As ruas espanholas agitam-se e revoltam-se de indignação depois da prisão do rapper catalão de 33 anos Pablo Hasél, na passada segunda-feira, por mensagens enviadas na rede social Twitter em que fazia a glorificação do terrorismo e injuriava a monarquia. E esta quinta-feira, no dia em que o músico voltou novamente condenado a uma pena de dois anos e meio por ameaça a uma testemunha, voltou a haver caos nas ruas de várias cidades, principalmente Barcelona, em que os grupos de manifestantes queimaram caixotes do lixo e atiraram pedras, garrafas e fogo de artifício contra a polícia regional, os Mossos d’Esquadra.
Em Valência, na Comunidade Valenciana, ao lado, a polícia também já fez diversas cargas para dispersar manifestações que começam por ser pacíficas e em seguida tornam-se violentas com cenas de luta de rua e algumas pessoas feridas, havendo já vários detidos e pelo menos um ferido. Segundo fontes da polícia, já há pelo menos oito detidos na sequência dos distúrbios desta noite em pleno centro de Valência.
Os protestos espalharam-se por várias cidades desde terça-feira, estando sobretudo concentrados nas regiões da Catalunha e de Madrid, e já resultaram em 80 detenções, dezenas de feridos, incontáveis atos de vandalismo e confrontos entre manifestantes e forças de segurança.
Esta quarta-feira de manhã, numa conferência de imprensa dada pelo esquadrão policial catalão Mossos d’Esquadra era feito um balanço da segunda noite de protestos (esta quarta-feira) na região da Catalunha: 12 detenções, dez pessoas feridas e 84 contentores incendiados.
Às 22h45 da véspera, quarta-feira, contabilizavam-se já 29 detenções na Catalunha — pelo que há já registo de 51 detenções na sequência dos protestos. Já na comunidade de Madrid, o balanço feito na quarta-feira apontava já para 14 pessoas detidas na sequência de protestos violentos, a que se somaram mais 15 reportadas esta quinta-feira pelas autoridades regionais, elevando o total de detenções para 29. Nas duas regiões foram portanto detidas 80 pessoas nos últimos dois dias.
[As imagens das manifestações em Barcelona:]
Os relatos apontam para um clima de grande tensão nas ruas. Na Catalunha, o jornal El País fala em “barricadas” de manifestantes e em fogueiras de mobiliário urbano. Já o esquadrão policial Mossos d’Esquadra falou no lançamento de pedras, garrafas e objetos perigosos em diferentes pontos da cidade de Barcelona. Em Madrid há relatos da necessidade de cinco cargas policiais feitas por uma centena de agentes esta quarta-feira, dando ainda conta de centenas de descontentes nas ruas e um “forte odor a pólvora devido aos petardos lançados pelos manifestantes”.
Há ainda relatos de atos de vandalismo — feitos sobretudo por jovens — a lojas, lançamento de “artefatos incendiários” na direção de veículos policiais e gritos, cânticos e frases fortes como “fora, forças de ocupação”, “nazi de dia e de noite polícia”, “aqui estão os antifascistas”, “Liberdade para Pablo Hasél, fora a justiça franquista” e “sequestrados pelo Estado, todos para a rua, conquistemos a sua liberdade”.
Porta-voz do Podemos: “Todo o meu apoio aos jovens antifascistas”
Politicamente a tensão cresce também entre os partidos de centro-direita e direita e os partidos de Governo — nomeadamente o PSOE de Pedro Sánchez e o Unidas Podemos (antigamente conhecido apenas pelo nome Podemos) de Pablo Iglesias.
Do lado do Governo, os dois dias de protestos não motivaram reações até esta quinta-feira e nem as ações pacíficas nem os distúrbios violentos causados por parte dos manifestantes começaram por merecer qualquer comentário. O primeiro-ministro Pedro Sánchez e o vicepresidente e ministro do Governo Pablo Iglesias, por exemplo, ainda não se tinham pronunciado ao início da manhã desta quinta-feira.
Em contraponto com o silêncio dos principais responsáveis governativos do país, o porta-voz do partido de Iglesias, já comentou os protestos. Na rede social Twitter, Pablo Echenique manifestou o seu apoio aos “manifestantes”, no plural, sem distinguir os manifestantes pacíficos (que apoia) e os causadores de distúrbios (que não refere nem critica). Escreveu o porta-voz do partido: “Todo o meu apoio aos jovens antifascistas que estão a pedir justiça e liberdade de expressão nas ruas. Ontem [terça-feira] em Barcelona, hoje [quarta-feira] na Porta do Sol [Madrid]”.
Echenique comentou ainda os ferimentos graves provocados numa mulher que protestava nas ruas e que ficou sem um olho, ferida por uma bala de borracha da polícia: “A violenta mutilação do olho de uma manifestante deve ser investigada e devem apurar-se responsabilidades com contundência”. Ainda pelo Twitter, Echenqiue respondeu às críticas, visando a “ultra(direita) política e mediática” que diz ter ficado “chateada” com o seu tweet — “nada de novo”, acrescentou. E ao longo das últimas horas partilhou ainda uma fotografia da manifestante ferida e um vídeo de uma carga policial violenta:
https://twitter.com/PabloEchenique/status/1362301199895117824
Já na segunda-feira o líder da bancada parlamentar do Unidas Podemos, Jaume Asens, criticara a detenção do rapper Pablo Hasél, anunciando que daria entrada no ministério da Justiça a uma petição com um pedido de indulto. “Entendemos que não pode ser a normalidade democrática que enquanto a investigação pela suspeita de corrupção na monarquia é encerrada, se coloque na prisão quem a critica em canções”, dissera Asens.
