As Forças Armadas de Myanmar prenderam esta noite de domingo Aung San Suu Kyi e diversos membros do governo. As detenções da líder e de outros membros do seu partido, a Liga Nacional pela Democracia (LND), bem como do Presidente Win Myin, foram concretizadas pelos militares após várias semanas de tensão entre o partido vencedor das eleições de novembro de 2020 e os militares.

Aung San Suu Kyi ainda não foi vista desde o golpe de estado, mas está, segundo uma mensagem da conta de Facebook de Kyi Toe (porta-voz do LND), “a sentir-bem”. E também instou aos mianmarenses para “não aceitarem” a situação e para responderem “ao protesto do exército”.

Já esta manhã de segunda-feira o Exército da antiga Birmânia declarou o estado de emergência e assumiu o controlo do país durante um ano, prometeu eleições para daqui a um ano, e encerrou o espaço aéreo. 

O Conselho de Segurança das Nações Unidas irá reunir-se terça-feira em Nova Iorque, de emergência, para analisar uma reação ao golpe de Estado militar de hoje em Myanmar.

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A informação da reunião de emergência consta do programa de trabalho da presidência britânica do Conselho de Segurança, esta segunda-feira divulgado, que adianta que a reunião será por videoconferência, e à porta fechada. O Reino Unido, que inicia a presidência mensal do Conselho de Segurança, tinha prevista uma reunião sobre a situação em Myanmar para esta quinta-feira, seguida de consultas à porta fechada entre os países-membros, mas os acontecimentos das últimas horas no país asiático determinaram a alteração.

A embaixada dos Estados Unidos no país indicou na sua página de Facebook que a estrada para o aeroporto internacional de Rangum, a maior cidade do país, foi fechada, e no Twitter acrescentou que “todos os aeroportos estão fechados”.

A mesma embaixada emitiu também um “alerta de segurança”, dizendo estar ciente da detenção da líder de Myanmar, bem como do encerramento de alguns serviços de internet, incluindo em Rangum.

“Há potencial para agitação civil e política na Birmânia e continuaremos a monitorizar a situação”, escreveu a embaixada, usando a designação anterior de Myanmar.

Numa declaração divulgada na cadeia de televisão do exército Myawaddy TV, os militares acusaram a comissão eleitoral do país de não ter posto cobro às “enormes irregularidades” que dizem ter existido nas legislativas de novembro, que o partido de Aung San Suu Kyi venceu por larga maioria.

Os militares evocaram ainda os poderes que lhes são atribuídos pela Constituição, redigida pelo Exército, permitindo-lhes assumir o controlo do país em caso de emergência nacional.

O vice-presidente Myint Swe, nomeado para o cargo pelos militares, graças à reserva prevista na Constituição, assume agora a presidência, enquanto o chefe das Forças Armadas, Min Aung Hlaing, será responsável por fiscalizar as autoridades, indicou o canal Myawaddy News.

O anúncio segue-se à detenção, horas antes, da chefe de facto do governo birmanês e prémio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, pelas Forças armadas birmanesas, segundo indicou o porta-voz do seu partido, a Liga Nacional para a Democracia (LND) no domingo à agência Reuters, segundo revelam a BBC e o jornal The Guardian. “Quero dizer à população para não responderem e respeitarem a lei”, afirmou o porta-voz que também esperava ser detido a qualquer momento.

“Fomos informados que ela está detida em Naypyidaw [a capital do país], supomos que o Exército está em vias de organizar um golpe de Estado”, indicou nessa altura Myo Nyunt. A mesma fonte admitiu que outros responsáveis do partido também foram detidos.

A BBC diz ainda que há militares nas ruas da capital Naypyitaw e em Yangon, a segunda cidade do país, e as linhas telefónicas e as ligações de internet foram cortadas na capital.

Os partidos da oposição alinhados com as Forças Armadas, força poderosa em Myanmar, alegam igualmente que as eleições de novembro terão sido fraudulentas.

De acordo com a Constituição de Myanmar, fortemente influenciada pelos militares, as Forças Armadas continuam a deter o direito de nomear os ministros de pastas-chave do governo.

Desde há várias semanas que os militares denunciam irregularidades nas legislativas de 8 de novembro, que a LND venceu por larga vantagem.

Estas detenções surgem num momento em que o parlamento eleito nas anteriores eleições se preparava para iniciar dentro de algumas horas a sua primeira sessão.

A condenação internacional do golpe de Estado

Várias vozes do xadrez internacional têm estado a reagir ao golpe de Estado militar. Os Estados Unidos exigiram já a libertação dos vários líderes detidos e ameaçaram reagir em caso de recusa, dizendo ser contra qualquer tentativa de alterar os resultados das recentes eleições ou de impedir a transição democrática da Birmânia e agirão contra os responsáveis se estas medidas [detenções] não forem abandonadas”, disse a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, em comunicado.

téphane Dujarric, secretariado das Nações Unidas para as consultas no Conselho de Segurança, considera que “o mais importante é que a comunidade internacional fale a uma só voz” em relação ao golpe.

