Eram mais de 10h30 e menos de 11h30 quando o tenente-coronel Sequeira, responsável pela Secção de Informações e de Investigação Criminal, lhe telefonou naquele dia 18 de outubro de 2017 a dizer que o material de guerra furtado em Tancos tinha sido recuperado na Chamusca — e que os seus militares de Loulé estavam lá. Só nesse dia o coronel Amândio Marques, segundo afirmou esta segunda-feira em tribunal, soube da participação da Guarda no processo que está agora a ser julgado.
Não é que até aí não soubesse que os seus militares estavam a auxiliar a Polícia Judiciária Militar (PJM) num processo relacionado com armas. Segundo o seu depoimento, enquanto diretor de Investigação Criminal da GNR, Amândio Marques nem sequer tinha competência para autorizar que os seus militares saíssem do Algarve no âmbito destas diligência para Pombal. Mas cabia-lhe a ele pedir a um superior e dar a resposta a Sequeira. E foi o que fez para duas situações: a 29 de agosto, o dia em que o militar Bruno Ataíde diz ter começado a falar com João Paulino sobre Fechaduras — à data seria para ele o principal suspeito do crime — e a 16 de outubro, um dos dias em que o militar, acompanhado com o guarda Gonçalves e o chefe sargento Lima Santos se deslocaram a Pombal para convencerem Paulino a dizer onde estavam as armas.
Nesse dia 16 de outubro, garante, o oficial pediu no entanto que a PJM fizesse um papel a oficializar o pedido. “Não te preocupes com isso, já esta tudo tratado”, ter-lhe-ão respondido. “Pedi um papel, porque não é habitual a GNR fazer investigação do tráfico de armas. Pelos vistos fiz mal”, disse a certa altura o oficial da GNR, para explicar que depois a informação recolhida podia servir para dar indicações ao restante dispositivo de como atuar em casos idênticos.
Os guardas Bruno Ataíde e José Gonçalves, no entanto, dizem que os encontros foram muito mais que esses dois. Já Amândio Marques garante que nada sabia sobre as viagens dos seus homens para cima e para baixo. Aliás, no dia do achamento das armas, ele próprio ligou ao coronel Luís Vieira, então diretor da PJM e também arguido no processo, a perguntar-lhe o que faziam os seus homens naquele local. Ele respondeu-lhe que ligasse ao coronel Estalagem.
“Ele disse-me que estavam com a equipa da PJM chefiada pelo major Pinto da Costa na zona de Tomar no âmbito de outra investigação. Estavam a dar apoio e que por voltas das 3h00 receberam uma chamada anónima. E que ele, coronel Estalagem, deu indicação no sentido de apurarem da veracidade da chamada anónima”, recordou, lembrando mesmo que Estalagem lhe falou num local próximo da ponte da Chamusca.
Mais tarde Amândio Marques acabou por especificar que este processo era um caso de tráfico de armas que envolvia “uns ciganos”. O mesmo que o Ministério Público diz que foi usado pela PJM para camuflar a investigação ao furto em Tancos que estavam a fazer à revelia da PJ civil.
Uma reunião “surreal” com o amigo Luís Neves
Nesse dia da recuperação das armas, contou ainda, o Comando Geral da GNR chamou-o para uma reunião que tinha sido convocada no Departamento Central de Investigação e Ação Penal. “Para mim o que não batia certo era eles estarem no âmbito de outro investigação e a comunicação dar ênfase à PJM e à GNR”, constatou.
E foi o que disse nessa reunião, que segundo ele foi presidida pelo então diretor, o procurador Amadeu Guerra, pelo agora diretor da Polícia Judiciária, Luís Neves, o major Estalagem e o major Pinto da Costa da PJM. Uma reunião que o militar descreve agora como “surreal”, porque estavam sempre pessoas a entrar a sair da reunião, incluindo o inspetor da PJ que acabou por redigir a ata — e que estava frequentemente ao telefone com o pessoal da PJ civil que entretanto chegara a Santa Margarida, onde estavam as armas recuperadas. “A ata normalmente é assinada por todos, nunca assinei ata nenhuma”, disparou. Na audiência, o arguido major Pinto da Costa abanou a cabeça, mostrando que também ele não teria assinado.
Depois dessa reunião, o coronel — que é amigo de longa data de Luís Neves — diz ter ido beber um café com Luís Neves. Recusa tê-lo ouvido falar em “traição” como já se avançou no processo, mas sublinha que ele o questionava várias vezes se não achava a operação de recuperação de armas estranha. “O que eu sei e que acho estranho sendo a recuperação de Tancos é a GNR estar lá no âmbito dos ciganos, como é que havia uma chamada anónima?”, terá dito.
Nova reunião com a PJ e com os procuradores, mas na GNR
Meses depois, em março de 2018, Amândio Marques acabaria por chamar Luís Neves e os procuradores que investigavam o assalto a Tancos, João Melo e Vítor Magalhães, para um “almoço de cortesia” na sede da Investigação Criminal, em Alcabideche. “O Luís Neves trouxe-se uma medalhinha e tudo”, recordou. Primeiro mostrou-lhes as instalações, depois acabaram por falar de Tancos quando almoçavam. No final, o oficial acabou por entregar o relatório que tinha sobre o caso — um documento que consta no processo como tendo sido assinado pelo sargento Lima Santos a 20 de outubro e que fala no processo de tráfico de armas “dos ciganos” que a PJM estava a investigar. “Dei-lhe os documentos todos que não estavam assinados”, diz.
