Há pelo menos 26 espécies de animais, que podem entrar em contacto com o homem, que reúnem as características potenciais para serem infetadas com o SARS-CoV-2. A equipa da University College de Londres reduziu a lista de 215 espécies possíveis para duas dezenas, onde agora se poderá confirmar se são infetadas, de facto, e se têm capacidade para transmitir o vírus. Os resultados foram publicados, esta segunda-feira, na revista científica Scientific Reports, do grupo Nature.

A história começa com uma chave e uma fechadura. Sendo que a chave é a proteína S (spike), que dá o ar coroado ao vírus, e a fechadura é a proteína ACE2, que está na superfície das células que o vírus vai infetar. A isto ainda se junta o ferrolho, a proteína TMPRSS2, que quebra a spike em dois e permite a entrada no vírus nas células.

Talvez por experiência saiba que nem sempre as chaves encaixam perfeitamente nas fechaduras e que tanto podem abrir a porta facilmente, como ter alguma dificuldade ou não abrir a porta de todo. Foi isto que a equipa britânica analisou. Mas com uma ligeira diferença: imagine que se tratava de uma chave e fechadura magnética, cujo potencial para funcionarem juntas seria tanto maior quanto mais tempo conseguissem ficar ligadas (ou seja, dependiam da força do íman). Assim, as proteínas ACE2 com maior afinidade para a proteína S teriam, à partida, maior probabilidade de virem a ser infetadas.

Não que os investigadores se tenham munido de SARS-CoV-2 e de células dos 215 animais, mas conhecendo a estrutura da proteína S do vírus e das proteínas ACE2 e TMPRSS2 de cada espécie, conseguiram montá-las como um puzzle no computador e ver quais se ligavam umas às outras e se a ligação era estável ou não.

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“Este tipo de modelação é relativamente preciso. Mais do que há uns anos”, diz Celso Cunha, virologista do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, ao Observador.

Sabia-se já que a proteína ACE2 se manteve mais ou menos conservada ao longo da evolução. Ou seja, vários animais têm esta proteína na superfície das células e até é bastante semelhante entre espécies diferentes. No caso do homem, apresenta as maiores semelhanças com os grandes primatas (como gorila, chimpanzé ou orangotango), mas também com as ovelhas. Entre os 26 animais que apresentam as proteínas mais diferentes estão, por exemplo, os porcos e as raposas. Em geral, não parece haver grande afinidade com as aves, répteis ou peixes.

As 26 espécies de mamíferos com maior afinidade para o SAR-CoV-2 pode, potencialmente, entrar em contacto com o homem — Lam et al. (2020) Scientific Reports

Os investigadores demonstraram que existem 26 animais que podem ser infetados, mas é preciso agora demonstrá-lo em laboratório. “Foram relatadas infeções por SARS-CoV-2, no mundo real, em gatos, leões e tigres, cães e martas. E estudos da infeção em animais também identificaram gatos e cães como hospedeiros, assim como furões, macacos e saguins”, escreveram os autores do artigo.

“Este vírus é capaz de se ligar ao recetor [diz o estudo]. E significa apenas isso: que é capaz de entrar dentro da célula. Não significa que dentro das células se conseguia replicar com a mesma eficácia”, explica Celso Cunha, que não participou no estudo.

Ter a confirmação de que a chave funciona na fechadura não nos diz, como refere Celso Cunha, o que é que o vírus é capaz de fazer dentro da célula. É que apesar de a proteína ACE2 ser semelhante entre várias espécies, os componentes da célula que permitem ao vírus replicar-se — como uma fotocopiadora industrial em 3D — podem diferir muito daqueles que existem nas células humanas. Logo, podem não conseguir copiar o vírus e não haverá grande hipótese de o vírus provocar uma doença.

Depois, também depende das células que têm a fechadura certa para o SARS-CoV-2 — a proteína ACE2. Nos humanos, existe este tipo de recetor em vários órgãos, o que explica as complicações associadas no coração ou a nível neurológico, por exemplo. Mas noutros animais pode não ser assim.

Por fim, um vírus pode entrar na célula, usar a fotocopiadora industrial, mas depois não ter maneira de sair e ir infetar outros organismos — ou seja, transmitir-se, espalhando a doença. No homem, diga-se, o SARS-CoV-2 “adaptou-se bem e rapidamente e multiplica-se com eficácia”, esclarece Celso Cunha.

“Em resumo, o nosso trabalho não tem como objetivo fornecer uma medida absoluta do risco de infeção. Em vez disso, deve ser considerado como um método eficiente para rastrear um grande número de animais e sugerir uma possível suscetibilidade e, assim, orientar novos estudos”, escrevem os autores do estudo.

Assim, existem ainda muitos “ses” sobre o perigo que estes animais podem constituir para humanos, mas uma coisa é certa: se o vírus conseguiu viajar do morcego até ao homem, tornar-se altamente eficaz a usar a fotocopiadora humana e encontrou uma forma de deixar o hospedeiro para ir infetar outro, pode voltar a fazê-lo.

Ferramentas como a que foi usada pela equipa britânica não permitem acabar com os vírus que têm origem em animais, nem tão pouco avaliar o risco de infeção, mas são uma forma rápida e muito menos dispendiosa de selecionar os melhores candidatos.