O golpe de Estado militar ocorre após anos de uma partilha delicada do poder entre o Governo civil liderado por Aung San Suu Kyi e a classe militar, poderosa no país.

Também o presidente do Parlamento Europeu e António Guterres condenaram de forma veemente o golpe de Estado no país e exige a libertação dos detidos.

Já o secretário-geral das Nações Unidas apela aos militares para que “a vontade do seja respeitada” e “adira às normas democráticas, resolvendo eventuais divergências através de um diálogo pacífico”.

Reino Unido, Japão e França pediram a libertação dos detidos e o respeito pela vontade popular, como Boris Johnson expressou numa publicação na sua página do Twitter.

A partir de Portugal, o Ministério dos Negócios Estrangeiros emitiu uma curta declaração condenando a detenção. “Condenamos o golpe de Estado em Myanmar e apelamos à libertação imediata dos líderes políticos civis que foram detidos”, lê-se na declaração divulgada no Twitter pelo ministério de Augusto Santos Silva.

A China, um dos parceiros económicos mais importantes do país ao investir milhares de milhões de euros em minas, infraestruturas e gasodutos, disse estar a recolher informações sobre os desenvolvimentos.

“A China é um vizinho amigo de Myanmar. Esperamos que todos os partidos em Myanmar lidem adequadamente com as suas diferenças de acordo com a estrutura constitucional e legal e mantenham a estabilidade política e social”, afirmou o porta-voz do Ministério dos Negócios Estangeiros, Wang Wenbin.

Enquanto o Partido Comunista Chinês tende a favorecer regimes autoritários, tem uma história turbulenta com os militares do Myanmar, por vezes relacionada com as campanhas contra grupos étnicos minoritários chineses e ao tráfico de drogas ao longo da sua fronteira montanhosa.

Os argumentos dos militares

Os militares garantem ter recenseado milhões de casos de fraude, incluindo milhares de eleitores centenários ou menores.

No entanto, o Exército birmanês tinha afastado no sábado os rumores de um golpe militar que circulavam nos últimos dias, num comunicado em que afirmou a necessidade de “obedecer à Constituição”, e garantindo defendê-la.

“Visto que o Tatmadaw [nome do Exército birmanês] é uma associação armada, deve obedecer à Constituição. Os nossos soldados devem obedecer e respeitar a Constituição mais do que outras leis existentes”, afirmou a força militar.

No dia seguinte às eleições legislativas, o chefe do Exército birmanês, Min Aung Hlaing, afirmou, numa intervenção perante as Forças Armadas, que se deveria abolir a Constituição se a Carta Magna não for cumprida, o que foi interpretado como uma ameaça ao país, que esteve submetido a uma ditadura militar entre 1962 e 2011.

A Comissão Eleitoral de Myanmar negou que tenha existido qualquer fraude eleitoral nas eleições de novembro, ganhas pela LND, liderada por Aung San Suu Kyi, que obteve 83% dos 476 assentos parlamentares.

A delegação da União Europeia (UE) e várias embaixadas, incluindo a britânica, norte-americana, australiana e de vários países europeus, avisaram que reprovam “qualquer tentativa” para alterar os resultados eleitorais ou “impedir” a transição democrática.

As supostas irregularidades foram denunciadas em primeiro lugar pelo Partido da Solidariedade e de Desenvolvimento da União (USPD, na sigla em inglês), a antiga força política no poder, criada pela então Junta Militar antes de esta se dissolver.

O USDP foi o grande derrotado das eleições, ao obter apenas 33 lugares no parlamento, tendo recusado aceitar os resultados, chegando mesmo a pedir a realização de nova votação, desta vez organizada pelo Exército.

Os militares, responsáveis pela redação da atual Constituição, detêm um grande poder no país, tendo, à partida, garantidos 25% dos lugares no parlamento, bem como os influentes ministérios do Interior, das Fronteiras e da Defesa.

Em novembro de 2020, o Centro Carter — organização criada pelo antigo Presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter, que enviou observadores às eleições —, emitiu um comunicado em que considerou as eleições livres e justas.

A vitória eleitoral de Suu Kyi, Prémio Nobel da Paz 1991, demonstrou a sua grande popularidade em Myanmar, apesar da má reputação internacional pelas políticas contra a minoria rohingya, a quem é negada a cidadania e o voto, entre outros direitos.

Estas foram as segundas eleições legislativas desde 2011, o ano da dissolução da Junta Militar que se manteve no poder durante meio século no país.

