Aos 55 anos, Corinna Larsen assume um dos papéis principais no escândalo que está a abanar os alicerces da monarquia espanhola. Durante as últimas duas décadas, foi o rosto da vida dupla mantida por Juan Carlos, o homem que reinou em Espanha durante quase 40 anos e que, em 2014, cedeu o lugar ao filho, assumindo o posto de rei emérito.
No entanto, o envolvimento da aristocrata alemã revelou-se além da esfera amorosa. Depois das escapadinhas românticas e da mudança para Madrid, surge no centro de uma teia de transações financeiras que terão permitido a Juan Carlos, atualmente com 82 anos, embolsar cerca de 65 milhões de euros à margem do fisco espanhol.
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Corinna passou a estar na mira da justiça depois de, já em março deste ano, ter vindo a público uma doação — os mesmos milhões, coincidência ou não — feita por Juan Carlos e da qual foi a beneficiária. Um “sinal de gratidão e amor”, segundo justificou ao procurador suíço Yves Bertossa, uma das autoridades que continua a procurar os meandros de uma relação escandalosa e que culminou, esta semana, na partida do antigo rei de Espanha para o exílio.
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Nasceu em Frankfurt, a 28 de janeiro em 1965. Filha de Finn Bönnig Larsen, o dinamarquês que chegou a estar ao leme da companhia de aviação brasileira Varig, e da alemã Ingrid Sauerland, começou cedo a criar uma relação com Espanha. Dos verões passados na cidade costeira de Marbella para o frio suíço, acabou por se mudar para Genebra onde estudou Relações Internacionais. Aos 21 anos, Corinna estabelecia-se numa outra capital europeia, Paris.
Casou-se pela primeira vez entre o final dos anos 80 e o início da década seguinte, com o empresário britânico Philip J. Adkins. Da união nasceu Anastacia, a filha mais velha de Corinna, que manteve uma relação próxima com o primeiro marido. Este inclusivamente fez parte da viagem de 2012 ao Botswana, onde também estava o rei de Espanha, de quem é amigo, e onde Juan Carlos fraturou a anca numa caçada aos elefantes. Em 2018, numa entrevista à edição espanhola da Vanity Fair, Adkins defendeu Juan Carlos, definindo a ex-mulher como uma “sociopata narcisista”.
Anos depois do divórcio, voltou a casar, dessa vez com o alemão Casimir zu Sayn-Wittgenstein. A origem aristocrática do segundo marido valeu-lhe o título de princesa, o tratamento de Sua Alteza Sereníssima e o sobrenome que carregou até julho do ano passado, data em que o príncipe voltou a casar com a manequim Alana Bunte, não obstante o casal se ter divorciado em 2004. Da união nasceu Alexander Kyril.
Corinna Larsen trabalhou mais tarde como gerente na Boss and Company, uma empresa de armas que organiza caçadas de luxo e que tem como principais clientes empresários milionários e aristocratas de várias partes do mundo. Mais tarde, fundou a Apollonia Associates, empresa que presta “consultoria estratégica a clientes corporativos e institucionais em transações internacionais”.
Quer durante o casamento com o príncipe alemão, quer quando ainda vivia com os pais, Corinna sempre se envolveu no meio aristocrático. Em 1984, foi num Baile da Rosa que o próprio pai intercedeu para que fosse apresentada ao príncipe Alberto do Mónaco. Nasceu, nesse dia, uma longa amizade que lhe garantiu lugar entre os convidados do casamento com Charlene, em 2011.
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O estilo de vida luxuoso manteve-se sempre inalterado. Além dos laços sociais, também as propriedades de Corinna evidenciam as suas ambições, a começar pelo duplex de luxo nos Alpes Suíços, onde terá passado muito tempo com Juan Carlos. A casa foi vendida em 2013, após o fim da relação. Mas em 2004, Larsen havia feito outro investimento imobiliário — um apartamento de 240 metros quadrados, repleto de obras de arte, no bairro londrino de Belgravia e cujas portas abriu para a revista francesa Point de Vue, em 2018.
