O palco continua a ser o mesmo: o Instagram, o Twitter e derivados, mas se até aqui a dor de cotovelo e angústia eram sobretudo provocadas pelas imagens de viagens de sonho, agora o foco de ansiedade parece ser outro. Com o mundo em peso refugiado dentro de quatro paredes, medem-se metros quadrados e acima de tudo avalia-se o fosso, agora mais gritante do que nunca, entre as condições de vida de seguidores e seguidos. Escusado será dizer que há quem já tenha deixado a sentença e compilado alguns dos melhores e mais libertadores memes sobre os dramas dos afortunados que pertencem 1% da população mundial: “as celebridades estão mais enervantes do que nunca”.

Famosos isolados em mansões de sonho quando mal se consegue mexer no seu T1? Influencers “retidos” em ilhas paradisíacas enquanto oferecia um dedo por uma simples varanda? Aulas de cozinha com ingredientes de nicho quando já se dá por contente se encontrar feijão frade no supermercado? Quem pode, pode, é certo. Mas deveria fazê-lo de uma forma tão ostensiva por estes dias? Um “Imagine coletivo” é suficiente para apaziguar clivagens? Ou melhor, um “Imagine no possessions” entoado por vários milionários é uma piada que se faz sozinha?

São perguntas que a mais recente tendência nas redes vai suscitando, com a economia de palavras tipicamente anglosaxónica a resolver a lacuna: smugsolation é o novo termo para o dicionário urbano dos tempos que correm. Em resumo, trata-se de sambar na cara de amigos, inimigos e demais internautas com o relato de uma quarentena de luxo — por mais que as palavras dos privilegiados emanem solidariedade e compreensão. “Estamos todos no mesmo barco”. Sim, mas imagine que o dizem a partir do respetivo iate numa altura em que a própria capacidade de isolamento não está sequer ao alcance de todos? Ou de um colchão numa piscina? #jealous pode ser um dos comentários. Bingo.

O Instagram de Natasha Oakley

Terá sido mais ou menos esse o deslize de uma bem intencionada Madonna, que acabou por ter mais do que uma inofensiva leitura — de tal forma que o post partilhado no Twitter a 22 de março já nem por lá se encontra. “O bom da Covid-19 é que não interessa quão rico és, quão famoso és, quão divertido és, quão inteligente és, onde vives, que idade tens, que histórias incríveis podes partilhar”, escrevia a rainha da Pop, acrescentado ainda que a pandemia é “o grande equalizador”. Quase tudo verdade, não fosse a imagem que acompanhava o texto. Madonna surgia numa banheira com pétalas de rosa, um momento de pura indulgência a larga distância da realidade de milhões. “Uma celebridade é, por definição, alguém cuja carreira depende da familiaridade”, sintetizava em 2012, a GQ. O problema é que vivemos tempos de exceção e até já se conversou sobre isso aqui.

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O tweet de Madonna

Mencionámos o Instagram e o Twitter? Falta adicionar à lista o fenómeno Tik Tok, um dos novos palcos das caras bem conhecidas do público e não só, onde se garante o acesso à intimidade das estrelas à lupa. Foi assim que num abrir e fechar de olhos os fãs de Jennifer Lopez conseguiram encontrar vários pontos de contacto entre a mansão onde a cantora tem estado isolada e a casa da família Park, o clã do oscarizado filme “Parasitas”.

E se acha que JLo está sozinha nestas bizarras semelhanças com a premiada longa-metragem, pense duas vezes. A luta de classes instalou-se em definitivo nos comentários das redes e há quem ande a descobrir que várias estrelas frequentam habitats muito parecidos aos da abastada família. Os níveis de popularidade da fita voltam a ser confirmados quando Kylie Jenner, a bilionária da maquilhagem, pede sugestões no campo de cinema. Lá está “Parasitas” a medir forças com “Great Expectations”, opinião de Kourtney Kardashian.

O Instagram Kylie Jenner

Com Hollywood de portas fechadas, mais surreal ainda é uma procura que se fez sentir pelo menos até meados do mês de março. “É tão inacreditável como parece, mas é verdade. Parece que estão nas férias do Natal”, descrevia ao TMZ o cirurgião plástico Terry Dubrow, co apresentador de “Botched”. Sim, com as produções em modo de pausa, algumas celebridades do ecrã têm aproveitado para fazer plásticas. “Temos recebidos chamadas, sobretudo de Beverly Hills…porque Beverly Hills está encerrada, mas aqui em Orange County ainda estamos a funcionar.Procuram fazer intervenções mais profundas enquanto estão nesta espera entre filmes”, acrescentou, contando ainda como tentou levar os potenciais clientes a optar por intervenções mais ligeiras, como o recurso ao botox.

