No final de novembro do ano passado, Dmitri Petrovykh regressou a Portugal com “uma informação privilegiada”, depois de uma viagem relâmpago à cidade de Suzhou, na China, para um encontro de investigadores. Enquanto atravessamos o grande pátio do Laboratório Ibérico Internacional de Nanotecnologia (INL), em Braga, pisando os paralelepípedos ladeados de relva fofa, o cientista conta, sem rodeios, que, nessa altura, havia já “rumores do surto de uma doença respiratória grave”. A sua fonte “excecional” é oriunda de uma localidade chinesa onde se começaram a produzir os primeiros testes à Covid-19 com certificação. E, como ela trabalha em Singapura – país onde eclodiram, logo em janeiro de 2020, casos da nova doença – essa era, para Petrovykh, a evidência informativa de que “algo sério” estava a desenvolver-se naquela parte do globo.
Em breve, pensou o investigador norte-americano nascido na Rússia, “seria inevitável que a doença misteriosa se tornasse um problema mundial”. Enquanto cientista e cidadão preocupado, começou de imediato a antecipar o que poderia fazer com essa informação. Por isso, em janeiro, “quando começaram a aparecer as preocupantes notícias sobre o contágio mundial da nova pandemia”, este físico de formação – que é também especialista corporativo do INL – já tinha uma ideia sobre os próximos passos a dar. “Tínhamos de desenvolver uma investigação diferente, disruptiva e relevante, aproveitando as múltiplas especializações do INL”. Só ainda não sabia como.
Provar o que não está “inventado”
Numa corrida contra o tempo e depois de dezenas de reuniões com mais de 15 especialistas de diferentes áreas, a ideia do que é hoje o COUNTED (Coronoavirus Transmission, Count and Detect), projeto que quer desenvolver um teste à Covid-19 acessível a todos, surge na primavera de 2020.
“O que precisamos é de um teste que possa ser feito em larga escala com uma resposta que tem de ser rápida, idealmente num minuto, e que possa ser barata”, explica o investigador ao fim de um longo preâmbulo sobre o projeto. A ideia é ambiciosa: identificar pessoas infetadas pelo vírus SARS-CoV-2 pela via aerossol, de forma a evitar a transmissão e ajudar a controlar a pandemia.
A grande batalha contra esta pandemia é a prevenção, porque a pessoa começa a infetar as outras antes mesmo de saber que está contaminada”, diz Dmitri Petrovykh enquanto se apoia na mesa laboratorial. “Não temos ainda uma grande capacidade de testagem em grande escala, por isso, precisamos de um teste que as pessoas possam fazer todos os dias, antes de sair de casa, e depois de entrar em casa.”
O COUNTED junta uma equipa de 25 pessoas. É um dos projetos de investigação cofinanciado pelo COMPETE 2020 na sequência do concurso lançado em maio para apoio a empresas e centros de investigação que desenvolvam produtos e serviços de combate à pandemia. Graças ao Aviso 15/SI/2020, 29 milhões de euros de fundos comunitários foram distribuídos regionalmente (pelas Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regionais) ou a nível nacional (pelo COMPETE 2020) por 146 empresas ou consórcios, selecionadas a partir de 212 candidaturas. O INL foi um desses casos, tendo recebido cerca de 400 mil euros para ajudar a suportar o investimento de meio milhão de euros necessários para desenvolver o projeto.
Petrovykh é o coordenador desta investigação aplicada. Expansivo, rigoroso na explicação, gosta de detalhar e expressa-se muito com as mãos, tal como um maestro de batuta em punho. Domina grande parte da conversa. Enfatiza que o COUNTED é um consórcio liderado pelo INL e que envolve a CELOPLÁS – Plásticos para a Indústria, S.A. –, que está a desenvolver o protótipo do recipiente que vai recolher o ar exalado pelos utilizadores, a DTx Digital Transformation CoLab, responsável pelo design que possa ser manufaturável e o respetivo material, e o 2CA – Centro Clínico Académico, parceiro médico para a testagem e respetiva recolha das amostras.
“Uma das maiores dificuldades desta submissão [a fundos comunitários] era que ainda não estava provada a nossa solução invulgar”, reflete o líder da investigação. Ao mesmo tempo, continua, “para responder a uma pandemia propomos um projeto de uma investigação de um ano que, normalmente, demoraria pelo menos quatro”. Ou seja, estamos perante um processo iterativo, fundamentado nos dados, onde é preciso “saltar muitos passos” devido à urgência. “É uma iteração arriscada, desafiante, não conseguimos concentrar-nos em tudo, mas estamos confiantes porque temos indícios de bons resultados”, explica enquanto ajusta a máscara ao rosto.
