Expectantes com mais uma passagem da dupla Marques’Almeida pelo Porto, pisámos o terraço do novíssimo The World of Wine para assistir ao desfile da marca portuguesa. Já sabíamos que o momento seria raro, afinal é preciso recuar até até outubro de 2013 para recordar a última coleção que apresentaram em primeira mão em solo português — na altura, na ModaLisboa. Foi uma manhã, no mínimo, especial, pintada de amarelo — cor da alcatifa plastificada que cobria o recinto — e com as cores da própria cidade invicta que, avistada de Gaia e com um desfile de moda pelo meio, foi promovida a postal.

O momento seguiu uma cadência perfeita. Arrancou em tons de branco e com um light blue sublimado por aplicações de plumas. Vestiu-se, em seguida, de amarelo, preto e verdes tropa e atingiu o clímax quando o tie-dye e o acid denim tornaram o ambiente mais pesado, aquecido por tons alaranjados. Marta Marques e Paulo Almeida são portugueses — radicaram-se em Londres há quase uma década, mas é no norte do país que mantêm os laços que há mais tempo perduram. O sentimento de pertença enalteceu o desfile, a pandemia encarregou-se de estreitar a relação da marca com Portugal.

O desfile de Marques’Almeida, com vista para o Porto © Melissa Vieira/Observador

“Tínhamos uma viagem marcada para Portugal no dia 18 de março, ali no limite mesmo. Viemos com malas para ficar três semanas e ainda não nos fomos embora”, conta Marta, ainda a restabelecer-se da adrenalina própria do desfile. O confinamento, impossível de incluir nos planos, reteve-os. Longe do atelier londrino, à dupla restou tirar partido do interregno.

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“Parámos no que diz respeito ao trabalho, mas a nossa cabeça parou muito pouco”, continua. Três meses depois, em junho, lançaram reM’Ade, a linha de vestuário produzida a partir de restos de tecidos de coleções anteriores. Em setembro, na Semana da Moda de Londres, o Manifesto de Responsabilidade Ambiental e Social fixou as metas da marca para 2022. Em vez da habitual catwalk, aproveitaram o momento tornar ainda mais vocal o novo pensamento M’A para o amanhã.

“Estas questões estavam na nossa cabeça há muito tempo. O que fizemos foi reorganizar prioridades e começar a remar nesse sentido. Até aqui, simplesmente não tínhamos tempo, o que é uma estupidez porque estas é que são as coisas realmente importantes”, assinala. Paulo e Marta constroem a Marques’Almeida do futuro, um processo de tentativa e erro que, no caso da coleção apresentada este sábado, passa por não usar nenhuma fibra sintética que não seja reciclada, incluindo o famoso poliéster feito a partir de plástico retirado do mar, e por utilizar algodão orgânico certificado.

O desfile de Marques’Almeida © Melissa Vieira/Observador

“Esta é a primeira coleção daquela que vai ser a Marques’Almeida dos próximos tempos. O conceito de sustentabilidade implica criar um mundo melhor para as gerações presentes e futuras e as questões da diversidade e da inclusão são tão importantes como as ambientais”, adicionam.

Para isso, é essencial manter a marca em sintonia com as “gerações mais novas”, como dizem. Permanecer jovem não é, para a Marques’Almeida, uma questão de liftings, mas sim algo conseguido através das comunidades criadas em torno da roupa e de um estilo, mas também dos valores. No final do desfile, uma legião de embaixadoras portuguesas invadiu a passerelle. Para já, Paulo e Marta vão ficar, enquanto avaliam a possibilidade de voltar a Londres para a próxima fashion week, em fevereiro do próximo ano. Ambos falam nas saudades que têm das M’A girls inglesas. Lá, tal como cá, é tudo uma questão de laços.

As reticências de Hugo Costa e o comício de Júlio Torcato

O terceiro e último dia de desfiles na Alfândega do Porto voltou a instalar a moda no parque de estacionamento. Hugo Costa, o homem que tem propagado a ideia de um guarda-roupa comum aos dois géneros, pisou a passerelle improvisada em dois momentos. Primeiro, com a coleção outono-inverno 2020/21, que acabou por não apresentar na última edição. “Não o fiz só por mim, mas pela minha equipa. Eles trabalharam muito nisto, também mereciam ver o resultado”, justifica o designer, que até ao final do mês irá lançar uma versão melhorada da loja online com as peças apresentadas este sábado. Recebidos os aplausos da primeira parte, o tom mudou drasticamente. Costa antecipou do próximo verão, seja lá o que isso for.

