Maria Manuel Mota quase dispensa apresentações. É diretora executiva do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (iMM), em Lisboa, foi Prémio Pessoa em 2013, Comendadora da Ordem do Infante D. Henrique desde 2005 e, recentemente, esteve à frente da criação de um kit de diagnóstico à Covid totalmente ‘made in Portugal’. Mas é, sobretudo, uma autoridade mundial no estudo da malária.
Como líder de equipa e diretora executiva do instituto, a investigadora de 49 anos já não faz experiências e ‘trabalho de bancada’, mas o que a continua a fazer trabalhar 16 horas por dia é o mesmo de sempre – responder a perguntas através daquele que considera o melhor método para compreender o mundo: a ciência.
Tinha 10 anos quando espreitou por um microscópio pela primeira vez e não se esquece daquela imagem ampliada de uma casca de cebola. Já licenciada em Biologia, haveria de levar mais 15 anos até uma nova imagem de microscópio lhe ter causado uma epifania. “Estava a fazer o mestrado em Imunologia e sabia que queria ser cientista, mas não sabia muito bem o que queria estudar. Um dia, numa apresentação no Instituto de Medicina e Higiene Tropical, vi aquela imagem e fez-se luz.”
Na parede estava projetada uma célula gigante. Era um macrófago, uma espécie de “carro-patrulha” do nosso sistema imunitário, que identifica e elimina as partículas estranhas ao organismo. Acontece que, dentro dela, estava um parasita da leishmaniose.
Foi absolutamente surpreendente para mim: é como ter um ladrão que escolhe viver nas instalações da Polícia Judiciária. Foi esse momento, essa imagem, que me fez perceber que queria estudar parasitas, perceber como é que, em termos evolutivos, passou a ser mais vantajoso aqueles dois organismos viverem juntos.”
No dia seguinte, nem de propósito, a apresentação foi sobre o parasita da malária, o tema e o orador – o investigador britânico Bill Jarra – tiveram imenso impacto nela. Dois meses depois estava no Reino Unido a fazer investigação no laboratório do cientista.
Maria Manuel Mota estuda esta doença há 25 anos, tempo suficiente para não acreditar em soluções fáceis ou a curto prazo. Não tem dúvida que vai ser criada uma vacina, mas não arrisca afirmar que será no seu tempo de vida. Afinal, apesar de este inimigo já ter sido descoberto há 140 anos, continua a morrer uma criança com malária a cada dois minutos, a maioria em África, onde a doença é endémica.
“Já houve quatro Prémios Nobel ligados à malária – dois deles há mais de cem anos – e, no entanto, cá estamos, em 2020, ainda a tentar encontrar uma solução”, lembra a cientista.
O responsável chama-se Plasmodium, um parasita que se transmite pela picada dos mosquitos fêmeas do género Anopheles infetados. E os desafios concretos para fazer frente ao inimigo são essencialmente dois: os medicamentos, muito eficazes numa fase inicial, deixam de o ser passados uns anos, porque o parasita desenvolve resistências. Já uma vacina, que seria a solução ideal, “é pretender fazer algo que é melhor do que faz a natureza.” Exemplifica com o sarampo: quando não havia vacina, quem sobrevivia, ganhava imunidade para a vida toda. Com a malária não é assim. “As pessoas que vivem nas áreas endémicas, mesmo depois de múltiplas infeções, ganham alguma resistência à doença, mas não ao parasita: continuam ao tê-lo em circulação.”
O que era apenas uma hipótese quando o projeto Plasmodium Exploitation of Liver-specific Methionine Metabolism / O Fígado poderá Revelar o Tendão de Aquiles da Malária, financiado pela Fundação “La Caixa” arrancou, em 2018, é agora uma certeza: o tendão de Aquiles do Plasmodium está mesmo no fígado do hospedeiro.
Para entender melhor porquê é necessário um relato do percurso deste parasita no nosso organismo. A picada do mosquito é a porta de entrada no corpo, mas, ao passo que nos répteis e aves ele se fica pelas células da pele, nos humanos e restantes mamíferos, ele faz uma coisa menos óbvia: empreende um longo e demorado caminho até ao fígado. Aí chegado, nas células hepáticas, faz a sua magia: cada um dos parasitas replica-se até dar origem a outros trinta mil. E é nesta altura que a pessoa adoece. Essa é fórmula do sucesso da malária.
A nossa grande pergunta é sempre a mesma desde 2002, altura em que observámos pela primeira vez que o parasita percorre várias células do fígado antes de se instalar numa delas: o que é que o fígado dos mamíferos lhe dá de especial que outros fígados não dão?”
No fundo, e como sabemos que um parasita vive à conta dos recursos do hospedeiro, é importante perceber que recursos são esses. Hoje os investigadores sabem a resposta: dá-lhes metionina – um aminoácido essencial que não produzimos, só recebemos através da alimentação, e que o fígado, ao contrário das células da pele, está constantemente a metabolizar. “O parasita, tal como nós, não produz este aminoácido e tem necessidade dele. Adaptou-se, deixou de usar o seu processo de metabolização e usa o nosso. Achamos que é por isso que se consegue replicar tanto.”
As experiências já feitas em modelos animais parecem confirmar isso mesmo. “Se num ratinho com deficiência de metionina lhe colocarmos parasitas da malária, em vez de cada um deles dar origem 30 mil novos parasitas, só dá origem a 100 ou 200. Porque não tem aquele recurso de que precisa. Esta descoberta, por si só, não vai fazer com que deixemos de ter malária no mundo, porque o parasita, ainda assim, consegue multiplicar-se. No entanto, se conseguirmos descobrir qual é a molécula que o parasita usa para transportar a metionina consigo – como já não usa a sua, tem de a transportar – podemos vir a conseguir bloquear mesmo a infeção”, explica. Nos próximos tempos é exatamente nisso que equipa de Maria Mota estará a trabalhar.
Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto PlasmodiumExploitationofLiver-specificMethionineMetabolism / O Fígado poderá Revelar o Tendão de Aquiles da Malária, liderado por Maria Manuel Mota, do iMM, foi um dos 25 selecionados (dez em Portugal) – entre cerca de 800 candidaturas – para financiamento pela Fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2018 do Concurso HealthResearch. A investigadora recebeu 500 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. O Health Research apoia projetos de investigação em saúde e as candidaturas para a edição de 2021 abrem a 20 de outubro e encerram a 3 de dezembro.