Ana João sai todos os dias para trabalhar com o entusiasmo de uma criança a caminho da loja de brinquedos. Adora o que faz, garante a líder de equipa e professora do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde (ICVS), da Escola de Medicina da Universidade do Minho. Nos últimos anos, a cientista tem estudado os circuitos de prazer e aversão do cérebro. E cada conclusão que obtém, longe de pôr um ponto final no assunto, suscita novas perguntas.
O ânimo está agora ainda mais elevado, depois de, nos últimos dois meses, ter visto o seu trabalho reconhecido e financiado com duas prestigiadas bolsas de investigação: uma do Conselho Europeu de Investigação, no valor de dois milhões de euros, e outra da Fundação “la Caixa”, que ascende a 500 mil euros.
Com o financiamento ao abrigo do concurso Health Research da fundação catalã, a bióloga doutorada em Ciências da Saúde pretende esclarecer, ao longo dos próximos três anos, como é que os nossos neurónios codificam o prazer e a aversão, ou seja, como é que processam a informação que lhes chega através dos estímulos e lhe atribuem uma valência, positiva ou negativa. “É uma espécie de selo que vai depois condicionar o nosso comportamento”, esclarece a cientista de 39 anos.
Uma das áreas que atribui esse “selo” aos estímulos é o nucleus accumbens, a zona do cérebro que constitui a parte principal do estriado ventral (e uma das estruturas mais importantes no sistema límbico), onde se processam funções relacionadas com a recompensa e o prazer. Mas não se sabe exatamente como.
Curiosamente, já se julgou saber e foi o trabalho de Ana João Rodrigues que colocou essas certezas em causa. “Havia um modelo científico muito aceite que defendia que o nucleus accumbens tinha duas populações de neurónios distintas: uma que codificava o prazer, outra a aversão.” Mas o modelo veio a revelar-se demasiado simplista de acordo com os dados que obteve.
Esse processo de dúvida começou durante o pós-doutoramento na Universidade do Minho, quando estudava o impacto do stress no nucleus accumbens de ratos. “Os nossos animais tinham anedonia [incapacidade para sentir prazer, típica da depressão]. Por isso, o esperado, de acordo com o modelo vigente, seria ver alterações nos neurónios do prazer. Mas quando analisei molecularmente esta área cerebral, as diferenças que encontrei estavam nos neurónios da aversão. Aquilo fez-me uma confusão tremenda.” Atirou-se ao trabalho e, três anos depois, em 2016, publicou o primeiro artigo a mostrar que essa codificação parecia mais complexa do que o modelo clássico defendia.
“Os nossos dados, já apoiados por dados de outras equipas de investigação, mostram que o prazer e a aversão não parecem estar codificados em duas populações [de neurónios] distintas, mas antes que ambas as populações podem codificar ambas as valências.”
A nova teoria tem muitos indícios que suportam esta ideia, mas faltam ainda as provas cabais. Com o projeto La Caixa, Ana João espera fazer isso mesmo: verificar se está correta. Para isso vai avaliar o papel de um mensageiro químico que os neurónios usam para comunicar entre si – os opióides endógenos. Calcula-se que estes mensageiros tenham um papel importante porque os cérebros post mortem, tanto de animais como de pacientes com depressão e adições, mostram uma acumulação excessiva destas substâncias químicas. “Se é uma causa ou uma consequência, não sabemos. Nunca os vimos in vivo com a resolução necessária, por isso, não sabemos bem em que altura são libertados.” Daqui a três anos, se tudo correr bem, já terão visto.
Esta é a grande inovação do projeto: usar uma tecnologia nova que torna possível ver este mensageiro químico a ser libertado em tempo real, com o animal acordado e a desempenhar uma tarefa. “Usando um estímulo positivo – um pedaço de ração açucarada – ou um negativo, vamos conseguir alinhar o comportamento com a libertação destes neurotransmissores in vivo.” Para isto, a investigadora vai contar com a colaboração de quatro outros cientistas: a chinesa Lin Tian (Universidade da Califórnia – Davis, EUA), o brasileiro Mauro Copelli (Universidade Federal de Pernambuco, Brasil), o norte-americano Luke Sjulson (Faculdade de Medicina Albert Einstein, EUA), e o português Rui Costa (diretor do Zuckerman Institute, na Universidade de Columbia, EUA) – além de Nuno Sousa (mentor de pós-doutoramento), Carina Cunha, Bárbara Coimbra, Nivaldo Vasconcelos, Rodrigo Oliveira, Verónica Domingues, Natacha Gaspar e Raquel Correia, na Universidade do Minho.
