Nem otimista, nem excessivamente pessimista. O Presidente, que já tinha prometido aos portugueses, há 15 dias, que “nesta guerra, ninguém mente nem vai mentir a ninguém”, fez um ar solene, em direto nas televisões à hora do jantar e em menos de 12 minutos admitiu que o caminho é duro (e não poupou na carga deste choque de realidade), mas também definiu um calendário para chegar à luz ao fundo do túnel. Marcelo diz que é essencial não recuar, agora que já se passou a primeira de quatro etapas até ao regresso à normalidade. Foi emocional nos elogios, mas prático na divisão de tarefas, ao impor um caderno de encargos que todos, sem exceção, têm de cumprir. Pela televisão, pré-condecorou os heróis anónimos da crise, desde os médicos milagreiros aos autarcas dedicados. E não resistiu a deixar um recado aos que dele duvidavam, como quem diz, “eu tinha razão”.

[Reveja aqui a mensagem do Presidente da República:]

Os avisos. Primeiro o escuro, depois a luz

“O caminho é longuíssimo e exigentíssimo”

Começamos com a passagem mais dura do discurso presidencial. Marcelo não tenta dourar a pílula de um presente e de um futuro imediato que vão ser inevitavelmente dolorosos e tenta dar conta da dimensão do problema ao situar este como “o nosso maior desafio dos últimos 45 anos”. Ou seja, não dá espaço a comparações com os anos negros da troika e diz que nunca em democracia o país viveu tal coisa. Não só porque não se conhece a origem ou a forma como se comporta este vírus que “atinge, concentradamente, vida e saúde, sem paralelo”, mas também porque é um problema que afeta o mundo ao mesmo tempo: “É universal e o adversário é insidioso e imprevisível”.

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E mantendo o mesmo tom cru, antecipa as consequências que hão-de estar aí à porta com “efeitos sociais e económicos” que serão “mais profundos e duradouros do que as crises mais longas que já vivemos”.O país que se prepare: “A pobreza dos mais pobres, as desigualdades dos mais desiguais, as exclusões dos mais excluídos”, vão ser “brutalmente” agravadas.

E pode haver quem tente aproveitar-se disso. No decreto presidencial, que renova o estado de emergência, o Presidente da República adicionou alguns artigos que não constavam do documento original. Entre eles, a possibilidade de limitar os despedimentos. E será precisamente a quem tente aproveitar-se da crise para práticas ilegais, por exemplo na relação laboral, que Marcelo se refere quando diz que estes tempos vão “exigir reforçada atenção e punição daqueles que queiram aproveitar-se da crise para atividades criminosas contra os valores da Constituição”.

O quadro, já se percebeu, é negro. Marcelo admite que nestes 15 dias vamos ver “dezenas de milhares” de infetados e que isso “vai custar”. Admite também que esta “tem sido e continuará a ser uma mudança radical de vida” e que ainda temos “mais umas semanas” pela frente. Mas é um esforço necessário porque este mês crucial de abril, que o primeiro-ministro já disse ser “o mais difícil”, só será ganho “se não facilitarmos, se não condescendermos, se não baixarmos a guarda”.

E aqui, o Presidente da República alinha com o Governo, que está particularmente preocupado com as viagens da Páscoa, e alerta: “Outras experiências mostraram que visitas à terra e à família podem custar explosões entre os trinta e os cinquenta dias de surto”.

E se não é habitual ouvir Marcelo a deprimir o país neste tom dramático (e isso só por si dá conta da gravidade do problema), há também uma inevitável lanterna a brilhar no fundo do texto: “O que importa é sabermos que o número de testes está a aumentar – e bem – e isso significa detetar mais infetados, que a maioria deles não é grave, e, sobretudo, que o que vai fazer a diferença é a percentagem de crescimento diário”. Mais, para que ninguém desista: “Uma percentagem a descer é o surto a quebrar e a aproximar-se da viragem irreversível”. E se tudo isto é duro, “o que importa é sabermos que essa mudança pode valer muitas dezenas de milhares de vidas salvas”.

É um dever perante os que “sofreram ou ainda sofrem com a pandemia e para os que nela morreram, sós e sem despedida, e para suas famílias”. E é uma missão: “Vencer o maior desafio da vida de todos nós”.

As fases. Primeira cruz num calendário de quatro folhas ao fundo do túnel

“A vida e a saúde exigem que a economia e a sociedade não parem. Dentro do combate da saúde há, desde logo, quatro fases”

Mesmo que não diga quando é a tal luz ao fundo do túnel de que António Costa fala, Marcelo Rebelo de Sousa quis dar um calendário aos portugueses até chegar a essa luz, como se houvesse quatro quadradinhos para riscar e já pudessem pôr a cruz no primeiro. A primeira fase, já passou. Esse primeiro momento, explicou o Presidente, foi evitar que o “número de  contaminados atingisse níveis excecionalmente elevados”, que levasse à “rutura do sistema” sem tempo para preparar a resposta. Conseguiu manter-se o planalto em vez de uma curva a pique.

A segunda fase é de abril e em que o objetivo é manter a “desaceleração do surto”, que se fará mantendo a “maioria esmagadora dos infetados em casa” e continuar a gerir e tentar controlar o número de pessoas que têm de recorrer a  cuidados intensivos. A duração desta fase, avisa Marcelo (em mais uma motivação) será mais rápida se houver sucesso nos objetivos.

Aí, chega-se então à terceira fase, em que a curva começa a cair, ainda com muitos doentes em “internamente grave e crítico”, mas abrindo caminho para a “descompressão possível”. Aqui dá um sinal que alguns serviços podem começar a reabrir, de forma mais recatada, antes de tudo acabar. Depois disso, virá então a quarta fase, com o surto controlado, embora ainda a contabilizar mortes que vinham de situações que se arrastarão das semanas difíceis. E aqui, antecipa Marcelo sem se comprometer com datas, será “uma fase de progressiva estabilização da vida coletiva”.