Na prática, se tudo correr conforme o previsto, o resultado final, provavelmente no primeiro semestre de 2021, será um teste baseado na nanotecnologia. Mais especificamente no campo dos microfluídos, cujo segredo de detecção do vírus está num chip, ao contrário dos atuais testes biológicos.
O cientista que veio do frio
O desafio das reuniões semanais da equipa do COUNTED tem sido o diálogo de vários campos do saber. São todos de áreas diferentes e “isso enriquece o projeto, porque nos obriga a olhar para os problemas de forma integrada, encontrando soluções mais rapidamente”, diz Petrovykh.
O investigador de 46 anos está habituado a pisar terreno multidisciplinar há duas décadas. Tem trabalhado, sobretudo, com biólogos, químicos, engenheiros e cientistas de materiais, desde pesquisa fundamental a aplicada. Está no INL há dez anos. Até tem “fotos deste edifício sem janelas”, evoca, nostálgico, recordando que integrou as primeiras equipas de investigadores.
O Laboratório Ibérico Internacional de Nanotecnologia, sediado em Braga, foi inaugurada em julho de 2009, num esforço conjunto dos governos de Portugal e Espanha. É considerado um dos centros de excelência de investigação mundial. Quem o vê de fora, facilmente consegue enquadrá-lo no imaginário visual da ficção científica: a fachada arredondada lembra uma nave espacial, os vidros esverdeados das janelas lembram um complexo futurista. Foi construído com controlo de vibrações e campos eletromagnéticos e tem um laboratório de biossegurança (clean room) onde cientistas de viseiras e fatos brancos dos pés à cabeça vão desempenhando as suas funções. Depois, é uma espécie de torre de babel, onde colaboram cerca de 250 investigadores oriundos de mais de trinta países.
Cruzamo-nos com alguns nos corredores. Vimos vários a trabalhar, alinhados nas dezenas de secretárias, perfiladas de forma paralela, na generosa área de open space, sobre as quais repousam, sobretudo, garrafas térmicas. O próprio coordenador do COUNTED, com cidadania norte-americana, é exemplo dessa multiculturalidade. Trabalhou nos Estados Unidos, vive em Portugal, cresceu na Suíça e nasceu na Rússia.
Desvelada ao microscópio, a história de vida de Petrovykh tem elementos que facilmente inspirariam um filme. Factos: primeiro, a cidade onde nasceu, Protvino, cem quilómetros a sul de Moscovo, tem no brasão o símbolo de um protão e é considerada uma cidade científica, que pertencia à rede de pesquisa do império nuclear-militar-industrial soviético. Depois, é a morada do Instituto de Física de Altas Energias, onde, em 1978, o cientista Anatoliy Bugorsky foi alvejado por um feixe de radiação mortal e sobreviveu. Mais: entre 1987 e 1991 o maior projeto da então União Soviética que desafiava os limites da ciência, estava aqui a ser construído: o maior acelerador sincrotrão de protões do mundo. A cidade é uma espécie de Santo Graal da Ciência.
E há ainda a herança familiar: os pais de Petrovykh também são cientistas. Formaram-se em ciência aeroespacial, mas acabariam a trabalhar em Física de Alta Energia na reconhecida Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN), na Suíça. Da janela da casa de infância, em Genebra, o hoje coordenador do COUNTED construiu o primeiro sonho profissional. “Queria ser lixeiro, porque achava fascinante aqueles fatos cor-de-laranja”, graceja. “Os meus pais ficaram surpreendidos, mas, depois, aos 6 anos, já dizia que queria ser cientista como eles.”
Mais sério, Dimitri Petrovykh compara o atual momento pandémico a um ataque bélico invisível e letal. “Faz-me lembrar a época pós-11 de setembro [de 2001], quando eu estava em Washington, DC, a trabalhar num laboratório. Pouco depois surge a história do anthrax e tivemos de nos adaptar para prevenir, cientificamente, o bioterrorismo”. A experiência do coordenador do COUNTED em centros de excelência e a relação privilegiada de contacto com cientistas de topo pelo mundo fazem dele uma peça-chave na gestão de todo este projeto que promete colocar os testes à Covid-19 acessíveis a cada um.
O dispositivo deverá custar cerca de cem euros e os componentes descartáveis, como o chip, entre um e cinco euros. O coordenador não revela tudo, hesita em fotografarmos o chip, uma vez que como estão, ainda, em fase de testes, o risco de espionagem industrial pode estragar o segredo da investigação.
