Quantas vezes desejou não ter de demorar uma hora ou duas a chegar ao trabalho e outras tantas para regressar a casa? Para quem foi colocado em teletrabalho este problema ficou resolvido, mas falta saber se ficar fechado em casa por causa da pandemia teve mais efeitos positivos ou negativos no que diz respeito ao sono. Dois trabalhos de investigação publicados na revista Current Biology indicam que a flexibilidade de horários teve impactos positivos, mas as restrições do confinamento podem ter resultado também em efeitos negativos.

“Os efeitos adversos podem ser minimizados pela exposição à luz natural durante o dia e pelo exercício físico”, dizem os autores do estudo europeu.

Quem experienciou maior flexibilidade nos horários de trabalho ou de estudo, como os estudantes universitários, parece ter diminuído o jet lag social — ou seja, a dessincronização entre o horário profissional e o relógio biológico. O resultado foi ritmos de sono mais semelhantes entre os dias da semana e os fins de semana, com as consequências positivas associadas a ter horários regulares de sono — independentemente de se deitar e levantar mais cedo (matutino) ou mais tarde (vespertino).

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As conclusões são de dois trabalhos independentes conduzidos na Europa e nos Estados Unidos durante o período de confinamento. Na Europa, foram analisados os padrões de sono de 435 voluntários (sobretudo mulheres, 327), entre 23 de março e 26 de abril, e, nos Estados Unidos, de 139 estudantes universitários (98 mulheres), em janeiro e na última semana de abril. Em ambos os casos, foi comparado a duração, regularidade e qualidade do sono antes e durante o confinamento.

No caso dos estudantes, acrescenta-se que a percentagem que dormia pelo menos sete horas como recomendado aumentou de 84% para 92%. E que foram os alunos que menos dormiam durante o período de aulas presenciais que mais aumentaram o tempo de sono durante o confinamento. O jet lag social diminuiu entre os estudantes, com uma tendência maior para se deitarem mais tarde tanto durante a semana como ao fim de semana.

Já no caso do estudo europeu, há um lado mais negativo que foi evidenciado nas respostas ao questionário: a perceção de que o confinamento aumentou a carga sobre os participantes no estudo — tomar conta dos filhos ou outras questões familiares, tratar da casa, problemas de saúde ou situação económica — e levou a uma diminuição do bem-estar físico e mental e, consequentemente, a uma menor qualidade do sono.

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Ambos os estudos, observacionais, assumem as limitações e a impossibilidade de generalização dos resultados a uma população mais alargada. Os trabalhos têm ainda outra coisa em comum: os voluntários já tinham padrões de sono melhores que as médias para grupos semelhantes. Os autores de ambos os artigos especulam, no entanto, que, se mesmo assim viram efeitos positivos no sono, os efeitos benéficos poderão ser ainda maiores em pessoas com padrões de sono menos saudáveis.

No estudo conduzido pelos investigadores suíços, o enviesamento dos resultados está principalmente associado ao perfil dos voluntários (com origem na Alemanha, Áustria e Suíça): maioritariamente mulheres, de nível educativo e socioeconómico alto e cuja flexibilidade nos horários já era moderada. O que quer dizer que os benefícios no sono ou a carga associada ao confinamento podem ser ainda maiores noutros grupos menos privilegiados.

“Em suma, achamos que as características da amostra podem ter contribuído para subestimar, em vez de sobrestimar, dos efeitos na população em geral”, conclui a equipa de Christine Blume, do Centro de Cronobiologia do Hospital Psiquiátrico da Universidade da Basileia (Suíça).

Outra limitação identificada pela equipa europeia foi ter lançado os inquéritos depois do confinamento ter sido imposto e as respostas se basearem naquilo que as pessoas se lembravam de ter sentido antes de ficarem fechadas em casa. “Embora o enviesamento causado pelas recordações não possa ser excluído, gostaríamos de argumentar que parece improvável que esse viés seja tão sistemático que tenha um efeito importante na validade dos resultados em 435 participantes”, justificam os autores.

Já no caso dos dados dos alunos da Universidade do Colorado (Boulder, Estados Unidos), a recolha iniciou-se ainda antes da pandemia e de se saber que os alunos iriam ser obrigados a fazer aulas à distância, escreve a equipa de Kenneth P. Wright, do Laboratório de Sono e Cronobiologia daquela universidade. Como o objetivo inicial era outro, não se pensou em recolher outro tipo de variáveis que pudessem influenciar o sono, como o agregado familiar, o tempo de viagem entre casa e a universidade, sestas, exercício físico ou consumo de álcool e cafeína. Logo, todas afirmações sobre causa e efeito devem ser feitas com cautela.

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Ainda assim, os resultados destes dois estudos parecem ser mais animadores do que as ideias transmitidas pelo neurologista Hernando Pérez, especialista do Centro de Neurologia Avançada da Espanha, e pela neurologista do Instituto Espanhol do Sono Celia García-Malo à BBC, em meados de abril. Ambos os especialistas verificaram que havia mais casos de insónias a procurarem as suas consultas à distância.

“Se fizermos menos atividade física [durante o dia] porque estamos trancados, isso afetará nosso sono”, diz o neurologista Hernando Pérez.

Além das insónias e da necessidade que muitos dos doentes sentem em deitar-se mais tarde — o que os leva a acordarem mais tarde também —, os especialistas verificaram também que as pessoas tinham mais pesadelos e sonos mais irregulares (com microdespertares). O problema é que dormir menos ou pior leva a níveis mais altos de ansiedade e níveis altos de ansiedade fazem com que as pessoas tenham dificuldade em dormir.

As recomendações para dormir melhor repetem-se: apanhar algum sol pela manhã e fazer exercício físico, mas também manter um horário fixo para dormir. E não levar trabalho nem aparelhos eletrónicos para a cama.