Amor à primeira vista
Foi nesse mesmo ano que conheceu Juan Carlos. Corinna tinha na altura 39 anos, o então rei de Espanha tinha 66. O contexto foi de caçada em La Garganta, uma propriedade que se estende por 15 mil hectares na província espanhola de Ciudad Real (é o maior terreno de caça privado da Europa), na época pertencente a Gerald Grosvenor, sexto duque de Westminster.
Segundo funcionários do Palácio da Zarzuela citados pelo El País, o rei apaixonou-se “como uma criança”, tendo rapidamente equacionado a possibilidade de, com Corinna, construir uma vida dupla, à margem do matrimónio com a rainha Sophia, com quem casou em 1962, anos antes de a nova amiga alemã sequer ter nascido.
Larsen foi amante, mas também assistente. Ainda em 2004, ficou encarregue de planear a lua-de-mel de Filipe e Letizia, que casaram em maio desse ano. A viagem, orçada em mais de 400 mil euros segundo noticiou o The Telegraph em junho deste ano, passou pelo Cambodja, pelas Fiji e ainda pela costa Oeste dos Estados Unidos e pelo México. A despesa foi paga por Juan Carlos e pelo empresário catalão, amigo e parceiro de vela do então rei, Josep Cusí.
As tarefas de assistente não ficaram por aí. Segundo recorda o El País, foi pedido a Larsen que arranjasse um emprego para Iñaki Urdangarin na Fundación Laureus, mas o marido da infanta Cristina e genro do rei rejeitou. Iñaki veio, mais tarde, a ser preso, condenado por peculato, prevaricação, tráfico de influências e fraude, no âmbito do caso Nóos.
Mas Corinna não se tornou apenas num escape romântico mantido em segredo por Juan Carlos, mas sim numa personalidade com visibilidade pública, sobretudo a partir de 2012, durante a polémica viagem ao Botswana. Dois anos antes de abdicar do trono, o acidente durante o safari, destinado a caçar elefantes, expôs a relação extraconjugal. Larsen tinha viajado com o monarca, mais tarde (depois de uma chuva de críticas) impelido a fazer um pedido público (e genérico) de desculpas — por um lado, pela desfaçatez de embarcar numa viagem de luxo numa altura em que o país recebia ajuda internacional para se recompor da crise, por outro, pela reprovação internacional por ter ido caçar uma espécie animal ameaçada.
Com a amante sempre por perto, Juan Carlos viajou para fora do país. Algumas das viagens foram pagas por Álvaro de Orleães, primo do rei que acabaria mais tarde por comentar publicamente a relação: “Foi uma paixão que deixou de ser normal. Tornou-se tóxica. Percebi que podia acabar muito mal”. Os dois chegaram a aparecer juntos em viagens oficiais como aconteceu com a visita do monarca a Estugarda, em 2006, que teve direito a honras militares, com Corinna a escassos metros atrás do rei.
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Nesse mesmo ano, os dois embarcariam para a Arábia Saudita. A viagem terá servido as negociações entre os dois países e o favorecimento de empresas espanholas no concurso para a construção da linha de alta velocidade entre Meca e Medina. O ano não acabaria sem que Juan Carlos juntasse uma das filhas, a infanta Cristina, o genro e a amante na mesma fotografia. Aconteceu à chegada à gala dos Prémios Laureus.
Em La Angorrilla, uma vasta propriedade de bosque habitada por vida selvagem, a 19 quilómetros da Zarzuela, Juan Carlos instalou Corinna com todas as comodidades. Segundo o El Español, foi lá que Larsen viveu com o filho (com quem o rei manteria um relação bastante próxima e afetuosa) entre 2008 e 2012, uma espécie de ninho de amor onde o rei terá investido centenas de milhares de euros, segundo o mesmo jornal, e que agora retomou o seu antigo uso, servir de base aos guardas florestais da região.
A segurança de Corinna não era descurada. Entre os guarda-costas existia, inclusive, um nome de código sempre que se queria referir à amiga do rei: Ingrid, o nome da mãe de Larsen.