O especialista em microfluídos
Sentado na mesa laboratorial, o engenheiro estónio Alar Ainla – até então em silêncio a escutar Petrovykh –, sossega o coordenador do COUNTED. Garante que podem mostrar o dispositivo que vai ler o chip, onde será integrada a amostra de ar exalado recolhida de cada pessoa, para analisar se está ou não infetada com Covid-19. Retira o chip, sensivelmente do tamanho de um cartão SIM de telemóvel, guarda-o à parte e deixa-nos fotografar o dispositivo. Não será o aparelho final, mas permite compreender como vai funcionar.
Ainla é um homem de poucas palavras e não gosta de falar de si. Tem nas mãos pipetas científicas, ensaiando demonstrar como será o mecanismo de recolha do líquido do ar exalado, colocando-as em contacto com tubos esguios ligados ao pequeno dispositivo eletrónico.
Quando era pequeno, a “ciência não fazia parte do vocabulário”. Mas já sabia que “queria ser explorador”. Imaginou-se, por exemplo, a ser o capitão Nemo em Vinte Mil Léguas Submarinas, de Júlio Verne. Diz que não tem “grandes sonhos, porque a vida é feita de pequenos sonhos”. Um deles, agora, “é que a pandemia acabe de vez”, para poder reencontrar-se com a família, que não vê há quase um ano.
O cientista de cabelo rebelde e barba grisalha, natural de Viljandi, na Estónia, é o responsável pelo desenvolvimento do chip de microfluídos: o segredo do COUNTED. “Se não fosse o contributo dele, não estaríamos a trabalhar esta tecnologia para a detecção do vírus [SARS-CoV-2]”, enfatiza Petrovykh, com orgulho do trabalho do colega.
O desenvolvimento de chips faz parte do campo de microfluídos. Trata-se de uma área de investigação que abarca o desenvolvimento de microdispositivos de análise química – que permitem realizar operações de grande complexidade, através de processos de reação, separação e análise de produtos de reação, num único dispositivo.
Ainla é um especialista de excelência no assunto. Durante o pós-doutoramento trabalhou no Departamento de Química e Biologia Química da Universidade de Harvard com o atual guru dos microfluídos, George Whitesides. O norte-americano é o cientista químico vivo mais citado e autor de, pelo menos, 134 patentes. Ainla está vestido com uma camisola cinzenta com o logótipo desta universidade norte-americana. Além dos EUA, viveu também na Suécia, onde fez o Mestrado em Nanociência e Tecnologia e onde se doutorou em Química.
Está no INL desde 2017 e, no currículo, é notório o início de uma carreira promissora. Aos 18 anos venceu as Olimpíadas de Física da Estónia. Aos 19, ganhou a medalha de bronze das Olimpíadas Internacionais de Física, realizadas na Turquia. Aos 23 foi reconhecido com o prémio de investigação estudante do Ministério da Ciência e Educação da Estónia. Foi nessa altura que o cientista de 38 anos e poucas palavras foi apresentador “de um programa popular semanal de ciências” na televisão estónia, conforme se lê na sua página profissional pública online. É fã de montanhismo e entusiasta de design gráfico – útil para explicar ciência com infografias. Os olhos verdes são realçados pelos óculos redondos, com hastes que parecem invisíveis. As lentes imaculadadamente limpas refletem a wafer, que tem na mão, o pequeno elemento da microelectrónica, constituindo uma fina fatia de material semicondutor, de onde vêm os chips depois de cortados.
Um teste à distância de uma aplicação
“A razão pela qual escolhemos esta tecnologia não é porque gostamos de chips”, diz Dimitri Petrovykh. “É porque é algo que já existe, tem baixo custo e a indústria sabe como fazer”. O desafio, reforça, é garantir o primeiro chip, que é o mais caro. Depois, será só replicar. “Um chip com uma nova tecnologia pode custar um milhão, até dois milhões, para ser feito, mas o segundo já custará cêntimos”.
Mas então, como vai funcionar este teste que promete ser diferente dos biológicos, permitindo que cada pessoa possa ter um kit integrado de recolha e análise electrónica ligado a uma aplicação de telemóvel? Petrovykh assume um ar solene, como quem valida que chegou o momento-chave da conversa.
A pessoa irá exalar o ar para um recipiente específico – cujo protótipo está ainda a ser desenvolvido. Essa plataforma recolhe amostras do condensado do ar exalado e vai analisá-las para a presença ou não do vírus”
A técnica baseia-se em nanoporos, para dimensionar e contar nanopartículas para identificar potenciais partículas virais de SARS-CoV-2. Depois, segue-se um teste rápido de amplificação e deteção de RNA (ácido ribonucleico) [codificação genética] para verificar se o vírus detetado é SARS-CoV-2 ou não. A recolha flui para o chip, que vai analisar esse líquido a partir do condensado do ar exalado que, por sua vez, assim que fizer a leitura, transmite, por bluetooth, a informação para a aplicação do telemóvel: positivo ou negativo.