Alguns advogados de defesa ainda questionaram porque tinha entregado documentos não assinados durante o almoço, mas o juiz que preside ao coletivo travou logo raciocínio. “O arguido já disse que estavam lá os procuradores titulares do processo”.
Os documentos têm sido um tema muito debatido em todo o processo, uma vez que a maior parte das diligências feitas pelos militares não foram alvo de qualquer relatório e não estão escritas em lado algum. “Isto parece que é tudo uma coisa feito no submundo e nos undergrounds“, disse a certa altura o arguido. “ Mas pediram-me para fazer transcrições no processo EDP e no BES e nada ficou escrito”, exemplificou, afirmando que o próprio Luís Neves chegou a fazer-lhe pedidos de colaboração idênticos e que também nada ficou escrito.
“Toda a gente está aqui porque ninguém pediu documentos. Eu pedi documentos e estou cá na mesma”, disse.
A incerteza sobre Paulino e as antenas
De manhã foi a vez de um dos três guardas da GNR que negociou com João Paulino a entrega do armamento de guerra, furtado em Tancos, falar. José Gonçalves diz que chegou a pensar que ele estaria a fazer perder o tempo da polícia e que nem sequer sabia do caso. “Duvidei em muitos momentos que Paulino estivesse a dizer a verdade”, afirmou. E que só acreditou neste informador quando, naquela madrugada de outubro de 2017, viu as armas num descampado na Chamusca.
“Ele não atava nem desatava, parecia que nos estava ali a dar uma grande balela”, disse esta segunda-feira o militar no Tribunal de Santarém, depois de o seu colega Bruno Ataíde — amigo de infância de Paulino — ter terminado o seu depoimento.
Como um ex-fuzileiro planeou o assalto a Tancos. E se arrependeu de seguida
Gonçalves confirma as diligência que fez no processo a pedido da Polícia Judiciária Militar mas afirma que no decorrer das negociações chegou a perder a fé no arguido que já assumiu ter assaltado os Paióis Nacionais de Tancos, porque às tantas chegou a pensar que ele estaria ali a fazê-los perder o tempo e “quilómetros para trás e para a frente”, sem nunca chegar a dar a informação. Quase como se não tivesse acesso à informação. “Até ao dia do achamento fez-nos andar a ver cento e tal casas, para nada!”, afirmou — lembrando o que Ataíde já tinha testemunhado, de que PJM e GNR fizeram um levantamento de casas na zona de Castelo Bode e depois fizeram várias diligências para descobrir se correspondiam a um das informações fornecidas por Paulino.
Uma conclusão que tira de tudo o que os colega Bruno Ataíde e sargento Lima Santos lhe transmitiam a ele e à PJM, uma vez que ele participava na operação, mas não acompanha os dois militares nos encontros propriamente dito com Paulino — que aconteciam sempre dentro de um Volkswagen fornecido pela própria PJM. Gonçalves ficava sempre no carro com os militares da PJM, que monitorizavam os encontros à distância.
O guarda esclareceu também que lidou com Paulino enquanto informador, garantindo que para ele o suspeito do assalto seria Paulo Lemos, ou Fechaduras — dada a descrição da PJM sobre a forma como foram arrombados os paióis.
Estes encontros terão acontecido em setembro mas, segundo contou, logo após o furto a Tancos, em finais de junho de 2017, o seu chefe sargento Lima Santos já lhe tinha pedido informações sobre o Fechaduras. “Disse-me que tinha o pedido de colaboração da PJM, não me disseram porquê, mas sendo quem era eu entendi logo que devia ser Tancos”. Pouco depois o próprio Comando Geral da GNR emitiria uma comunicação a todos os militares dando conta de que qualquer informação útil sobre Tancos seria entregue à PJM, pelo que nunca suspeitou que estivesse a ser cometida “qualquer ilegalidade”.
Dia 5 de Tancos. Para a polícia, Paulino era um informador ou um participante no crime?
Como já tinha detido uma vez Fechaduras, foi o guarda Gonçalves que passou a informação de que ele se chamaria Paulo Lemos, assim como algumas imagens e moradas suas. Só no final de agosto voltaria a ser contactado por Lima Santos sobre o tema, tendo sugerido às chefias que falassem com o guarda Bruno. “Porque era nascido e criado em Albufeira e eu só vivia ali há 12 anos”, disse.
Bruno Ataíde acabaria por telefonar ao amigo João Paulino por, como já explicou em tribunal, este seria, por seu turno, amigo do homem que partilhava casa com Fechaduras. Depois deste contacto telefónico, terá sido o próprio Paulino a procurar pessoalmente Ataíde dando origem a esta série de encontros a duas versões distintas no tribunal: os militares da GNR garantem que falaram com ele como informador sem saber que era ele o autor do crime, enquanto Paulino diz que eles sabiam e que lhe prometeram proteção caso devolvesse as armas.
Antes de Gonçalves, Bruno Ataíde ainda terminou a sua inquirição, levantando suspeitas quanto ás localizações de telemóveis que a PJ usa como prova. Essas antenas mostram que ele esteve na zona da casa da avó de Paulino, perto de Tomar, como se os militares tivessem colaborado no transporte das armas para a Chamusca. Ataíde recusa completamente tê-lo feito e lembra que esta análise às antenas nem sequer teve em conta os azimutes, logo é impossível ter uma localização exata dos telefones dos militares à data.