“Uma coisa é vermos os números e analisarmos as tendências numa tabela de Excel. Mas os números não nos dizem tudo, é preciso perceber o que está por trás destes números e qual é que é a realidade dos hospitais e dos centros de saúde, como é que os profissionais estão a trabalhar, qual é a pressão que estão a sentir, e que dificuldades têm”, disse esta manhã Patrícia Pacheco, diretora do serviço de Infecciologia do Hospital Fernando Fonseca, em entrevista à Rádio Observador.

A especialista, que desde o início tem sido crítica do Governo na gestão da pandemia, acusou a ministra de Saúde de estar fora da realidade que se vive atualmente nas unidades de saúde e de se recusar a tomar medidas eficazes para travar a disseminação do vírus. “Há um universo paralelo. Vivemos todos os mesmos números e o mesmo País, mas quem está no terreno não vive a mesma realidade que a ministra da Saúde“, disse.

“Acho isto extraordinário. Toda a gente está a alertar e a única pessoa que não está a olhar para isto é a senhora ministra, que desvaloriza tudo, e contraria cada declaração como se fosse uma perseguição. Não é: são alertas que vêm da angústia de quem está no terreno e percebe que a realidade é outra”, acrescentou, para depois vaticinar — “O risco de colapso do sistema de saúde é real. Se daqui a duas semanas estes números se mantiverem, entraremos em colapso”.

“Com estes números daqui a duas semanas entramos em colapso. Ministra não vive a realidade de quem está no terreno”

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Apesar de ainda estarmos a mais de dois meses do início do inverno e “ainda numa fase inicial”, alerta a diretora de Infecciologia do Amadora-Sintra, a capacidade dos hospitais já está em níveis de alerta, com algumas unidades na segunda fase, e outros até na terceira, dos respetivos planos de contingência.

“Não há camas suficientes dentro da capacidade instalada do Serviço Nacional de Saúde (SNS) ao momento atual para fazer face a um volume muito grande de doentes que surgem praticamente ao mesmo tempo. Estamos desde o início de setembro com números crescentes de doentes internados com infeção por SARS-CoV-2, a capacidade dos hospitais tem vindo a ser suplantada até”, assegurou.

Apesar do que tem sido garantido, e ressalvando não conhecer a realidade do norte do País, onde o Governo já garantiu que o SNS está a trabalhar em rede, a especialista afiançou ainda: a sul, na região de Lisboa e Vale do Tejo, “não há uma resposta regional”. “Há uma ajuda pontual, que é sempre nominal: precisamos de vagas hoje, telefonamos, pedimos e os hospitais, na medida das suas capacidades cooperam na transferência de um, dois ou três doentes”, explicou.

“Não é uma resposta em rede, organizada e coordenada. E desde há bastante tempo que temos apelado para que seja criada esta resposta, num sistema em tempo real, no fundo como o INEM ou o CODU [Centros de Orientação de Doentes Urgentes] têm, que vai distribuindo os doentes de acordo com as capacidades instaladas de cada hospital. Nos doentes Covid não existe nenhuma coordenação. Nunca houve interesse do Governo de fazer isso“, acusou Patrícia Pacheco.

Marta Temido responde a carta aberta de médicos: “Porque é que nos estão a empurrar?”

Outra falha do executivo, aponta a especialista, residirá na relutância em incluir os privados no esforço pontual de combate à Covid-19. A resposta de Marta Temido à carta assinada pelos bastonários da Ordem dos Médicos (atuais e anteriores) a pedir isso mesmo — a ministra a Saúde disse esta quarta-feira à noite, em entrevista à TVI, que parece que estão a tentar “empurrar” o Governo nessa direção —, será, determinou Patrícia Pacheco, apenas mais uma “prova de desconhecimento”.

“Se estamos a pedir para englobar na resposta nacional os privados e as entidades sociais é porque percebemos que sozinhos não vamos conseguir. Não é depois de o barco afundar que vão depois ver se vêm as boias salva-vidas das entidades privadas, a resposta tem de ser construída desde já”, defendeu a especialista antes de revelar que o Hospital Amadora-Sintra já contratualiza, todos os anos e sem pandemia, na altura do inverno, camas em hospitais privados.

“Isto são respostas que não chegam e estão dependentes de cada administração hospitalar e da realidade pontual de cada hospital. Tem de ser uma situação alargada“, acrescentou ainda a especialista, fazendo questão de garantir que trabalha e sempre trabalhou em exclusivo para o SNS.

“Os hospitais não estão desenhados para pandemias nem para infeções. Os espaços entre camas são  muito estreitos. Não estamos num país, como é a Suécia, em que os quartos são individuais em grande parte dos hospitais. Estamos a falar de Portugal, que tem um internamento em que há quartos de 3 camas, 4 camas, 6 camas. O risco real aqui é de fazermos infeções dentro do hospital“, explicou a especialista. “Como é que podemos reduzi-lo? Espaçando os doentes. E tudo isto leva a que os hospitais vão perdendo capacidade de internamento.”

Para além de poder dar uma ajuda a receber doentes infetados com o novo coronavírus, concluiu, a ajuda dos privados e das entidades sociais também poderia ser muito útil para colmatar outra falha, que com o aumento de novos casos também tenderá tendência a agudizar-se: “Não são só os doentes Covid, os outros doentes todos têm, e vão ter, sérias dificuldades de acesso à manutenção dos seus cuidados de saúde“.