A noite foi de caos na capital dos Estados Unidos. Quatro pessoas morreram, 14 ficaram feridas e 52 foram detidas numa invasão sem precedentes ao Capitólio de Washington D.C., onde na quarta-feira os membros de ambas as câmaras do Congresso — Senado e Câmara dos Representantes — se reuniram numa sessão conjunta para, formalmente, declarar o vencedor da eleição presidencial de novembro. Ao longo dos últimos dois meses, Donald Trump e os seus apoiantes multiplicaram-se em esforços legais e de campanha no sentido de reverter a vitória do democrata Joe Biden. No final, Trump tentou mesmo que o seu próprio vice-presidente, Mike Pence, que por inerência também preside ao Senado, interviesse em seu benefício — mas até ele garantiu que respeitaria a Constituição. A Trump restaram os fiéis de sempre, a sua base eleitoral, incluindo grupos extremistas como os Proud Boys, que procuraram à força impedir o último formalismo antes da derrota definitiva do Presidente cessante.
O processo eleitoral norte-americano é complexo e, entre o dia do voto e a certificação do vencedor, há uma série de formalismos ao longo de dois meses — durante os quais Donald Trump aproveitou para tentar, uma e outra vez, reverter o resultado. Depois da votação popular no dia 3 de novembro, os representantes designados por cada candidatura formalizaram a votação no Colégio Eleitoral no dia 14 de dezembro. Esta quarta-feira, dias antes da tomada de posse (constitucionalmente agendada para 20 de janeiro), chegou o último formalismo: a certificação da votação por parte do Congresso, que, em anos normais, seria um processo simples e relativamente discreto. Os resultados do Colégio Eleitoral de cada estado são apresentados aos senadores e congressistas, que os aprovam e os anunciam ao público norte-americano. Certificado o resultado, o Presidente eleito pode formalmente tomar posse. A prova de que, habitualmente, nada disto seria mais do que um formalismo é que a transição presidencial começa logo que o resultado do voto popular é declarado. Desta vez, contudo, até os formalismos foram arma de guerra. Trump fez o que pôde para dificultar a transição e, para a noite de quarta-feira, estava previsto um último esforço: vários membros republicanos do Congresso haviam planeado apresentar objeções aos resultados em alguns estados, para causar disrupção no processo e — possível mas improvavelmente — reverter o resultado final.
Os resultados dos 50 estados norte-americanos, a que se junta o distrito federal da capital, foram discutidos por ordem alfabética ao longo da noite. Naqueles estados em que o resultado não foi contestado bastou uma votação rápida. Porém, nos estados em que o resultado foi colocado em causa houve lugar a um debate de duas horas, seguido de uma votação. Aconteceu com o Arizona e com a Pensilvânia. Na Geórgia, a objeção que ia ser apresentada foi retirada.
A violenta invasão do Capitólio, que chegou às câmaras do Congresso e obrigou a uma série de medidas de emergência para garantir a segurança do vice-presidente dos EUA, dos senadores e dos congressistas, interrompeu a sessão pouco depois do início, quando se debatia uma objeção aos resultados eleitorais no estado do Arizona. Nessa altura, o líder da bancada republicana, Mitch McConnell, um dos mais relevantes apoiantes de Trump, reconhecia que era o momento de dar um passo atrás. “Apoiei o direito de o Presidente utilizar o sistema legal”, disse McConnell. “Mas agora já acabou. Os tribunais rejeitaram as queixas, incluindo juízes que o próprio Presidente nomeou (…) Nós simplesmente não nos podemos auto-proclamar uma comissão nacional eleitoral sob o efeito de esteroides.”
O protesto à porta do Capitólio evoluiu para uma invasão violenta que Donald Trump, a partir do Twitter, demorou a tentar travar. Repetindo apelos ao protesto pacífico, acusou o seu próprio vice-presidente, Mike Pence, de não ter tido coragem “para fazer o que devia ter sido feito“. O tweet em que o fez desapareceu entretanto da internet, bem como vários outros feitos pelo Presidente cessante dos EUA, que viu a sua conta naquela rede social suspensa por 12 horas por violar as regras e incitar à violência. De todo o mundo, incluindo de Portugal, chegavam condenações à onda de violência e à inação de Trump perante a invasão. Ex-presidentes dos EUA, incluindo o republicano George W. Bush e o democrata Barack Obama, não pouparam nas críticas a Trump. Ao longo da noite, à medida que a violência escalava, o próprio círculo próximo de Trump foi-se desfazendo: congressistas republicanos que pretendiam apresentar objeções à votação anunciaram que não o fariam; os aliados do Presidente no Congresso expressaram publicamente o apoio a uma solução pacífica, e até houve demissões na Casa Branca.