As “reservas do apocalipse”

Uns dias depois da publicação de Madonna, chegava a notícia de que um hotel suíço estava a apostar em pacotes específicos para a quarentena. Por um intervalo de preços entre os 800 e os 2.000 dólares por noite (ou 730 e 1.823 euros), o suíço e luxuoso Le Bijou, por onde passaram hóspedes como “o lobo de Wall Street” Jordan Belford e Steve Wozniak, cofundador da Apple, inclui ainda nos seus apartamentos especiais serviços como a possibilidade de fazer um teste à Covid-19 (456 euros), e acesso a serviços como os cuidados de uma enfermeira, duas vezes por dia (1.641 euros) ou a tempo inteiro (4.377 euros). E por falar no acesso facilitado aos testes, vale a pena recordar o paralelismo sublinhado pelo The Guardian: “Com o Titanic, eram mulheres e crianças primeiro. Com a Covid-19, são os ricos e poderosos”.

O novo modelo de alojamento a pensar nesta temporada de isolamento surgiu, segundo o CEO Alexander Hübner, quando começaram a notar que as habituais reservas para três dias passaram para 14 dias. O reverso da moeda é protagonizado pelo mesmo responsável: Hübner abdicou do seu salário para oferecer estadias gratuitas ao pessoal médico e outros auxiliares de saúde que combatem o novo coronavírus, permitindo-lhes ficar em espaços como o de baixo.

O hotel suíço Le Bijou apostou pacotes específicos para a quarentena com preços entre os 800 e os 2.000 dólares por noite

Mas para lá dos hotéis, não faltam provas, pelo menos no mercado internacional, de que a esfera das chamadas Doomsday bookings é um nicho a ter em conta. Os mais catastrofistas, em contagem decrescente para o dia do juízo final, recorrem a agências onde a oferta tanto passa por um destino rural de sonho para se isolarem dos perigos das metrópoles como pelos mais inesperados edifícios. Com o turismo em claro compasso de espera, este é um filão que foi resistindo, e em alguns casos até adquirido um inusitado impulso, como o Finantial Times auscultou durante o mês de março. “Ninguém quer estar em Londres”, desabafava Bella Seel, da empresa de turismo ALS Sun, contando como o countryside se tornou um cenário desejável, com um dos clientes a desembolsar uma mansão com nove quartos em Home Counties por três meses, a 50 mil libras a semana. E que tal uma quarentena exclusiva numa torre inglesa para um confinamento absoluto ao nível de uma série de época? Também se arranja. A China Tower, uma torre octagonal rodeada pela floresta em Devon, no Reino Unido, é uma das preferidas no catálogo da Landmark Trust, especializada em férias em edifícios históricos.

A China Tower está localizada na floresta em Devon, no Reino Unido.

Já em Singapura, a quarentena pode vir com “vista mar e serviço de quarto”, confirmava a Bloomberg há poucos dias.

Sol, piscina e Netflix, um kit de sobrevivência para novos viajantes de sofá

Manter a rotina instagramável pode ser um desafio e um imperativo para quem encontra no próprio IG a sua fonte de rendimento — e a verdade é que o escapismo é uma poderosa bengala em fase de confinamento para inúmeros seguidores. A que nível está o poder de encaixe desses milhões, sobretudo face ao prenúncio de um futuro próximo pouco auspicioso? Por outro lado, faz sentido exigir que as estrelas abandonem a sua natural rotina de estrelato, obliterando toda e qualquer marca de privilégio? As pequenas frivolidades online aliviam o nosso tédio ou revelam uma total ausência de noção? “Cadeias de celebridades a fazer vídeos para participar num “quarantine challenge” enquanto os sites de desemprego estão a vir abaixo de tanta procura. É o “comam brioches” do ano 2020″, compara Jeva Lange, num artigo para a The Week com alusão ao conhecido bordão de Maria Antonieta.

O Instagram de Pia Muehlenbeck

Não é a única a analisar a postura dos nomes mais mediáticos face à progressão do surto. “Elevarem a vossa quarentena a uma espécie de pseudo humildade é de muito mau gosto. Quando nos dizem que o isolamento vos deu “tempo para parar e observar a natureza” a partir das vossas janelas de alto a baixo da vossa bucólica casa de férias em Norfolk enquanto fazem festas a um terrier, não tem ligação com o que se está de facto a passar”, aponta a editora da Glamour Marie-Claire Chappet, que esta semana insistia no smugsolation. Quem diz segunda casa recheada de todos os confortos e segurança extra, diz destino idílico, onde muitos bloggers de viagens acabaram por permanecer no meio do furação Covid-19.

O Instagram da doyoutravel

Lauren Bullen, aka Gypsea Lust, é um desses exemplos. Instada a regressar à Austrália, a instagramer com 2,1 milhões de seguidores preferiu ficar em Bali com o namorado, Jack Morris, também ele acompanhado por 2,7 milhões de utilizadores, oscilando entre a piscina no exterior ou a jogar Mario Kart em tamanho XL. Nada que pareça incomodar a legião de fãs do casal, que se divide entre as preocupações com a qualidade de Netflix em Bali e a elogiosa hashtagh “homegoals”.

Dos clubes de leitura às lições de cocktails, também há formatos pedagógicos e de puro entretenimento patrocinado pelas celebridades, de Miley Cyrus a January Jones. Mas até neste campeonato, lembra a Atlantic, é como se nunca como agora as estrelas tivessem sido tão inaptas na capacidade desse entretenimento, ora entediadas como nós, ora débeis como nós a dominar a tecnologia, para uma nota solta de paridade.