Depois de resolvido o diferendo sobre a constitucionalidade de julgar um ex-presidente num processo de impeachment, o julgamento de Donald Trump no Senado dos EUA entrou esta quarta-feira no primeiro dia de argumentos, com a equipa da acusação a procurar estabelecer uma relação direta entre o discurso do ex-presidente no dia 6 de janeiro e a violenta invasão do Capitólio por apoiantes de Trump uma hora depois.

O ex-presidente está acusado de “incitamento à insurreição“, com o Partido Democrata a sustentar que Trump alimentou durante meses um argumentário destinado a criar nos seus apoiantes a consciência de que só uma fraude eleitoral poderia conduzir à sua derrota — convicção essa que, depois, capitalizou no dia 6 de janeiro, inspirando os apoiantes a “lutar”, no sentido físico, pela reversão da contagem dos votos.

De acordo com as regras do julgamento, cada lado tem um total de 16 horas (divididas por dois dias) para apresentar os seus argumentos. Esta quarta-feira foi o primeiro dia da acusação, que terminou sem esgotar as oito horas a que tinha direito, mas que pretende voltar aos argumentos na quinta-feira. O congressista democrata Jamie Raskin, que lidera a equipa da acusação, foi o primeiro a tomar a palavra na sessão desta terça-feira, começando a apresentação dos argumentos contra Trump com recurso frequente a elementos multimédia — incluindo imagens dos tweets do ex-presidente antes, durante e depois da invasão do Capitólio, bem como vídeos do discurso de Trump antes do ataque.

Trump assistiu a tudo “na televisão como se fosse um reality-show

Logo no início da apresentação, Raskin lembrou os senadores de que “a questão constitucional está arrumada” e pediu aos membros do Senado que colaborem num “julgamento sobre os factos”.

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“As provas mostram que o ex-presidente Trump não foi um espectador inocente. As provas mostram que ele claramente incitou a insurreição de 6 de janeiro. Mostram que Donald Trump renunciou ao seu cargo de comandante-chefe e tornou-se no incitador-chefe“, disse Raskin, prometendo exibir durante o julgamento várias imagens explícitas do ataque ao Capitólio.

“Ele disse-lhes para lutarem como o inferno. E eles trouxeram-nos o inferno nesse dia”, argumentou Raskin, acrescentando que Trump assistiu a tudo “na televisão como se fosse um reality-show“.

Depois de Jamie Raskin apresentar as linhas gerais do argumentário da acusação, o congressista democrata Joe Neguse, o segundo elemento da equipa da acusação, assumiu a palavra para exibir um esquema de provas destinado a evidenciar como Donald Trump incitou deliberadamente à insurreição no Capitólio — e como o processo começou vários meses antes, inclusivamente antes da eleição.

À medida que avaliam os factos que vos trazemos, vai ficar claro exatamente de onde é que aquela multidão veio“, disse Neguse. “Passa-se o seguinte: as palavras do Presidente Trump, como poderão ver no discurso do dia 6 de janeiro, tal como as ações da multidão foram cuidadosamente escolhidas, tinham um significado muito específico para aquela multidão.”

“E como é que sabemos isto? Porque nas semanas antes, durante e depois da eleição ele usou as mesmas palavras uma e outra vez”, acrescentou Neguse.

O argumento da acusação é o de que ainda antes da eleição, Donald Trump começou a preparar a sua base de apoio para o que poderia acontecer no dia da eleição, defendendo que só uma fraude em grande escala justificaria uma derrota. Em vários discursos e tweets, Trump preparou o argumentário da “eleição roubada” pelos democratas, nomeadamente lançando suspeitas infundadas sobre os votos por correspondência, sobretudo quando as sondagens começaram a apontar claramente para a sua derrota.

Depois, no dia em que os resultados apontaram para a vitória de Biden, Trump recusou aceitar a derrota e voltou ao argumento da “eleição roubada“. Após várias semanas a rejeitar os resultados, Trump convocou os seus apoiantes para um comício em Washington D.C., no dia e na hora em que o Congresso iria certificar a eleição — e prometeu: “Vai ser selvagem”.

“Ele queria os seus apoiantes furiosos”

No entender dos democratas, os apoiantes de Trump entenderam a mensagem e acorreram em força à capital americana para o comício, onde o ainda Presidente dos EUA lhes pediu que “lutassem como o inferno“.

Neguse explicou ainda que o argumento da acusação será dividido em três partes: a provocação, o ataque e o dano — e pediu aos senadores que mantivessem nas suas cabeças três frases essenciais que se repetiram durante vários meses antes e depois das eleições: “A eleição foi roubada”, “acabem com o roubo” e “lutem como o inferno”.

De seguida, a equipa da acusação, pela voz do congressista Joaquin Castro, descreveu os meses que antecederam a eleição de novembro de 2020, para evidenciar como Donald Trump começou — com vários meses de antecedência — a preparar os seus apoiantes para uma luta feroz contra uma eventual derrota eleitoral.

“Esta multidão foi provocada ao longo de vários meses por Donald J. Trump, pelo seu comportamento pessoal, este ataque era previsível e evitável”, disse Castro. “Ele queria que os apoiantes dele acreditassem que a eleição lhe seria roubada — e lhes seria roubada a eles” — caso Biden ganhasse. “Ele queria os seus apoiantes furiosos.

“Ele levou verdadeiramente a sua base de apoio a acreditar que a única maneira de ele perder era se a eleição fosse fraudulenta”, rematou. “O maior combustível que se pode colocar numa democracia é convencer as pessoas de que a voz delas não conta.

