Além da sociedade offshore Espírito Santo (ES) Enterprises, o famoso ‘saco azul’ original do Grupo Espírito Santo, o Ministério Público (MP) descobriu na investigação ao caso Universo Espírito Santo pelo mais uma sociedade que cumpriu o mesmo objetivo da Enterprises de remunerar por ‘debaixo da mesa’ os administradores e altos funcionários do banco. A sociedade chama-se Alpha Management, representa um segundo ‘saco azul’ alegadamente gerido sob as ordens de Ricardo Salgado e irá ter um papel relevante na acusação que a equipa do procurador José Ranito se prepara para deduziraté ao dia 15 de julho contra o ex-líder do BES e vários ex-administradores e ex-altos funcionários do banco criado pela família Espírito Santo.

Mais: quer a ES Enterprises quer a Alpha Management foram essencialmente financiadas em diversas centenas de milhões de euros a partir de emissões de dívida vendidas aos balcões do BES. O que significa que aquelas duas sociedades secretas foram, na prática, financiadas pelos clientes do BES. Esse facto, que foi avançado por uma investigação do Observador em 2018, e deverá ser confirmado pela acusação do MP.

Os documentos do ‘saco azul’ do GES: 20 milhões a mais de 50 altos funcionários

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O crime de associação criminosa

Não é nada comum o MP imputar o crime de associação criminosa a arguidos de processos de criminalidade económico-financeira.  Sendo um ilícito difícil de provar em julgamento, costuma ser utilizado em processos de criminalidade comum, nomeadamente em autos relacionados com assaltos em larga escala praticados pelo mesmo grupo de arguidos. Ora, o procurador José Ranito entende desde 2018 que tem indícios suficientes para imputar a criação de uma associação criminosa a Ricardo Salgado, por existirem fortes indícios de uma prática continuada e duradoura desde pelo menos 2009 de alegados crimes de corrupção no setor privado, branqueamento de capitais, falsificação de documento, burla qualificada e infidelidade. A primeira vez que Ranito imputou o crime de associação criminosa a Salgado foi no contexto da alegada corrupção de titulares de cargos políticos venezuelanos, como o Observador noticiou aqui.

Como foi desmascarado o carrossel do GES com a Venezuela que tornou Salgado suspeito de associação criminosa

O fundamento do crime de associação criminosa é simples de explicar: Ranito entende que a prova dos autos Universo Espírito Santo indicia claramente que Ricardo Salgado criou uma organização dispersa por várias jurisdições internacionais (como a Suíça, Luxemburgo, Ilhas Virgens Britânicas, Panamá, Estados Unidos, etc.) para executar diversos e complexos esquemas de financiamento ilícito que tiveram um único objetivo: esconder a insolvência técnica da holding do GES chamada Espírito Santo International (ESI) que, no final de 2009, tinha capitais próprios negativos de 961,9 milhões de euros e resultados negativos transitados de 1.208,7 milhões de euros. Passados três anos, a ESI aumentou os capitais próprios negativos para 1,6 mil milhões de euros, sendo que as suas contas oficiais indicavam um capitais próprios positivos de 777, 3 milhões de euros.

Para tal, terá sido necessário, segundo o MP, falsificar as contabilidade da ESI e de outras sociedades do GES e implementar esquemas de emissão de dívida vendida a clientes do BES e do GES através de empresas geridas pela sociedade Eurofin com sede na Suíça — sociedade esta que era controlada por Ricardo Salgado.

Só em 2012, os alegados esquemas de financiamento fraudulento fizeram com que a ESI tivesse contraído dívidas junto dos clientes do BES e do GES de 4,7 mil milhões de euros e, um ano mais tarde, de 5,5 mil milhões de euros. Responsabilidades estas que acabaram por contaminar outras sociedades do GES e o próprio BES.

Para que serviram a ES Enterprises e a Alpha Management?