O desfile de Hugo Costa © Melissa Vieira/Observador

A beleza e o sentimento de melancolia inerentes a “Doss”, coleção que parte da história do soldado e socorrista norte-americano da Segunda Guerra Mundial Desmond Doss, tomaram conta do ambiente. A paisagem arrefeceu, consequência de uma paleta dominada por branco, preto e azul. Silhuetas simples e fluidas foram sendo enriquecidas por bolsas e sacos, motivos florais ou estampagens manuais. Uma coisa é certa: nunca uma estação de Hugo Costa se revelou tão poética como esta.

“Precisava de dar um pouco de beleza às coisas e, de facto, poesia foi uma palavra que repetimos muitas vezes no processo. Mas há um carácter interventivo também. Enquanto vivemos este momento, vemos a extrema direita ganhar visibilidade em Portugal. A mim, que tenho filhos, assusta-me violentamente”, desabafa.

Mas Costa não foi o único a trazer o atual contexto político para o Portugal Fashion. Em vez de um desfile, formato com o qual já rompeu, o veterano Júlio Torcato organizou um comício. No palanque, um líder demagogo. Na assistência, manequins de plástico e gente de carne e osso com peças que remetiam para o conceito de uniforme. A visão orwelliana serviu outros propósitos, muito além da mera apresentação de uma coleção.

A apresentação de Júlio Torcato © Melissa Vieira/Observador

“A roupa quase passa para plano secundário. O importante é a palavra e a palavra de um ser mais ou menos político, super demagógico, controlador, mentiroso e que discursa num tom convincente, de forma a controlar e alienar um público”, explica ao Observador. A encenação, com recurso a um ator, não é alheia à atualidade, pelo contrário. Júlio fala em “políticos conhecidos, altamente demagógicos, que manipulam e controlam”, mas também na informação que nos escapa no meio da velocidade a que a consumimos. A coleção ficou mesmo para segundo plano, um risco calculado pelo criador, que a sacrificou por uma mensagem maior.

Alexandra Moura, o concurso Bloom e Manéis, o melhor final possível

Alexandra Moura subiu à invicta por mera formalidade de calendário. Depois de ter apresentado a coleção “Substrato” na Semana da Moda de Milão, a designer criou uma instalação para recordar o momento. Durante os três dias de Portugal Fashion, o vídeo do desfile foi exibido em loop dentro de um pequeno pavilhão coberto com o novo padrão assinatura da marca. Uma ação de charme, marcada ainda pelo lançamento da colaboração da da marca com a histórica Sanjo, oficialmente disponível para pré-venda desde este sábado.

Pelos diferentes espaços da alfândega passaram ainda a marca Concreto, os saltos altos de Luís Onofre e uma comitiva de marcas nacionais de calçado e acessórios, que se juntaram no segundo desfile coletivo desta edição. Depois de dois dias de apresentações dos residentes do Bloom, o concurso premiou dois estreantes — Maria Carlos Baptista e Marcelo Almiscarado destacaram-se entre os oito concorrentes. Cada um deles recebeu um prémio monetário de 4.000 euros, distribuído por duas coleções, e um estágio remunerado de nove meses na Sonae Fashion, além de terem garantido presença no calendário da próxima edição. A marca portuguesa Huarte conquistou uma menção honrosa.

O desfile de Alves/Gonçalves © Melissa Vieira/Observador

A 47ª edição do Portugal Fashion terminou da melhor forma possível. O regresso da moda portuguesa a uma passerelle noturna e pulsante, montada à beira Douro, era inevitável, sobretudo tratando-se dos mestres Manuel Alves e José Manuel Gonçalves. Na proposta deixada pela dupla, a sofisticação na qual assenta o léxico Alves/Gonçalves foi intercalada com elementos étnicos, resultado de técnicas manuais. Às silhuetas longas e cheias de movimento adicionaram elementos de streetwear. Um glamour underground que culminou com uma série de coordenados brancos, shot de energia e otimismo, ao som de uma banda sonora concebida por Conan Osíris.

Durante três dias, a 47ª edição do Portugal Fashion acolheu mais de duas dezenas de desfiles e apresentações por parte de quase 40 marcas e designers. Pela Alfândega do Porto passaram, segundo a organização, 470 pessoas — além de poucos visitantes, o programa voltou para o público especializado. Uma redução drástica ditada pela pandemia, num evento que chegou a registar cerca de 40 mil visitantes numa única edição, na era pré-Covid.

Na fotogaleria, veja as imagens dos desfiles que marcaram o terceiro e último dia de Portugal Fashion.