Trata-se de um sistema integrado: um recipiente de recolha acoplado a uma plataforma física, miniaturizada, onde está um chip associado. “O líquido está ligado ao chip e, ao mesmo tempo, ele tem conectores eletrónicos que estão a tentar medir o fluxo para detetar a quantidade de líquido a fluir através do [micro]buraco por onde podemos detectar a presença do vírus”. A questão é que o vírus é muito pequeno, por isso a equipa tem de garantir que o tamanho do orifício se assemelha ao do vírus, para o “apanhar”. Tal como uma armadilha.
Idealmente, a equipa está a trabalhar para que o resultado fique pronto em menos de um minuto. Mas isso está, ainda, limitado à quantidade recolhida de nanopartículas necessárias, dependendo da capacidade transmissora dos pacientes. Por isso pode demorar mais alguns minutos.
“O maior desafio subjacente é recolher a quantidade suficiente de partículas do vírus da Covid-19, para garantir que temos resultados rigorosos”, diz Ainla. Dimitri completa a ressalva evocada pelo colega: “Para este vírus em particular, o tempo de recolha da quantidade suficiente pode variar de pessoa para pessoa, pois os supertransmissores têm-no em maior quantidade, logo é mais fácil de recolher, mas as pessoas que não são supertransmissoras precisam de mais tempo, para termos mais quantidade de partículas para a amostra”. Depois, sublinha, muitas dessas pessoas são assintomáticas. Então, neste momento, a equipa está focada em resolver esta equação da quantidade de recolha. No entanto, realça Dimitri, “se tivermos uma tecnologia que possa identificar os supertrasmissores isso já seria importante”.
A corrida contra o tempo
Francisco Guimarães está igualmente entusiasmado com o COUNTED. “Fiquei rendido ao projeto.” Vestido num estilo mais formal, de blazer e camisa clássica, apresenta-se como um profissional que costuma estar ligado às relações institucionais e afastado do quotidiano das experiências científicas. Céptico no início, o responsável pelo gabinete de transferência de tecnologia do INL, que gere um orçamento global de cerca de vinte milhões de euros por ano, garante que têm já resultados sólidos que indicam um caminho de sucesso. “A tecnologia está avançada, o protótipo de recolha está praticamente estável, por isso é apenas uma questão de otimização do tamanho [do orifício do chip], para contagem de partículas”, reforça.
Tem 41 anos, formou-se em Administração Pública e está no INL desde 2017, com a árdua tarefa de traduzir a complexidade dos projetos – o que são, para que servem, o respectivo diferencial – para angariar parceiros de negócio, de forma a garantir a aplicação da ciência produzida. No caso do COUNTED, há já diligências promissoras. Mas Francisco prefere, por enquanto, manter sigilo. A parceria perfeita para este projeto, nota, é a junção do fator experiência com a capacidade produtiva.
Temos de encontrar parceiros especializados que conheçam bem o mercado, ao mesmo tempo que possam fazer a produção e a certificação do produto, que permita, assim, a sua comercialização”.
Com calo em implementação de projetos de investigação e em relações estratégicas para o negócio, este pai de dois filhos, natural de Famalicão, preocupa-se em contextualizar bem o projeto, que é um entre 160 no INL. Além disso, alerta para a urgência dos resultados. “O grande desafio é o tempo de chegada ao mercado de um protótipo bem sucedido, porque a expectativa é que, mais cedo, ou mais tarde, com a chegada da vacina, a necessidade de testagem pode vir a diminuir.” Francisco Guimarães receia que, assim, se possa perder a oportunidade e o fator diferencial que, por enquanto, o COUNTED ainda garante.
Petrovykh está mais confiante em relação à contínua necessidade de testagem, mesmo depois de uma vacina. “Os epidemiologistas reforçam a necessidade de testagem.” Por isso esta investigação aplicada continua a ser uma peça chave neste contexto. Aeroportos e grandes eventos são alguns dos exemplos que o físico convoca para demonstrar como o COUNTED será essencial e com muito impacto social associado. “É a forma que temos de não ter de utilizar máscaras. É a forma de termos espaços públicos com muitas pessoas. É a forma de a pandemia poder ser controlada.”
Este artigo faz parte de uma série sobre o trabalho levado a cabo pelo Parlamento Europeu e é uma parceria entre o Observador e esta instituição.