Ricardo Araújo Pereira disse por duas vezes, durante a mais recente emissão do seu programa de humor, que o cenário tinha sido deixado à porta de casa e que ele próprio o tinha montado. No fim levantou-se da cadeira, com um “ajudem aqui a desmontar, que isto ainda pesa”, e fez de conta que apeava a parafernália colorida que lhe serve de fundo. Sem querer até deixou cair a peça de um projetor de luz. Evidentemente, Isto é Gozar com Quem Trabalha.
O episódio de 1 de novembro do programa de entretenimento mais visto da televisão portuguesa teve de ser gravado em casa do apresentador e não ao vivo no Teatro Villaret, em Lisboa, como é costume — pela simples razão de que ele estava a cumprir quarentena e não podia sair de casa. Sem convidados, a emissão teve menos 10 minutos do que a habitual meia hora. As palmas não vieram da plateia de 166 pessoas, mas de três membros da família do apresentador, reunida no ginásio doméstico que Ricardo Araújo Pereira adaptou como estúdio provisório. A voz tinha algum eco, a iluminação fazia sombras e a imagem era estática, com apenas um plano. De resto, tudo igual.
O público aprovou e mais uma vez deu-lhe a preferência, frente ao concorrente da TVI Big Brother: A Revolução. Nas últimas semanas o formato humorístico tem registado 13,1% de audiência média, segundo dados divulgados pela SIC, o que correspondente a mais de 1,2 milhões de espectadores.
Mas como é que tudo se conjugou para que um programa com esta repercussão tenha tido, afinal, uma simples versão caseira? “Foi um desafio, uma coisa nunca feita em televisão, um misto de resiliência e generosidade”, resumiu ao Observador Anabela Ventura, agente de Ricardo Araújo Pereira (não se revê no termo “agente”, mas é assim que muitos a conhecem no meio televisivo). Começaram a trabalhar juntos em 1999, na Produções Fictícias, e são amigos próximos.
“Sem querer ser muito exaustivo, para não aborrecer os seus leitores com questões como desinfeção de assoalhadas, remoção de móveis e ligação de cabos, o resultado final foi obtido com o esforço conjunto entre a nossa equipa de produção e os profissionais da SIC”, acrescentou Ricardo Araújo Pereira ao Observador.
“Tentar por todos os meios”
A história da gravação caseira tinha começado poucos dias antes e fica a dever-se a um acaso. O humorista foi obrigado a isolar-se em casa por ter tido “contacto direto” com uma pessoa com teste positivo à covid-19 — como o próprio anunciou a 24 de outubro no Governo Sombra, o programa da SIC em que participa ao lado de Carlos Vaz Parques, Pedro Mexia e João Miguel Tavares. A quarentena veio a impedi-lo de fazer Isto é Gozar com Quem Trabalha no domingo seguinte, 25 de outubro. Mas o canal de Paço de Arcos não perdeu a oportunidade de rentabilizar a situação: Ricardo Araújo Pereira entrou em direto no Jornal da Noite mais ou menos à hora da emissão prevista e conversou durante oito minutos com Clara de Sousa. Ela no estúdio (a tratá-lo por “tu”), ele em casa por teleconferência (a tratá-la por “você”).
Logo aí, ficou anunciada a hipótese: “Para a semana vou tentar por todos os meios fazer o programa aqui em casa. Não sei ainda como. Alguém me vem deixar o cenário à porta e depois eu vou buscá-lo. Talvez, vamos ver, é melhor não entusiasmarmos o Daniel Oliveira [diretor de programas da SIC].” Assim veio a acontecer. Foi o apresentador quem fez questão gravar em casa.
Este programa entretenimento baseado em factos reais, que iniciou a segunda temporada a 20 de setembro (“2ª Vaga”, diz-se), é escrito por Ricardo Araújo Pereira e a sua equipa de guionistas e humoristas. Sete elementos: Cátia Domingues, Cláudio Almeida, Guilherme Fonseca, Joana Marques, José Diogo Quintela, Manuel Cardoso e Miguel Góis.
A produção tem dois intervenientes. A SIC, através da empresa GMTS (Global Media Technology Solutions), fundada em 2001 e detida pela Impresa, dona do terceiro canal. E ainda a Show Bees, empresa de agenciamento e produção de conteúdos criada em 2014 por Anabela Ventura.