Tal como o Observador tem vindo a noticiar desde 2016, a ES Enterprises serviu essencialmente para implementar um esquema oculto de pagamento de salários e de prémios anuais desde pelo menos 2006 e até 2013. Entre administradores, diretores e outros altos funcionários do BES, pelo menos mais de 50 pessoas foram remuneradas através da Enterprises, com sede nas Ilhas Virgens Britânicas e desconhecida do Banco de Portugal e de outros reguladores por não fazer parte do organograma oficial do GES.

Essa sociedade é também conhecida como o ‘saco azul’ do GES e ficou famosa pelas transferências de cerca de 69 milhões de euros detetados na Operação Marquês para Carlos Santos Silva, alegado testa-de-ferro de José Sócrates, Zeinal Bava e Henrique Granadeiro por alegadas ordens de Ricardo Salgado — sendo que estes últimos factos já foram alvo de acusação na Operação Marquês, ficando assim a avaliação penal excluída do caso Universo Espírito Santo.

Como Salgado usou o ‘saco azul’ para implementar um esquema de financiamento fraudulento do GES

Ora, e tal como o Observador noticiou neste trabalho de 19 de outubro de 2016, Ricardo Salgado terá usado a ES Enterprises para remunerar ilicitamente um grupo restrito de altos funcionários do Departamento Financeiro, Mercados e Estudos (DFME) do BES,  localizado na Avenida da Liberdade, em Lisboa, que implementaram os esquemas de financiamento alegadamente fraudulento da Eurofin. Tudo sob as alegadas ordens de Ricardo Salgado que assumiu o papel de alegado líder da associação criminosa que o MP vai descrever na acusação do Universo Espírito Santo.

A grande novidade que constará da acusação do MP do Universo Espírito Santo é que a ES Enterprises terá sido substituída a partir de 2013 (e até à saída de Salgado da administração do BES em junho de 2014) por outra sociedade offshore: a Alpha Management. O MP encara os pagamentos da Enterprises e da Alpha Management como uma contrapartida dada aos administradores a altos funcionários do BES que terão alegadamente participado na implementação dos esquemas de financiamento fraudulento, o que vai levar o MP a acusar Ricardo Salgado de corrupção ativa no setor privado e os restantes ex-gestores e funcionários de corrupção passiva no setor privado.

Amílcar Morais Pires, ex-chief financial officer do BES e falhado sucessor de Salgado à frente do BES, é dado pelo MP como sendo o braço direito de Ricardo Salgado e terá recebido pelo menos 7,9 milhões de euros da ES Enterprises até 2013 através da sua sociedade offshore Allanite, com sede no Panamá.

Toda a história do ‘saco azul’ do GES

Isabel Almeida, responsável pelo DFME, terá recebido cerca de 2,3 milhões de euros entre 2006 e 2012 da ES Enteprises, enquanto os seu subordinados António Soares e Nuno Escudeiro terão recebido pelo menos 700 mil euros e 170 mil euros respectivamente. Todos este valores foram revelados pelo Observador na investigação que fez às contas bancárias da ES Enterprises em janeiro de 2018.

O MP dá igualmente João Martins Pereira, que criou de raiz um Departamento de Compliance e de Auditoria que veio depois a liderar entre 2006 e 2013, como membro do grupo de responsáveis do BES que, sob as alegadas ordens de Ricardo Salgado, terá implementado esquemas de financiamento fraudulento. Martins Pereira recebeu prémios anuais da ES Enterprises numa conta do BES em Madrid de cerca de 1,4 milhões de euros.

Todos estes valores acima descritos dizem respeito a pagamentos feitos pela ES Enterprises, o que significa que os pagamentos que terão sido feitos através da Alpha Management deverão fazer aumentar os valores acima descritos dos funcionários que foram pagos por esta última sociedade — e cujos nomes o Observador ainda não conseguiu confirmar.

Uma coisa é certa: o MP não tem dúvidas de que os capitais que alimentaram as centenas de milhões de euros que passaram pelas contas da ES Enterprises e da Alpha Management terão tido origem nos clientes do BES.