A mais recente corrida ao supermercado não foi motivada por um panfleto de promoções, por um dia de descontos excecionais ou pelo receio de que o papel higiénico ou outros bens essenciais pudesse faltar na despensa. Desde a última segunda-feira, centenas varreram os expositores do Lidl. No caso, não é a moda nem o seu jogo paradoxal de diferenciação e imitação que devemos responsabilizar. O fenómeno resulta de uma manobra de marketing que se revelou infalível — ou “absolutamente genial”, nas palavras de Catarina Pestana, fundadora e diretora criativa da Bang Bang Agency.

Ténis, chinelos, meias e t-shirts — uma coleção de produtos básicos, sem vestígios de brilhantismo no que toca ao design e que, pelo intervalo de preços (dos 3,99 aos 14,99 euros), não se distingue propriamente por uma qualidade de excelência. O que poderá então explicar o fenómeno que, antes do lançamento em Portugal, já tinha provocado uma corrida frenética às lojas noutros países europeus?

Na origem parece estar um velho conceito: a especulação. Desde o início que as peças são apresentadas como uma edição limitada, um lançamento especial que já havia esgotado noutros mercados. Isso rapidamente desviou o foco das prateleiras do supermercado alemão, entretanto vazias, para os principais marketplaces. No eBay, um par de ténis chegou a estar à venda por 2.000 euros. O aparato estava criado e a atenção dos consumidores garantida. Dada a excentricidade o fenómeno, quem resiste a passar pelo Lidl?

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“Do ponto de vista do marketing, é absolutamente genial”

“Fico encantada com este tipo de fenómenos”, desabafa Catarina Pestana, ao expressar o entusiasmo óbvio com que uma estratega da área do marketing assiste ao frenesim. “Percebo que tenha gerado alguma polémica, sobretudo no que diz respeito ao que deve ser encarado como prioritário no atual contexto, mas, do ponto de vista do marketing, é absolutamente genial”, continua.

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Catarina sublinha, precisamente, a chegada dos artigos, em particular dos ténis, às plataformas de classificados a preços exponencialmente inflacionados. Poderá ter sido a própria cadeia a dar o primeiro passo? A teoria é possível e, para a especialista, igualmente meritória. Mas também é possível que a comunicação digital tenha sido o suficiente para acender o rastilho. “As pessoas estão muito mais atentas e disponíveis para tudo o que acontece na esfera digital — o ano de 2020 está totalmente marcado por isso. Qualquer investimento que as marcas façam tem repercussões enormes”, explica.

O lado repressor de uma pandemia que dura há meses pode, igualmente, potenciar a adesão do público à oportunidade de adquirir um produto limitado e a um preço convidativo. Veja-se a Finlândia, onde o lançamento da coleção praticamente fez com que dezenas de clientes se esquecem do risco de contágio e avançassem, sem hesitar, na direção dos expositores. Escusado será dizer que os ténis desapareceram em minutos. Igualmente ávidos, também os belgas, os britânicos, os alemães e os holandeses fizeram da coleção um sucesso levando-a do supermercado para as plataformas de e-commerce.

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“Por muito que exista uma estratégia, ninguém consegue prever até onde é que aquilo vai chegar. Não sei o que é que estava previsto, mas independentemente de ter sido pensado do ponto de vista estratégico ou não, o resultado é absolutamente brilhante”, acrescenta Catarina. “O facto de ter esgotado nas lojas, dos produtos começarem a surgir noutros canais e até de algumas pessoas terem começado a ridicularizar a situação fez com que se tornasse viral.

O próximo passo? Para a marca, mas também para a sociedade de consumo, o futuro está em aberto. “É óbvio que isto abre a janela para o Lidl desenvolver outros produtos”, assinala Catarina. Mas essa é apenas a consequência mais expectável. Fala empolgada no possível interesse de colecionadores ou artistas plásticos que, no limite, poderá levar estes produtos para uma galeria. Faz referência a um mercado, o português, pouco dado a ações de guerrilha. Em todo o caso fantasia com uma eventual resposta de cadeias concorrentes.

“Há aqui pano para mangas. E não deixa de ser um alerta engraçado para as marcas perceberem como é que se podem valorizar. O Lidl ganha awareness, não vai ficar rico a vender sapatilhas. Assim como quem as usa o faz porque é um statement, não porque são umas boas sapatilhas”, conclui.

Lidl Fan, a coleção que nasceu no Dia das Mentiras

Parece uma história encomendada a um departamento criativo, mas aconteceu e é relatada pela própria cadeia de supermercados. A ideia de vender merchandising com o logotipo e as cores da marca surgiu na Alemanha a 1 de abril de 2019, quando, no Dia das Mentiras, o Lidl publicou nas redes socais a imagem de uns ténis inspirados na própria imagem, como se fossem um futuro lançamento. A brincadeira gerou inúmeros pedidos para que o artigo fosse, de facto, produzido e comercializado.