A SIC fornece a logística técnica. A Show Bees tem os guionistas, o realizador Teotónio Bernardo, o assistente de realização Nuno Carvalho, o editor de conteúdos Pedro Vilela e o designer Luís Rodrigues (que faz as imagens projetadas acima do ombro direito do apresentador). E ainda Diana Coelho e Tomás Martins, assistentes de produção. Aliás, a inscrição do público que normalmente assiste à gravação “live on tape” é também feita pela Show Bees.
Afinal, havia outro cenário
No caso do programa gravado na tarde de 1 de novembro e transmitido nessa noite, a GMTS levou para junto da casa de Ricardo Araújo Pereira um carro de exteriores, para operar a gravação e a câmara à distância. O cenário foi mais ou menos montado pelo humorista. “Houve técnicos a ajudar, claro, mas durante a gravação só estava gente (e cães) da casa e eu nunca tive contacto direto com ninguém de fora”, indicou por escrito, em resposta a perguntas do Observador.
Por conta da SIC, o ginásio de casa tinha sido desinfetado com uma máquina de ozono, utilizada neste tipo de situações. Segundo fonte da estação, foram técnicos da GMTS, protegidos por máscaras, que entregaram as peças do cenário junto ao domicílio de Ricardo Araújo Pereira, em localização não divulgada. Quem carregou o material para dentro de casa, e recriou o plateau, foi o próprio.
A câmara que o filmou estava em cima de uma mesa, mas como esta não tinha altura suficiente foi necessário recorrer a uma caixa de garrafas de vinho. “Acabou por ser apropriado porque, como creio que os telespectadores habituais já notaram, o vinho tinto desempenha um papel fundamental na preparação deste programa”, ironizou o apresentador.
Mas há um detalhe: o cenário não era o mesmo que os espectadores estão habituados a ver no Villaret. O programa já teve gravações ao vivo fora de Lisboa, a primeira das quais há poucas semanas em Portimão e uma segunda que teria acontecido no Porto, não tivesse sido a quarentena forçada do apresentador. Por isso, a SIC já tinha um cenário simplificado para essas itinerâncias. “Para felicidade de todos é mais pequeno, leve e de fácil montagem”, pormenorizou Anabela Ventura, que é também produtora executiva do formato.
“Agora já posso sair” de casa
Quantos aos textos, tinham sido escrito nos dias anteriores a partir da sala de trabalho que a equipa do programa ocupa no edifício da Impresa, em Paço de Arcos. Cada guionista no seu computador e em reuniões à distância com Ricardo Araújo Pereira.
“Não pude sair de casa nunca e os meus companheiros de escrita não puderam cá vir. Comunicámos toda a semana por Zoom e por telefone para selecionar as imagens, discutir os temas e escrever o guião”, explicou. “O nosso editor de imagem, Pedro Vilela, foi enviando os vídeos [alvo das piadas do programa] por Whatsapp. Com o Luís Rodrigues, o artista gráfico conhecido por Insónias em Carvão, já costumamos comunicar à distância, porque ele não sai do covil onde faz aquelas feitiçarias.”
Se aparentemente se pode fazer humor em qualquer contexto, o cenário em casa significa que foi necessário tornar reconhecível, aos olhos dos espectadores, a identidade do programa? Ou porque sem o plateau habitual aquela personagem que Ricardo Araújo Pereira encarna não resultaria tão bem? “As duas coisas”, respondeu.
“Primeiro, a questão da formalidade: há um cenário, uma secretária e o apresentador está de fato e gravata. Essa espécie de solenidade indica que vão ser ditas coisas importantes e que vale a pena ouvir. Dizer coisas parvas num ambiente sério tem mais graça. Dizer coisas parvas num ambiente informal é bastante mais comum. Segundo, o programa é, digamos, frágil, uma vez que, televisivamente, é muito pobre: trata-se de um tipo sentado a resmungar durante meia hora. Se não houver qualidade na imagem, no som, na luz, em princípio ninguém quer ver. Que queiram vê-lo tal como é já nos parece um milagre”, rematou.
Nada indica que um tal situação volte a repetir-se. “Agora já posso sair” de casa, garantiu o humorista ao início da noite de terça-feira.