A pintora Maria Beatriz, a artista que fez da arte processo de emancipação, morreu aos 80 anos, no sábado, na cidade de Amesterdão, na Holanda, país onde vivia desde 1970, disse à Lusa fonte da Galeria Ratton. “Todo o meu trabalho lida com a emancipação, especificamente com a nossa luta pela libertação”, escreveu Maria Beatriz, no ‘site’ de apresentação das suas obras e do seu percurso.
Nascida em Lisboa, em 1940, Maria Beatriz começou por frequentar Biologia, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, em 1958, curso que trocou, três anos mais tarde, pelo de Pintura da Escola Superior de Belas Artes e a formação em Gravura em Metal da Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses.
O país, porém, dava-lhe “falta de ar”, como disse em 2017, numa entrevista à historiadora Emília Ferreira, atual diretora do Museu Nacional de Arte Contemporânea (Museu do Chiado), para a unidade de investigação “Faces de Eva – Estudos sobre a Mulher”, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
“Não havia qualquer possibilidade para os jovens escolherem a sua vida”, recordou Maria Beatriz. “Os rapazes viram-se a ter de seguir o serviço militar e a partir para a guerra. Muitos desertaram e fugiram sem nada para o estrangeiro. Muitas famílias não apoiaram tal decisão. E a rutura foi enorme. As raparigas viram-se metidas num espartilho de proibições e preconceitos — para uma moça como eu era, não conforme, rebelde e desejosa de poder escolher a direção a dar à minha vida, a opção foi partir. Encontrei em Londres independência económica e liberdade de ação”, acrescentou.
Aí se fixou, em 1961-63, seguindo-se Paris, em 1965, como bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian, até ao final da década, período durante o qual trabalhou com o pintor e impressor britânico Stanley William Hayter, no Atelier 17 (1966-68), como destaca a biografia da Galeria Ratton. A proximidade à Cinemateca Francesa e ao ateliê do pintor português Júlio Pomar foram sublinhados por Maria Beatriz, a par do Maio de 1968, que viveu.
À Holanda chegou definitivamente em 1970, onde recebeu o Prémio Estímulo, da Escola de Belas Artes, de Roterdão, na qual se diplomou em Pintura e Artes Gráficas. Mais tarde, reforçou a formação em Gravura, Serigrafia, Desenho e Pintura, na Academia Livre de Haia (1974-87 e 1988-1990).
Inicialmente, trabalhou na Galeria Printshop, em Amesterdão, como impressora do britânico David Hockney e do norte-americano Jim Dine, expoentes da arte contemporânea e da ‘pop art’.
Em 1974, com um subsídio do ministério holandês da Cultura, viajou para o México. A partir de 1978, e nos 10 anos que se seguiram, Maria Beatriz teve continuamente o apoio do Estado holandês para as Belas Artes.
A biografia da artista, no ‘site’ da Fundação Calouste Gulbenkian, destaca a ligação precoce de Maria Beatriz à arte, “por volta dos seus 12 anos, como forma de escape de uma relação difícil que mantinha com o pai”.
A sua fuga e resistência “foram os livros, a poesia e alguma música”, recorda a Gulbenkian, citando a artista: “Nessa idade [12 anos] a minha ligação à arte começou a ser muito positiva. Via a arte como uma coisa que podia dar apoio e, digamos, mudar a vida de uma pessoa. Portanto, muito nova, foi a minha escolha”.
Maria Beatriz expôs regularmente desde 1965, sobretudo na Holanda e em Portugal, séries de desenhos, trabalhos de pintura e em madeira, objetos, instalações e, mais tardiamente, fotografia.
Na página dedicada à artista, a Gulbenkian mostra quadros da série “Medo” (“O Espelho”, “A Missa”, “Dedo na Ferida”), bem como “Amor Louco”, a série fotográfica “Vita Brevis”, o “Auto-Retrato de Costas Largas”, “O Velho Tango” ou “Jogo do Galo com os três reis magos”.
Duas grandes características do seu trabalho foram, como indicou, o “envolvimento social”, por um lado, e, por outro, a técnica de colagem. “Adoro cortar. Desde pequenos desenhos feitos de pequenos pedaços de papel, a telas grandes ou figuras recortadas em madeira compensada. É a abundância de cortes que impressiona. Mesmo quando em 1999 comecei a pintar diretamente sobre tela, continuei cortando! Todos os meus estudos de formulário são recortes de papel”, escreveu.
O trabalho de Maria Beatriz foi objeto de duas exposições antológicas no Centro de Arte Contemporânea Casa da Cerca, em Almada, em 1998 e em 2016, esta última, “Trabalho de Casa 1960-2013”, com curadoria da Galeria Ratton.
Em 2002 expôs fotografias e objetos da série “Vita Brevis” no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian.
Em Portugal, a Galeria Ratton, em Lisboa, dedicou-lhe três exposições individuais de desenho, pintura e azulejo: “Oisive jeunesse, à tout asservie…”, em 2009; “Alguém disse”, em 2012, e, em 2016, a par da retrospetiva na Casa da Cerca, inaugurou a mostra “Calendário”, com catálogo com textos do curador e historiador de arte João Pinharanda e do escritor Nuno Júdice.
Em 2017, Maria Beatriz fez parte da iniciativa Lusoscopie, em Paris, promovida pela Embaixada de Portugal e pelo Camões Instituto.
Maria Beatriz está representada em coleções como as do Museu de Arte Moderna de Arnhem, do Haags Gemeente Museum, em Haia, do Nederlandse Bouwfonds, em Hoevelakenas, e do Museu Stedelijk, de Gouda, na Holanda, e, em Portugal, na Caixa Geral de Depósitos, na Fundação Calouste Gulbenkian, na Fundação EDP e no Centro de Arte Contemporânea Casa da Cerca, Almada.
No seu ‘site’, no termo da apresentação do seu próprio trabalho, Maria Beatriz citou Almada Negreiros: “Só o mistério chega inteiro ao fim”.
“Uma pintora única, uma mulher fascinante, que o país e o mundo têm obrigação de conhecer”, escreveu hoje a Galeria Ratton na sua página no Facebook, em homenagem a Maria Beatriz.