Em plena Praça da Figueira, Lisboa, longe da azáfama turística de há poucos meses naquela mesma zona, Marcelo Rebelo de Sousa não escapa à curiosidade noutras línguas. “Who is he?”, pergunta uma senhora a um fiscal da Carris. “Is Mar-ce-ló Ré-be-lô de Sou-sa. I think he is a nice guy. I voted for him“. A confidência é interrompida pela chegada do 26 à paragem junto à qual o Presidente da República vai cumprimentado quem passa como pode. Cotovelada para lá, selfie mascarada para cá e mede-se o pulso à movimentação na zona histórica da cidade, numa manhã que dedicou à promoção turística e… à despromoção do Governo em vários capítulos.
Tinha acabado de cumprir a visita a três unidades hoteleiras, duas que fecharam durante os primeiros tempos da pandemia (o Pestana Palace Lisboa, de cinco estrelas, e o Turim Avenida Liberdade Hotel, de quatro) e outro (o My Story Hotel Tejo, de três estrelas) que se manteve aberto para dar guarida gratuitamente a pessoal médico que precisasse de sítio para ficar devido às restrições sanitárias e as regras de distanciamento. Uma manhã que serviu para Marcelo Rebelo de Sousa concluir que “há uma recuperação” embora “muito, muito limitada” do turismo.
Nos últimos dias, o Presidente garante até que “sentiu o começo da mudança” nas suas voltas pessoais — como aquela que deu sozinho, de tuk-tuk, em Belém ao fim da tarde de quarta-feira. Enquanto dava uma volta pelo jardim do Pestana ia confidenciando esse passeio privado aos responsáveis do hotel. “Finalmente havia fila nos pastéis de Belém!”, contava animado e seguia de seguida para a contabilização de cabeças estrangeiras no périplo algarvio que tem feito nesta época de Verão: “Vila Real de Santo António tem muitos espanhóis, porque está ali na fronteira, Tavira assim-assim, Olhão ainda não sei, ainda hei de lá ir”.
Mas este final da manhã estava quente não só ali, no pico do calor, no meio da estrada de paralelepípedos cravados de carris da Praça da Figueira, como também no passeio político onde o Presidente nunca resiste a dar também uma perninha. E foi assim que, aos jornalistas, passou em revista vários dos temas dos últimos tempos, sempre com críticas e pressões sobretudo dirigidas ao Governo, mas não só. Quais? Foram tantas que vamos por partes.
Ameaças neonazis a três deputadas. É preciso “responder com inteligência”
“É tão condenável a atuação racista com contornos criminosos contra deputados como contra qualquer outro português. Não há cidadãos de primeira e de segunda”, disse quando confrontado com a ameaça feita por um grupo neonazi a três deputadas (entre uma lista de pessoas num email enviado à associação SOS-Racismo). Marcelo Rebelo de Sousa reconhece que o facto de ter recaído sobre três figuras políticas, a ameaça ganhou “outra dimensão” e “maior notoriedade”, mas alerta para o risco de se fazer aproveitamento político da situação.
Mal foi conhecida a investigação levada a cabo pela Polícia Judiciária à ameaça, o Bloco de Esquerda fez saber que avançou com uma queixa crime junto do Ministério Público. O Presidente da Assembleia da República e o governo vieram condenar o caso e houve uma carta aberta a pedir aos responsáveis políticos e instituições que “acionem os mecanismos processuais para combater o racismo e o crescimento da extrema-direita”. Mas a receita de Marcelo não passa por aí.
Diz que tem de haver “tolerância zero” para atitudes criminosas, mas também “sensatez” para “perceber que a manipulação desses temas, noutros países, tem sido uma forma de radicalizar a vida política e promover fenómenos antisistémicos e grafilizar a democracia”. Marcelo aconselha os partidos políticos a “responder com inteligência e não fazer aquilo que quer quem promove este tipo de escalada”.
Fim dos quinzenais. “Eu sei que é mais cómodo não fazer tantos”. Como Marcelo foi à volta
Que o Presidente não concorda com o fim dos debates quinzenais com o primeiro-ministro no Parlamento, isso não podia ter ficado mais claro do que ficou esta quinta-feira. E até usou alguma ironia que, neste caso, só pode ter dois destinatários: Rui Rio e António Costa, os principais obreiros desta mudança. “É mais cómodo não fazer tantos debates para ter mais tempo livre para poder decidir, ir viajar, visitar, ponderar. Mas os debates cumprem uma função essencial. Podem ser repetitivos, podem ser incómodos mas é a democracia a ser”, atirou.
Para Marcelo, “quando as instituições começam a fechar porque há debates a mais, há qualquer coisa que não é boa para a democracia”, avisa, dando como exemplo o que Angela Merkel tem na Alemanha, com a apresentação regular de contas no Bundestag. “Ela vai para cumprir calendário, mas está a fazer democracia”.