And we will always be grateful for the men and women who stayed at their post to defend this historic place. To those who wreaked havoc in our Capitol today, you did not win. Violence never wins. Freedom wins. And this is still the People's House. pic.twitter.com/ytErRKnk4O
— Mike Pence (@Mike_Pence) January 7, 2021
Quase cinco horas depois da interrupção, as autoridades conseguiram voltar a controlar o Capitólio e a sessão foi retomada onde havia ficado. As palavras de Mike Pence na retoma dos trabalhos mostraram como Trump está cada vez mais sozinho: “Vocês não venceram. A violência nunca vence. A liberdade vence“, disse aos invasores. O senador republicano Mitch McConnell mostrou como o próprio partido se está a descolar de Trump: “O Senado dos Estados Unidos não será intimidado. Não vamos permanecer fora desta câmara por vontade de bandidos, turbas ou ameaças. Não vamos ceder à intimidação”.
“Os Estados Unidos e o Congresso dos Estados Unidos enfrentaram no passado ameaças muito maiores do que esta multidão desequilibrada que vimos hoje. Nunca fomos dissuadidos anteriormente e não o seremos hoje. Tentaram perturbar e interromper a nossa democracia, falharam. Falharam a tentativa de obstruir este Congresso“, acrescentou McConnell.
Apesar de alguns senadores republicanos, incluindo Josh Hawley e Roger Marshall, terem decidido manter a sua decisão de votar contra os resultados eleitorais, houve quem mudasse de ideias devido à invasão. Foi, de modo mais notável, o caso da republicana Kelly Loeffler, do estado da Geórgia, que no dia anterior perdera a eleição senatorial num processo eleitoral que era decisivo para perceber se os democratas conseguiriam obter o controlo do Senado ou se este ia permanecer nas mãos dos republicanos. Trump chegou a aparecer ao seu lado na campanha eleitoral na Geórgia, mas Loeffler acabaria a validar a vitória de Biden na sequência dos protestos no Capitólio.
Ao longo da noite, as notícias de Washington D.C. foram dando conta de um Presidente Trump cada vez mais isolado. Na imprensa, chegou a circular a possibilidade de os ministros do governo norte-americano estarem a ponderar a ativação da 25.ª emenda da Constituição dos EUA — ou seja, declarar o Presidente Trump incapaz de governar e elevar Mike Pence à liderança interina do país. Já o senador republicano Lindsey Graham, um dos homens fortes de Donald Trump durante os últimos quatro anos, lembrou uma “caminhada e pêras” ao lado do Presidente, mas alertou para o perigo de este período histórico estar a afetar a credibilidade da democracia norte-americana. “Hoje, tudo o que posso dizer é… não contem comigo, já chega. Tentei ser útil“, rematou.
Toda esta discussão aconteceu a propósito da contestação aos resultados do Arizona, que acabariam aprovados por uma esmagadora maioria. Só seis senadores e 121 congressistas republicanos votaram contra os resultados.
A violenta invasão vivida horas antes acabou por acelerar os trabalhos do Congresso, que depois da discussão do Arizona (começada antes dos protestos) aprovou os resultados da maioria dos estados rapidamente. No caso da Geórgia, cujos resultados se previa que fossem contestados, o Partido Republicano fez saber que “depois das ações de hoje, os senadores retiraram a sua objeção“. No caso do Michigan, os senadores optaram por outro mecanismo: apresentaram formalmente a objeção, mas não quiseram o debate parlamentar em torno dos resultados.
A sessão só voltou a ser interrompida já depois das 5h da manhã de Lisboa, com uma objeção levantada relativamente aos resultados na Pensilvânia — o estado em que o processo eleitoral mais foi contestado durante o período pós-eleição. Mas, também naquele caso, o Senado e a Câmara dos Representantes acabariam por rejeitar a objeção. Já passava das 8h30 em Lisboa quando a vitória de Joe Biden se formalizou: o Congresso já tinha aprovado mais de 270 votos eleitorais para o democrata e o vice-presidente cessante dos EUA, Mike Pence, certificou a vitória de Joe Biden.
.@VP Pence: "The announcement of the state of the vote by the President of the Senate shall be deemed a sufficient declaration of the persons elected president and vice president of the United States, each for the term beginning on the 20th day of January, 2021." pic.twitter.com/kFG0uIqJ8T
— CSPAN (@cspan) January 7, 2021
Cumprido o último formalismo, esgotaram-se as hipóteses de recurso de Donald Trump. Sem acesso à conta do Twitter, por ter incitado aos protestos durante a noite, o Presidente cessante fez sair um comunicado através do diretor de comunicação da Casa Branca, Dan Scavino. Prometeu uma transição ordeira, mas insistiu em não reconhecer a legitimidade da eleição. “Embora eu discorde totalmente do resultado da eleição, e os factos me deem razão, mesmo assim haverá uma transição ordeira do poder no dia 20 de janeiro“, diz Trump. “Sempre disse que iríamos continuar a nossa luta para garantir que apenas os votos legais seriam contados. Embora isto represente o fim do melhor primeiro mandato da história presidencial, foi apenas o início da nossa luta para Fazer da América Grande Novamente.”
Por determinação expressa da Constituição dos EUA, o mandato do novo Presidente começa sempre no dia 20 de janeiro, estando neste momento reunidas as condições para a tomada de posse de Joe Biden dentro de duas semanas.