Miguel Relvas, antigo ministro de Pedro Passos Coelho e autor da última revisão do mapa autárquico, acusa António Costa de estar a fazer um mero negócio partidário com os comunistas. António Leitão Amaro, que chegou a secretário de Estado da Administração Local no mesmo Governo, concorda: “O Governo está a querer pagar favores políticos ao PCP”.

As intenções do Governo passaram quase despercebidas mas vieram consolidar um tema há muito discutido nos bastidores. António Costa está mesmo disposto a revisitar o mapa autárquico, o que pode permitir a criação de 600 novas juntas de freguesia a poucos meses das eleições autárquicas. A notícia foi avançada pelo Jornal de Negócios que citava inclusive o gabinete da ministra da Administração Pública. “O diploma que irá estabelecer um regime de criação, modificação e extinção de freguesias está em fase final de preparação e aprovação”, garantia fonte oficial.

O mesmo jornal dava conta do plano do Governo para aprovar este novo mapa autárquico ainda antes das próximas eleições locais, agendadas algures para outubro de 2021. Para isso, o processo terá de ficar concluído até 31 de março do próximo ano, cerca de seis meses antes das autárquicas.

A revisão do mapa de freguesias é há muito uma exigência do PCP e tem motivado pressões dentro do próprio PS. O Observador sabe que a questão foi levantada por Maria Luz Rosinha, secretária nacional do PS para as Autarquias Locais, numa reunião fechada à comunicação social durante últimas jornadas parlamentares do partido. Depois de lembrar que este era há muito um compromisso do Governo, a também deputada socialista acabou muito aplaudida pelos seus pares parlamentares.

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Os sinais já chegaram ao PSD. Entre alguns dirigentes sociais-democratas, há quem suspeite que esta pressa em aprovar um novo mapa autárquico, manifestada em plena discussão do Orçamento do Estado para 2021, está relacionada com a fragilidade da ‘geringonça’ e com a vontade de suavizar as posições do PCP, que vem perdendo influência autárquica — em 2017, teve mesmo o seu pior resultado em eleições locais. Mas, para já, ninguém da direção do partido quer falar do tema. A ordem é para esperar até conhecer de facto o diploma desenhado pelo Governo.

Miguel Relvas, no entanto, não tem dúvidas. Em declarações ao Observador, o antigo ministro de Pedro Passos Coelho e principal responsável pela última revisão, aponta ao coração do Governo: “Custa-me muito ver como uma medida racional e justificada pela necessidade do país se adaptar à sua nova realidade, até em termos demográficos, seja hoje usada como ‘moeda de troca’ num mero negócio partidário, colocando o interesse deste ou daquele partido à frente do que é o interesse nacional”, diz.

O social-democrata classifica como “péssimo exemplo” aquele que se prepara para dar António Costa e não resiste em dar mais um bicada. “Quando um país navega assim, ao sabor das conveniências de cada momento, é de temer pelo naufrágio. Um retrocesso desnecessário.”

Também António Leitão Amaro, que assumiu o cargo de secretário de Estado da Administração Local quando o processo de revisão já estava em curso, lamenta o caminho escolhido pelo Governo socialista. Ou é de um eleitoralismo leviano e o Governo está a querer pagar favores políticos ao PCP e a uma parte da máquina do PS, ou é cegueira de quem não aprendeu nada no passado”, aponta.

O ex-secretário de Estado reconhece que o Parlamento pode e deve fazer “correções pontuais” sempre que entender necessário — tal como tem feito –, mas esses ajustes não podem, argumenta, redundar num aumento do número de freguesias. “Portugal precisa de freguesias fortes, não de mais freguesias. O país não pode suportar isso. Isso não pode acontecer e é profundamente errado. É estar a dizer aos portugueses que não se aprendeu nada”, remata.

Marcelo já disse ser contra revisões destas em vésperas de autárquicas

No livro O Outro Lado da Governação – A reforma da administração local, de Miguel Relvas e Paulo Júlio, antecessor de Leitão Amaro como secretário de Estado da Administração Local e da Reforma Administrativa, um dos testemunhos recolhidos é, precisamente, o de Marcelo Rebelo de Sousa, então ‘apenas’ analista político.

E o que dizia o agora Presidente da República? Com a troika em Portugal, as circunstâncias eram diferentes, como reconhecia Marcelo. “As reformas de âmbito nacional [devem] ser desencadeadas no tempo de maior vitalidade governativa — em regra, nos primeiros meses ou anos — e, se, como era o caso, as reformas são impostas por entidades externas, e constam de compromisso negociado e subscrito pelo principal partido da oposição quando ainda era Governo [uma referência ao Governo de José Sócrates], devem avançar enquanto esse partido não tem espaço político para rejeitar ou se desvincular, praticamente, do compromisso assumido”.

Além disso, e apesar de reconhecer pontos fortes e fracos no plano gizado pelo Governo PSD/CDS, Marcelo tinha uma posição de princípio bastante clara. “Fazer [uma] reforma [desta natureza] a menos de 8 meses da convocação de eleições locais é sempre visto como um gesto de campanha eleitoral ou inevitavelmente conexo. Para mais se implicar alterações estruturais nas autarquias”, argumentava Marcelo.

Recorde-se que se o Governo conseguir aprovar a nova revisão do mapa autárquico (algures em março) estará a apenas seis meses das eleições locais. Resta saber o que dirá Marcelo, o Presidente da República, se ou quando esse momento chegar.