Com efeito, os próprios apoiantes furiosos de Trump têm sido um dos principais argumentos da acusação, com os congressistas democratas a revisitarem por diversas vezes os comentários feitos pelos próprios manifestantes no dia da invasão do Capitólio — incluindo expressões como “o Presidente enviou-nos” ou “fomos convidados pelo Presidente”.

A acusação lembrou os detalhes do discurso de Donald Trump antes da invasão do Capitólio, que incluiu uma referência a um protesto “pacífico” e 20 referências a “lutar”. “Num discurso com 11 mil palavras — sim, nós contámos —, essa foi a única vez que o Presidente Trump usou a palavra ‘pacífico'”, disse a congressista Madeleine Dean.

As imagens inéditas

Os congressistas democratas ocuparam também um pedaço significativo do período dos argumentos a descrever detalhadamente os acontecimentos do dia 6 de janeiro dentro do próprio Capitólio, exibindo perante os senadores muitas imagens — incluindo algumas inéditas — retiradas das câmaras de vigilância do edifício. Muitos dos vídeos impressionaram profundamente os senadores, que se viram a si próprios em situações de grande risco no dia da invasão.

Enquanto exibiam as imagens onde é possível ver os apoiantes de Donald Trump a invadir o Capitólio, os congressistas democratas lembravam o que o Presidente fez nesse dia: assistiu a tudo na Casa Branca pela televisão e tentou pressionar os senadores republicanos a atrasar a certificação dos votos do Colégio Eleitoral.

A reação de Trump à invasão do Capitólio foi um dos principais argumentos dos democratas, que pela voz do congressista David Cicilline, lembraram que a primeira resposta do Presidente ao ataque foi a divulgação de um vídeo promocional do seu argumento da “eleição roubada”.

Depois, tanto Trump como o seu advogado, Rudy Giuliani, telefonaram ao senador republicano Tommy Tuberville pedindo-lhe que adiasse a certificação dos votos — e a gravação do voicemail foi exibida no Senado.

“Um Presidente desesperado”

O telefonema de Donald Trump ao secretário de Estado da Geórgia, conhecido três dias antes da invasão do Capitólio, não ficou de fora dos argumentos da acusação.

Trump pressionou secretário de Estado da Geórgia para “encontrar 11.780 votos” que lhe garantissem a vitória

A 3 de janeiro de 2021, o The Washington Post revelou o conteúdo de um telefonema do Presidente Trump ao responsável eleitoral do estado da Geórgia. Na chamada, Trump pressionou Brad Raffensperger a “encontrar 11.780 votos” — precisamente o número de votos de que necessitava para ganhar o estado.

A congressista democrata Madeleine Dean, uma das figuras da acusação, classificou o telefonema como um ato “de um Presidente desesperado”, capaz de ameaçar funcionários públicos que já estavam sob ameaças de morte e de violência física por parte de apoiantes de Trump.

Dean descreveu as “campanhas implacáveis e cada vez mais fortes para fabricar uma vitória eleitoral, ignorando decisões judiciais contrárias, pressionando e ameaçando funcionários eleitorais e atacando senadores e membros do Congresso“.

Esta quarta-feira, o The New York Times noticiou que a justiça estadual na Geórgia abriu um inquérito para investigar o telefonema de Trump e a pressão feita sobre o sistema eleitoral do estado.

Ao contrário do que aconteceu no primeiro julgamento de impeachment, Donald Trump tem assistido ao desenrolar do processo em silêncio, a partir da sua mansão da Flórida, onde se encontra desde que abandonou a Casa Branca na manhã de 20 de janeiro. Sem acesso ao Twitter desde janeiro (e esta quarta-feira a rede social confirmou que a expulsão é definitiva), Trump perdeu a principal plataforma de que dispunha para comentar a política norte-americana em tempo real.

Julgamento começou com debate constitucional

O julgamento arrancou oficialmente na terça-feira, com um debate inicial sobre a constitucionalidade do próprio processo, uma vez que a defesa de Trump alegava que o Senado não tinha jurisdição para julgar um Presidente que já não se encontrava em funções. Após quase quatro horas de argumentos, os senadores acabaram por decidir — com 56 votos a favor e 44 votos contra — que o órgão tinha efetivamente jurisdição sobre o ex-presidente.

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Por isso, o julgamento propriamente dito está agora no primeiro dia, com a equipa de acusação, liderada pelo congressista democrata Jamie Raskin, a apresentar os argumentos contra Donald Trump. A tese dos democratas é a de que foi Donald Trump, com o discurso inflamado que proferiu no dia 6 de janeiro, que incitou os seus apoiantes a levarem a cabo a violenta invasão do Capitólio, uma hora depois do discurso, na qual morreram cinco pessoas.

A Câmara dos Representantes, onde os democratas têm maioria, acusou Donald Trump do crime de “incitamento à insurreição“.

A defesa de Donald Trump, por seu turno, argumenta que o ex-presidente está protegido pelas provisões constitucionais que garantem a liberdade de expressão e que, por isso, não pode ser responsabilizado pelos crimes dos invasores.

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Cada lado terá 16 horas, divididas por dois dias, para apresentar os seus argumentos. A fase de argumentos deverá estar concluída até ao final da semana ou, na pior das hipóteses, ao início da próxima semana. Depois disso, os senadores vão votar o veredicto final — e, feitas as contas ao posicionamento da maioria dos senadores republicanos, tudo indica que Trump acabará absolvido.