Exército promete novas eleições dentro de um ano

O Exército de Myanmar prometeu entretanto organizar novas eleições quando terminar o estado de emergência de um ano, decretado após o golpe de Estado levado a cabo pelos militares.

“Estabeleceremos uma verdadeira democracia multipartidária”, anunciaram os militares num comunicado publicado na rede social Facebook, acrescentando que o poder será transferido após a realização de “eleições gerais livres e justas”.

Refugiados Rohingya no Bangladesh satisfeitos com detenção de Aung San Suu Kyi

Os refugiados Rohingya no Bangladesh manifestaram-se satisfeitos com a detenção da chefe do governo de Myanamar, Aung San Suu Kyi, tal como o Presidente do país, Win Myint, e outros líderes governamentais.

Sinto uma sensação de alegria, porque Suu Kyi é em grande parte responsável pelo genocídio contra nós”, disse Mohammad Jubair, líder da Sociedade Arakan Rohingya pela Paz e Direitos Humanos, de Kutupalong, o principal campo de refugiados em Cox’s Bazar, no sudeste do Bangladesh.

Cerca de 738.000 Rohingya fugiram para esses campos após o início, em agosto de 2017, de uma campanha de perseguição e violência do exército birmanês no país vizinho, que a ONU descreveu como um exemplo de limpeza étnica e possível genocídio, algo que os tribunais internacionais estão a investigar.

“Violaram as nossas mães e irmãs, mataram o nosso povo, tiraram as nossas terras e obrigaram-nos a morar aqui neste pequeno abrigo, mas ela (Suu Kyi) não fez nada. Bem-vindo (a prisão e o golpe militar). Vou comemorar”, disse Jubair.

No entanto, o líder Rohingya disse não acreditar que o golpe militar vá afetar o processo de repatriação dos refugiados para a Birmânia, já que considera que depende sobretudo da comunidade internacional.

“A Birmânia não aceitará o nosso regresso sem a pressão da comunidade internacional. Está a decorrer um processo judicial. Assim que estiver concluído, esperamos poder regressar”, disse.

Por seu turno, Abdur Rahman, que lecionava na Birmânia antes de fugir para o Bangladesh, reconheceu em declarações à agência de notícia espanhola Efe que “nenhum golpe é bom”.

O Ministro dos Negócios Estrangeiros do Bangladesh, AK Abdul Momen, também se mostrou preocupado com o que se passa na Birmânia, pois acredita no “princípio da democracia” e também, como país vizinho, espera “paz e estabilidade”.

“O processo constitucional deve ser respeitado na Birmânia. Iniciamos seriamente as negociações para a devolução dos Rohingya e esse processo deve continuar em qualquer circunstância”, garantiu o ministro.

Duas tentativas de iniciar a repatriação falharam até agora, já que membros dessa minoria de maioria muçulmana se recusaram a regressar até que a Birmânia lhes garantisse a cidadania e a segurança na sua terra natal.

Grupos de direitos humanos exigem libertação de Aung San Suu Kyi

Por seu turno, vários grupos de direitos humanos exigiram a libertação imediata de Aung San Suu Kyi, e outros membros do gabinete detidos pelo exército que assumiu poder político após golpe de Estado.

“O Exército de Myanmar deve libertar imediata e incondicionalmente Aung San Suu Kyi, funcionários do Governo e todos os detidos ilegalmente. As ações do Exército mostram total desdém pelas eleições democráticas”, afirmou Brad Adams, diretor da Human Rights Watch (HRW) Ásia.

A vice-diretora regional da Amnistia Internacional, Ming yu Hah, descreveu as detenções como “extremamente alarmantes” e exigiu que fossem libertados “imediatamente” se não pudessem ser acusados de qualquer crime reconhecido pelo direito internacional.

“É um momento sinistro para o povo da Birmânia e ameaça agravar a repressão militar e a impunidade”, frisou, usando a antiga designação de Myanmar.

Por sua vez, Matthew Smith, diretor da organização Fortify Rights, disse que o Exército deve parar as detenções e dar garantias da segurança e do bem-estar dos detidos.

Comité Nobel “escandalizado” pela detenção de Aung San Suu Kyi

O comité Nobel norueguês disse que está “escandalizado” pelo golpe de Estado em Myanmar e pela detenção de Aung San Suu Kyi, prémio Nobel da paz em 1991, e outros dirigentes, exigindo a sua “libertação imediata”.

“O comité Nobel norueguês está escandalizado pelo golpe de Estado militar e a prisão da laureada do prémio Nobel da paz Aung San Suu Kyi, do Presidente Win Myint e de outros responsáveis políticos”, indicou numa declaração à agência noticiosa AFP.

Solicita ainda a “libertação imediata de Aung San Suu Kyi e dos outros responsáveis políticos detidos, e o respeito dos resultados das eleições legislativas do ano passado”.