O conhecimento da fisiologia deste sistema será importante para, no futuro, compreender melhor algumas doenças. “Sabemos que o circuito de recompensa e aversão está muito alterado na depressão: um dos sintomas mais característicos da doença é a anedonia. Ora, sem sabermos como está codificado o prazer num cérebro normal, como haveremos de compreender melhor uma patologia que se caracteriza pela falta de prazer?” Também nas dependências de substâncias, como cocaína ou heroína, há alterações neste circuito. “Apesar de haver inicialmente prazer com o uso da substância, com a evolução da adição o indivíduo deixa de consumir para ter prazer e passa a fazê-lo para não ter a aversão associada à abstinência.”
Ana João passa os dias a usar os seus neurónios para compreender como funcionam os neurónios, mas confessa que raramente pensa sobre o que se passa dentro da sua própria cabeça. “Talvez porque ainda não sei”, confessa a rir. “Mas não penso mesmo nisto quando tomo decisões.” Define-se como emotiva, impulsiva e garante que faz questão de manter uma certa ingenuidade. “Por exemplo, muitos cientistas, enquanto não têm os dados publicados, tentam ser discretos no que partilham. Têm medo de ser scooped [alguém ‘roubar’ uma ideia e publicá-la primeiro]. Mas eu conto tudo a toda a gente: o que fiz, como fiz, que dados obtive. Talvez seja um pouco ingénua, mas acredito que a ciência deve ser aberta e inclusiva.”
Apesar desta dedicação ao trabalho, preza muito o tempo e o espaço para a família. A gestão nem sempre é fácil, admite, mas conta com a enorme ajuda dos pais. E da filha: Ana Pedro, de 6 anos, sabe que mãe trabalha com ratinhos e com o cérebro. Não entende muito bem a fazer o quê, mas já percebeu que isso, por vezes, lhe “rouba” a mãe.
Enquanto escrevia as propostas para as duas bolsas que ganhou – ao mesmo tempo que mantinha toda a atividade profissional habitual – Ana João saía da faculdade de madrugada e só via a filha a dormir. Quando via. Ela sentiu a falta da mãe e “cobrou-lhe” a ausência. Quando soube que ganhou a bolsa do Conselho Europeu de Investigação, a cientista chamou a filha e explicou-lhe: “’Lembras-te das noites que ficaste a dormir em casa dos avós porque a mãe chegava tarde? Então, olha: mamã conseguiu.’ Deu-me os parabéns e disse que estava muito orgulhosa de mim. De forma genuína. Isso foi um prémio enorme: perceber que ela compreendeu que o sacrifício que fizemos as duas serviu para alguma coisa.”
Não lhe parece que a filha tenha inclinação para a ciência. Quanto a si própria, recorda o que as tias lhe contam sobre quando era criança: que já era cientista até na cozinha. “Quando elas estavam a cozinhar e não parava de fazer perguntas: ‘Porque é que fazes assim? Porque é que pões os ovos antes?’ Porque é que o bolo cresce?’”
Garante que manteve essa curiosidade natural das crianças ao longo dos anos. E é por isso que saí de casa tão entusiasmada todos os dias, cheia de vontade de encontrar a resposta para essas perguntas. “Como é que os nossos cérebros avaliam o que é bom ou mau? Como é que isso é representado? O que existe entre o estímulo e a resposta comportamental?”
E quando souber todas estas as respostas, sabe que vai fazer mais perguntas.
Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto Como Classifica o Cérebro os Estímulos como Positivos ou Negativos / Encoding Reward and Aversion in the Mammalian Brain: the Overlooked Role of Endogenous Opioids (RewAve), liderado por Ana João Rodrigues, do ICVS/ Escola de Medicina, da Universidade do Minho, foi um do 25 selecionados (6 em Portugal) – entre 602 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2020 do Concurso HealthResearch. A investigadora recebeu 500 mil euros por três anos. O Health Research apoia projetos de investigação em saúde e as candidaturas para a edição de 2021 encerraram a 3 de dezembro. Em meados do próximo ano deverão estar disponíveis as informações sobre as candidaturas para 2022.