Os objetivos. Ou como a Páscoa pode deitar tudo a perder

“Este é o nosso principal caderno de encargos para os próximos quinze dias”

Depois de estabelecer as fases do ataque à pandemia, Marcelo concentra-se nos objetivos para o país. E aqui volta a alinhar-se com as prioridades do Governo. Idosos e reclusos são duas comunidades de alto risco, o novo decreto presidencial já previa novas medidas ali direcionadas e são precisamente esse os dois primeiros objetivos traçados pelo Presidente.
“Proteger reforçadamente os grupos de maior risco, onde quer que vivam, ou se encontrem, em suas casas, em nossas casas, nos lares, em residências sociais ou, na rua, sem teto”. Os sem abrigo têm feito parte da agenda presidencial e são das populações mais desprotegidas nesta pandemia.

Para que o trabalho seja bem sucedido, Marcelo defende que sejam ou continuem a ser recrutados “estudantes, trabalhadores em lay-off, Forças Armadas e de segurança, bombeiros”. Até porque, diz, “desta frente pode depender, decisivamente, o sucesso na segunda fase e o passarmos mais depressa ou mais devagar à terceira”.

Quanto aos reclusos, o segundo objetivo, o Presidente claramente já ouviu as vozes que se fazem ouvir contra a libertação de presos (como a de André ventura) e lembra que a “abertura da renovação do estado de emergência para prevenir situações críticas de saúde pública nos estabelecimentos prisionais”, será usada “com bom senso e rigoroso critério”,  e por todos: Assembleia da República, Governo e poder judicial e o próprio Presidente da República pelo “poder constitucional de indulto”.

O aviso que já tinha ficado para trás, é retomado nesta série de objetivos, tal é o receio que os responsáveis políticos têm com as férias da Páscoa: “Não troquemos uns anos na vida e na saúde de todos, por uns dias de férias ou reencontro familiar alargado de alguns”. Mesmo que já haja vontade de ceder à “lassidão, cansaço, ansiedade”. Por isso, Marcelo dá respaldo às medidas temporárias mas mais duras do Governo, como o fecho dos aeroportos ou o confinamento no concelho de residência.

E pede, tal como o Governo tem feito várias vezes, “aos nossos compatriotas, que, de fora, quiserem vir, que entendam as restrições severas que cá dentro adotaremos para a Páscoa e repensem, adiando os seus planos, como todos nós adiamos os nossos, a pensar na Pátria comum”.

Finalmente, uma palavra para os estudantes que estão num limbo desde que as escolas e universidades foram encerradas. Sem se saber quanto tempo vai durar esta situação, Marcelo pede que se definam “os vários cenários para o ano letivo, em calendário, ensino e avaliação”. Faz parte da “exigente missão nacional” do Governo, e o Presidente lembra que no dia 9 de abril, o primeiro-ministro tomará uma decisão e comunicá-la-á ao país.

Os elogios. Médicos da casa fazem “milagres” (mas não são os únicos)

“Profissionais da saúde continuam a fazer milagres”

O Presidente da República diz que “os portugueses perceberam” a importância da resposta ao surto e, por isso, “decidiram abraçar a luta comum.” E não poupou nos elogios aos que estão na linha da frente: “Os profissionais da saúde continuam a fazer milagres.” Deixou uma palavra também para Forças Armadas e de segurança, bombeiros e Proteção Civil que “não descansam”, para os voluntários do setor social que ” desmultiplicam-se”, empresas que se readaptam “para produzir o que mais falta”.

A esses, acrescenta, juntam-se os “cientistas trabalham em novos testes, fármacos e vacinas em grupos internacionais”, os professores mudam métodos de ensino, mas também os agricultores que garantem os “alimentos essenciais” para o quotidiano dos portugueses.

Não esqueceu também os “operários” que produzem para aquela que é uma “exportação possível”, bem os camionistas que garantem o transporte de bens essenciais, os hoteleiros que alojam evacuados de lares ou profissionais de saúde longe das famílias, mas também aos comerciantes de estabelecimentos encerrados que apoiam obras sociais. E deixou ainda um palavra para os autarcas que percorrem municípios e juntas de freguesia.

Marcelo Rebelo fez assim uma espécie de condecoração coletiva aos “heróis anónimos”, começando pelos médicos, mas não esquecendo ninguém que na cadeia dos que mantêm o país a funcionar, ainda que a meio-gás.

A palmadinha nas costas. “Eu tinha razão”

“Hoje quase todos compreendem bem”

E por falar em elogios, para o final, ficou a assinatura de Marcelo Rebelo de Sousa. O Presidente já tinha dado sinais de que estava atento às críticas, quando falou ao país há duas semanas, para explicar a então inédita declaração do estado de emergência. Nessa altura reconheceu que havia portugueses que “estão divididos” e que acreditavam ser “dispensável, prematuro ou perigoso” tomar aquela decisão que punha a própria capacidade política do Presidente em jogo. Entre os que tinham dúvidas estava o primeiro-ministro António Costa, que não deixou de tornar pública essa sua hesitação.

Ora, com números que mostram que a famosa curva da pandemia não atingiu até agora um dramático crescimento exponencial em Portugal (que podia fazer colapsar o SNS), Marcelo não evita uma palmada nas próprias costas e garante “que hoje quase todos compreendem bem por que tinha de ser declarado quando foi”, o estado de emergência “preventivo”. Era para ajudar “a ganhar a segunda fase do combate pela vida e pela saúde, abreviando o começo da reconstrução económica e social de Portugal”.