A ciclosporina, um medicamento que inibe a resposta das células T do sistema imunitário, pode ser uma alternativa para o tratamento dos doentes Covid-19 com sintomas graves. Uma equipa de Madrid verificou que os doentes que tomaram uma determinada dose do medicamento, apresentaram uma taxa de mortalidade mais baixa. Os resultados foram publicados na revista científica EClinicalMedicine, do grupo Lancet.
Descobrimos que a sobrevida dos doentes que foram tratados com ciclosporina foi qualitativamente diferente em comparação com os pacientes que não foram usaram este tratamento. Na verdade, os doentes que receberam ciclosporina tiveram 76% menos probabilidade de morrer do que os pacientes que não receberam o tratamento”, diz Daniel Carnevali, chefe do Serviço de Medicina Interna do Hospital Universitário Quirónsalud, de Madrid, em comunicado de imprensa.
Antes de mais é preciso esclarecer que se trata de um estudo retrospetivo, ou seja, que olha para trás, para os tratamentos que foram feitos e tenta tirar conclusões sobre o que foi observado e sobre os dados que foram recolhidos na altura. É por isso que os investigadores podem afirmar que parece haver uma associação entre o uso de ciclosporina e a redução da mortalidade em doentes graves, mas não o podem afirmar com certeza.
Para confirmar que a ciclosporina pode ser usada no tratamento de doentes Covid-19 são precisos ensaios clínicos, em que doentes com as mesmas características são divididos em dois ou mais grupos. Os doentes são distribuídos aleatoriamente entre um (ou mais grupos) que toma ciclosporina (tratamento) e um ou mais grupos que tomam outros medicamentos ou um placebo (chamados grupo controlo). Só por comparação é possível dizer se o tratamento é mais eficaz que o controlo.
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Ainda não estamos nessa fase, mas os resultados obtidos dão pistas para os próximos passos. Depois, é preciso perceber, também pelos ensaios clínicos, qual a melhor altura para começar a tomar o medicamento, qual a dose, em que tipo de doentes (gravidade da doença, idade, comorbilidades, etc.).
Ciclosporina como último recurso
No início da pandemia, quando pouco se sabia do vírus e dos tratamentos que podiam ser feitos aos doentes, os médicos usavam os recursos ao seu dispor, como hidroxicloroquina (antimalárico), lopinavir/ritonavir (contra o VIH), glucocorticóides e dexamesatona, mas também tocilizumab (um anticorpo fabricado em laboratório) e ciclosporina.
Quando faltava tocilizumab, tinham de recorrer à ciclosporina, um inibidor das células T — usado normalmente em doentes transplantados e nas doenças autoimunes —, admite Daniel Carnevali, chefe do Serviço de Medicina Interna do Hospital Universitário Quirónsalud, de Madrid, e professor na Universidade Europeia, citado pelo El Mundo.
Quando vimos que [os doentes] respondiam, avançámos com o uso”, disse Daniel Carnevali.
Mas não basta arranjar soluções em cima das situações de emergência, é preciso olhar para trás e perceber se resulta ou não. Por isso, pegaram em 607 doentes, com características equivalentes (idade, doenças prévias, etc.), que tivessem mostrado doença Covid-19 grave (com pneumonia e necessidade de oxigénio), escolheram como período de entrada no hospital 10 de março e 15 de abril e avaliaram os tratamentos feitos e os resultados obtidos.
Usar a ciclosporina nas primeiras vezes foi um tudo ou nada para doentes que tinham dado entrada nas últimas 72 horas e que ainda não tinham respondido favoravelmente a nenhum tratamento. A resposta foi, geralmente, positiva, mas os doentes não estavam livres de efeitos secundários, como hipertensão ou lesões renais. E assim que os doentes passavam para os cuidados intensivos, o tratamento passava a ser dexametasona (um esteroide que também diminui a resposta do sistema imunitário).
Analisando todos os tratamentos, muitas vezes usados em combinação, o que os investigadores observaram foi que o tratamento com o anticorpo monoclonal (feito a partir de um único clone) tocilizumab aumentava o risco de morte e que a ciclosporina, a partir de determinada dosagem, diminuía significativamente a mortalidade observada.
O que os investigadores não conseguem determinar é se os tratamentos feitos anteriormente, ou até outros fatores, podem ter tido ou não algum efeito na resposta ao tratamento com ciclosporina — daí a importância de se fazerem ensaios clínicos.
Cilcosporina, o travão do sistema imunitário
Uma das consequências da infeção com SARS-CoV-2 é uma tempestade de citocinas, uma reação exacerbada e potencialmente fatal do sistema imunitário. A ciclosporina, ao interferir com as células T, reduz a reação exagerada. Mas só deverá ser usada depois de o doente já apresentar sintomas graves.
“Tivemos alguns doentes que estavam a tomar ciclosporina, antes de terem Covid-19, que mostraram ter uma produção de anticorpos nula ou muito fraca [perante a infeção com o coronavírus]”, conta Marc Veldhoen. “É uma das consequências do medicamento, por isso não pode ser usado para prevenir ficar doente nem no início dos sintomas de Covid-19”, alerta.
Mas se o sistema imunitário sobrerreage e há uma tempestade de citocinas, a ciclosporina parece ser uma boa solução para suprimir a resposta imunitária — um pouco como fazem os corticoides, como a dexametasona”, diz Marc Veldhoen.
O investigador confessa-se um pouco desiludido com os resultados negativos em relação ao tocilizumab, um anticorpo contra a interleucina 6 (IL6), uma citocina que desencadeia inflamação e contribui para a tempestade. Mas a verdade é que a IL6 é apenas um dos fatores envolvidos e o tocilizumab é uma opção terapêutica muito mais cara.