E avança, mais uma vez, com o seu próprio exemplo. Primeiro, porque nas presidenciais a que concorreu em 2016, fez debates com todos os candidatos e se concorrer às próximas, promete que fará o mesmo. Segundo, porque vetou o diploma do Parlamento para reduzir o número de debates sobre a Europa, precisamente porque é preciso mais debate político e não menos. “Não se pode passar de seis ou oito debates para dois” (como defendia o diploma que mandou para trás), disse ao defender que este número seja aumentado. E que sejam feitos com a presença do primeiro-ministro? “Claro, com o primeiro-ministro, obviamente”, respondeu prontamente o Presidente.
A alteração ao regimento da Assembleia da República não passa pelas mãos do Presidente, por isso Marcelo ficou à margem da decisão política nessa matéria. Mas nem por isso parece querer deixar de ter um papel ativo nisso e se o primeiro-ministro vai menos vezes ao Parlamento por via dos quinzenais — contra a vontade presidencial –, mantém-se o número de idas desse mesmo primeiro-ministro à Assembleia da República por via dos debates europeus, que é onde pode intervir Marcelo.
Governo e oposição. Pressão para que sejam divulgados dois dados concretos e um pedido de “sentido nacional”
A mensagem que Marcelo queria mesmo passar nesta fase é a do “sentido nacional” que é necessário aos partidos e oposição. É isto que “se exige” nesta fase, acredita o Presidente, que aconselha Governo e oposição a “pensarem um bocadinho” no que é estar no lado oposto.
- Para a oposição: “Eles que pensem um bocadinho que, se fossem Governo, teriam de enfrentar muitos fatores imprevisíveis”.
- Para o Governo: “O Governo que pense também um bocadinho em como é importante informar a oposição acerca dos seus pontos de vista sobre matérias tão importantes como a abertura do próximo ano letivo, os dados dos exames serológicos sobre a imunidade da sociedade portuguesa e a própria antevisão, que é difícil, daquilo que se pode passar lá fora e cá dentro”
E assim, de uma penada, marcou o ritmo para os próximos tempos políticos e ainda, como quem exemplifica, mandou o Governo enviar à oposição dois dados específicos nesta altura. O resultado do estudo que encomendou ao Instituto Ricardo Jorge e que já recebeu e ainda mais informação sobre o arranque do próximo ano letivo, o que está a um mês de acontecer.
As extintas reuniões do Infarmed. Um modelo “esgotado” e o ultimato ao Governo
E depois ainda há as reuniões do Infarmed que foram extintas e que a oposição se queixa agora de ter significado uma redução na informação a que tem acesso sobre a evolução da situação epidemiológica. Para Marcelo, a solução não está em voltar às reuniões, mas até setembro tem de haver um modelo qualquer que o substitua.
Governo passou reuniões do Infarmed para formato PDF. Oposição diz que é pouco
“Terminado o mês de agosto, cabe ao Governo ponderar que modelo pode ser repescado, não tanto para informação dos deputados, mas do país”. E Marcelo até diz o que concreto pode ser reformulado: “Há uma hipótese que pode ser ponderada, para evitar que existam várias versões da mesma reunião, que é permitir o acesso dos cidadãos por meios digitais, para que tenham conhecimento do que lá se passa”.
Festa do Avante! Marcelo pressiona DGS para definir regras
Nesta matéria, Marcelo ainda não se quer meter. Ainda. Porque vai chegar o seu “momento”. O da Direção Geral de Saúde é que já se está a aproximar. E a pressão presidencial vai toda para as autoridades de saúde. “Tenho fugido a pronunicar-me porque ainda não é o tempo. Mas há o tempo em que as autoridades de saúde têm de dizer que há regras que têm de ser cumpridas”, disse quando faltam 20 dias para a festa que os comunistas realizam anualmente no Seixal.
O Presidente disse mesmo que essa decisão “não é política, é técnica”, ou seja, vai além de guerrilhas partidárias sobre a existência de uma festa de determinada cor política em plena pandemia, quando outros eventos com características semelhantes (festivais de verão) estão proibidos. “É muito importante o papel da DGS na definição das condições sanitárias dos eventos”, afirma pressionando mais uma vez as autoridades de saúde e diz que isso é preciso ser feito de forma clara, “para que os portugueses percebam” a decisão. “Esta vai ser a pedra de toque: a capacidade de falar aos portugueses”, afirmou.
E seguiu para uma sessão de selfies ali em plena praça da Figueira, pegando à vez nos vários telemóveis que lhe iam estendendo para que o momento ficasse registado junto ao Presidente da República. E uma ou outra cotovelada amigável pelo meio, como a do senhor que é apanhado no meio daquela turba pouco sanitária e lhe grita: “Ó Dr. Marcelo. Tudo de bom para si. Isto é para seguir, hein!”. “Isso vamos ver”. Até ao momento.