“Para dar resposta aos pedidos dos seus fãs, o Lidl produziu algumas unidades de ténis com o formato logomania Lidl para um passatempo nas redes sociais. O sucesso foi tanto que os premiados acabaram por colocar os mesmos à venda no eBay, por valores exorbitantes, que chegaram aos 2.000 euros por par”, indica fonte do departamento de comunicação da empresa em Portugal, questionada pelo Observador.

Retirado do Instagram

O caminho foi só um: lançar uma coleção, com mais artigos e maiores quantidades. Em Portugal, a empresa tem usado as redes sociais para medir o interesse dos clientes na coleção. Além dos memes, fotografias e vídeos, nas próprias contas, o Lidl fala num “engagement acima da média, em comparação com as publicações da marca com melhor performance”.

Sem que ainda tenha esgotado, a cadeia afirma ter vendido mais de metade da coleção nos primeiros três dias. As meias e os chinelos para homem foram os artigos com maior procura, segundo destaca o mesmo departamento. Contudo, o sucesso não acelera planos. A coleção Lidl Fan continua a ser “limitada ao stock existente” e “não está previsto, de momento, o aumento da produção”. Quanto a futuras coleções, sabe-se apenas que o tema está em estudo.

Logomania, a receita que continua infalível

Há algo inegável em torno da coleção do Lidl — sobretudo no que diz respeito aos ténis e aos chinelos. São um produto kitsch e isso faz especial sucesso junto de quem se pauta por uma afeição irónica a absurdo e ao inusitado. Tiago Escada Ramos, colecionador de ténis e consultor, recorda alguns dos extremos a que esta tendência já conduziu o mercado.

A Balenciaga, marca versada em promover o corriqueiro a artigo de luxo, protagoniza alguns casos paradigmáticos, da versão de 2.000 euros do saco Ikea ao lançamento dos Crocs plataforma. De relembrar é também a forma como a Vetements se apropriou do logotipo da DHL para apresentar uma das peças mais icónicas de 2016. Se há quatro anos, o Lidl ter-se-ia adiantado ao setor do luxo, em 2020 parece ter colhido os frutos de uma logomania que perdura no tempo.

Os Huarache Free, a primeira imagem na cabeça de Tiago Escada Ramos, quando viu os ténis da coleção Lidl Fan

“Conheço pessoas que compraram por diversão, para recordarem 2020 como o ano insólito que foi”, introduz. De olho treinado, o que lhe veio à cabeça quando viu, pela primeira vez, os ténis do Lidl foram os Huarache da Nike. A base está lá, de ar relativamente robusto e confortável, mas “alguns componentes que tornariam a produção mais cara”.

Mas para Tiago, co-fundador do grupo Sneakers Love Portugal, é a margem para lucrar com a revenda que caracteriza o fenómeno. “É normal que as pessoas aproveitem. Hoje, qualquer miúdo de 15 anos tem acesso a uma plataforma dessas e vende o que quiser”, refere ao Observador. Contudo, diz que a febre parece estar a dissipar-se. “Há uns meses ainda se viam leilões com preços dez ou 20 vezes mais altos. Era por ser um produto limitado”, explica, alegando que o lançamento da coleção em mais países e a reedição nos primeiros terá começado a banalizar o achado.

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Em Portugal, menos de uma semana após o lançamento, ainda há peças à venda, ao mesmo tempo que a afluência às lojas foi, de longe, mais pacata do que na Finlândia, por exemplo. O OLX está, contudo, repleto de ofertas discrepantes. Os menos ambiciosos comercializam chinelos a 20 euros (eram 4,99 euros) e ténis a 24 euros (em vez dos 14,99 euros marcados na etiqueta). Sobretudo este segundo produto surge noutros anúncios com valores largamente inflacionados — 40, 50, 150 (com meias incluídas) e até um anúncio que pede mil euros pelo famoso par, e sem meias incluídas. Manobras humorísticas, mais do que comerciais, embora façam igualmente parte de um fenómeno que, na última segunda-feira, toma conta das redes sociais.

De Ronaldo à Misericórdia da Azinhaga. O fenómeno nas redes sociais

É impossível deter o ímpeto criativo da internet, sobretudo quando um tema como este se torna viral e fica mesmo a jeito. Mas antes de lá chegar, embora a coleção venha de uma cadeia de supermercados e não de um conceituado designer, as peças têm proliferado nas habituais imagens de street style que povoam as redes sociais. Contudo, esse é apenas um dos barómetros para determinar o sucesso de uma estratégia comercial. O outro é, obviamente, o manancial de memes e montagens.

A começar por cenas icónicas do cinema como o interrogatório de Sharon Stone em “Instinto Fatal”. Veja as restantes na fotogaleria:

10 fotos

A moda do Lidl também chegou aos utentes da Santa Casa de Azinhaga, no concelho da Golegã. No Instagram, três deles posaram para os seus seguidores com peças da coleção: ténis, meias, chinelos e t-shirt.

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