Os segredos de “Ingrid”
Em 2012, a viagem ao Botswana marcou o início do escrutínio em torno dos negócios e ligações de Juan Carlos. Larsen negava na altura qualquer envolvimento amoroso com o rei de Espanha. Além de uma amiga da família, a alemã defendeu a sua participação nas negociações com a Arábia Saudita no papel de consultora, através da Apollonia Associates. “O rei é um tesouro nacional. Quando ele entra na sala, irradia luz e carisma e cria uma ligação com toda a gente. Ninguém lhe fica indiferente”, descreveu ao The New York Times, em setembro desse mesmo ano.
No início de 2013, a disposição de Corinna terá começado a mudar. Diego Torres, sócio de Urdangarin no Instituto Nóos, acusou Corinna de ter proposto uma sociedade para encobrir os fundos que o genro do rei tinha no estrangeiro. Ao ver o seu nome envolvido no caso, Larsen contratou o reputado escritório de advogados Schillings, que iniciou uma operação para limpar a sua imagem.
O caso arrastou-se. Em 2015, já muito depois do fim da relação com o monarca, numa conversa com José Villarejo Pérez e Juan Villalonga Navarro, em Londres, Larsen admitiu ter sido deliberadamente envolvida no polémico processo por Juan Carlos, na tentativa de proteger a própria filha, a infanta Cristina. As declarações da ex-amante, gravadas sem o seu consentimento, vieram a público apenas em 2018, já após o desfecho do caso Nóos.
“A Casa Real meteu-se. Disseram: mais vale o Iñaki e a Corinna do que o Iñaki e a Cristina”, referiu Corinna durante a conversa. A alemã não chegou a depor no caso, mas indicou ter pedido uma reunião entre os advogados de ambas as partes. “Disse-lhe 17 vezes para os advogados dele se encontrarem com os meus off the record para ver como é que eles podiam explicar as coisas sem que eu tivesse que dizer nada, mas eles não o fizeram. Tive de me defender”, ouve-se ainda. “Foram muito duros comigo”, concluiu, após recordar uma conversa e que Juan Carlos lhe disse que o sangue falava mais alto. Larsen não comentou o conteúdo da gravação.
Longe do rei e empenhada em deixar os laços com Espanha caírem no esquecimento — foi assim que Corinna viveu desde então. Contudo, em março deste ano, os ecos da transferência milionária de Juan Carlos em 2012, da qual Larsen e o filho, Alexander Kyril zu Sayn-Wittgenstein, foram beneficiários, voltaram a deixar a alemã debaixo de fogo.
Em dezembro do ano passado, esteve na Procuradoria de Genebra a prestar declarações, no âmbito da investigação aos 100 milhões de dólares que Juan Carlos recebeu do rei saudita em 2008. A avultada transferência de 2012 foi feita, segundo o depoimento, como “sinal de gratidão e amor” e não como forma de “se livrar” do dinheiro. “Ele ainda tinha esperança de me conseguir recuperar”, afirmou ainda perante o procurador suíço Yves Bertossa. A doação, ficou também provado, foi feita ao abrigo de um contrato — se Larsen morresse, os herdeiros do rei emérito não poderiam aceder ao dinheiro.
Desde então que a relação entre Corinna e Espanha está, no mínimo, tensa. A ex-amante de Juan Carlos aproveitou uma entrevista a um canal de televisão basco, em junho deste ano, para revelar ter sido vítima de ameaças e perseguição durante os últimos oito anos, por parte de membros da Casa Real, bem como dos serviços secretos espanhóis.
Desde março do ano passado que Larsen exige o envolvimento legal de Filipe VI, o atual rei de Espanha, nas negociações, para resolver os densos problemas judiciais que a envolvem juntamente com a realeza. Filipe resiste em aceitar e, com Juan Carlos fora de cena, a ex-amante do rei emérito ameaçou revelar informações sensíveis e secretas que afetariam “o coração da Casa Real”, em particular relativas a outros offshores ligados à família real espanhola.