcarem presença naquela que é a maior feira do mundo neste setor. O esforço e o engenho saltam à vista. “Wasteless Act” é o nome da nova linha da Lemon Jelly. No expositor, a marca traz o novo produto ecológico para a linha da frente. As botas são feitas maioritariamente a partir de sobras da linha de produção, reduzindo em 90% as emissões de dióxido de carbono. No caso das solas e do revestimento superior, os materiais utilizados são desperdícios de fábrica reciclados. Componentes como o forro e as palminhas são feitos com garrafas de plástico recicladas.
Noutro Pavilhão, encontramos a Softwaves. Embora não tenha deixado de produzir sapatos em pele, esta marca sediada em São João da Madeira começou, no ano passado, a procurar alternativas sem ter de recorrer a componentes extra poluentes. Entre as primeiras soluções encontradas estão folhas de árvores, em particular espécies crescimento rápido como a orelha de elefante, e materiais derivados da biomassa, cuja transformação permite produzir solas e palmilhas.
Na Lineapelle, outra feira milanesa, as soluções não são menos criativas. Em Felgueiras, a ISI Soles anunciou este mês o desenvolvimento de solas de calçado a partir de bolas de ténis. Segundo a APICCAPS, são fabricados em todo o mundo 300 milhões de bolas de ténis por ano. A vida destes objetos é curta e a decomposição lenta. A empresa está agora a reciclá-los — as bolas são trituradas num moinho, misturadas com restos de rolhas de cortiça e termoplástico. Os primeiros sapatos com estas solas já estão em produção.
A vaga de calçado vegano também bate à porta da indústria nacional. Outro dos exemplos é a Zouri, marca que no final de 2018 começou a produzir solas com resíduos de plásticos retirados do mar, em particular de praias portuguesas. Cada par equivale a seis garrafas de plástico resgatas aos oceanos. A marca tem já alcançou fama internacional, sobretudo quando apareceu nos pés de Alan Cumming e de Cindy Sherman.
A liderança no que toca à sustentabilidade não é a única meta da indústria portuguesa de calçado para 2030. Tal foi anunciado em outubro do ano passado, a Comissão Europeia quer atrair 400 mil novos trabalhadores para os setores têxtil, de vestuário, de calçado e de curtumes, num esforço de revitalizar estas áreas.
O Observador viajou para Milão a convite da APPICAPS.