Rapper não pode ser um delito e manifestar-se em solidariedade com Hasél não pode comportar o risco de perder um olho. A nossa solidariedade com as vítimas e com aqueles que foram alvos de represensálias na atuação dos Mossos”, isto é, da polícia catalão, dissera ainda o líder da bancada parlamentar.
Já esta quinta-feira, a vicepresidente do Governo espanhol Carmen Calvo acabou por reagir aos confrontos em Espanha, demarcando-se do encorajamento do porta-voz do Unidas Podemos aos manifestantes. Em entrevista à Cadena Ser, lembrou que a manifestação não fora “convocada” legalmente nem estava permitida pelas autoridades e foi contundente: “Nenhum direito pode ser defendido ou expressado com violência. Essa é uma linha vermelha absoluta”. Já quanto às palavras de Echenique, disse: “Creio que quando se tem um cargo público é preciso viver a vida com uma certa complexidade. Uma coisa é o que podes pensar e outra coisa é o que podes fazer tendo um cargo público”.
Ciudadanos e PP acusam Podemos de encorajar “vândalos”
Se o Governo se manteve na essência em silêncio, o delegado do executivo em Madrid, José Manuel Franco, falou do sucedido e elogiou a proporcionalidade da resposta “exemplar” das forças de segurança. E o porta-voz da delegação do PSOE em Madrid, Pepu Hernández, condenou claramente os distúrbios e atos de violência. Para Pepu Hernández, “a violência nunca é o caminho” e “as alterações graves que ocorreram merecem todo o nosso repúdio e condenação” e quer “as forças e corpos de segurança” quer “o Governo de Madrid” merecem um “agradecimento” pela “rápida resposta contra quem promove o terrorismo e a barbárie”.
As mais altas figuras do Governo de Sánchez, porém, não se pronunciaram nas primeiras 48 horas após os confrontos.
Do centro-direita para a direita, a mira esteve no Podemos. O líder da formação de direita Partido Popular (PP), Pablo Casado, criticou o que considera ser uma “grave irresponsabilidade”: o alegado encorajamento e apoio do Podemos aos manifestantes. Para Casado, tal deveria ter “consequências políticas” e a Polícia Nacional de Madrid merece todo o apoio por ter feito frente a “distúrbios intoleráveis”.
Todo mi apoyo a la Policía frente a los intolerables altercados en la Puerta del Sol y alrededores.
Es una grave irresponsabilidad que partidos del Gobierno alienten estos actos violentos, que deberían tener consecuencias políticas. pic.twitter.com/dbOseXI2Jm— Pablo Casado Blanco (@pablocasado_) February 17, 2021
Também a porta-voz do Partido Popular no Parlamento espanhol, Cuca Gamarra, criticou o Podemos: “É uma vergonha que os vandalos contem com o encorajamento de um partido de Governo. Esta é a anormalidade democrática que temos e que Sánchez permite”. Uma mensagem semelhante à deixada pela líder do Ciudadanos (sucedeu a Rivera), Inés Arrimadas, no Twitter, onde manifestou “solidariedade, apoio e agradecimento aos agentes que estão a fazer frente à violência dos radicais” e criticou o apoio dado por “um partido que está no Governo” a “vândalos”.
Também a presidente da Comunidade de Madrid, Isabel Díaz Ayuso — do Partido Popular —, comentou os protestos, instando o primeiro-ministro Pedro Sánchez a demitir imediatamente e pôr “fora das instituições” espanholas o vicepresidente do Govenro, Pablo Iglesias. Isabel Díaz acusou mesmo Iglesias de “estar sempre por trás de todos estes movimentos vandâlos violentos”, que considera “que se organizam a nível internacional” e que diz que pretendem “destruir as democracias liberais”.
A política do PP lembrou que os mais afetados pelos protestos foram “comerciantes” e “gente humilde que trabalha em Madrid” que viu os seus negócios vandalizados e atacados e defendeu a prisão do rapper, que considera que foi detido “por ser um delinquente reicindente, não pela liberdade de expressão e não por desejar que José Bono [do PSOE] levasse dois tiros na nuca ou que o carro de Patxi López [também do PSOE] explodisse”.
[As imagens dos confrontos e protestos em Madrid esta quarta-feira:]
“Rappers” portugueses solidários com espanhol Pablo Hasél
A portuguesa Capicua expressou, através das redes sociais, toda a sua solidariedade para com Hasél “e com todos os outros ‘rappers’ espanhóis (são cerca de 15), como Valtònyc (exilado há uns anos para não ser preso), que, por criticar o estado espanhol e sua monarquia, têm sido alvo de perseguição e condenação”.
O criador de “Afro-Disíaco” acrescentou: “Todos os sistemas devem ser colocados em causa, nenhum sistema deve ficar impune desse escrutínio, mas se em 2021 assobiamos para o lado quando um artista é preso por contestar alguma coisa, então batemos no fundo. Se batemos no fundo, paz à nossa alma”.
Enquanto Bispo publicou, no Instagram, uma mensagem a dizer que “A voz de uns é a voz de todos”, acompanhada da ‘hashtag’ “#freepablohasel”, o ‘rapper’ Estraca recordou, no Facebook, quando em 2018, numa escola secundária, lhe desligaram o microfone: “Em seguida entram quatro agentes da PSP com a abordagem de que tinham sido chamados e que eu não podia estar a cantar aquelas coisas dentro daquele espaço e logo de seguida me convidaram a abandonar o recinto”.
Por seu lado, NBC, também nas redes sociais, mostrou-se surpreendido por, em 2021, ver “um poeta, escritor, a ser preso por dar a sua opinião numa música sobre o que ele acha do poder instituído em Espanha”.
Estraca também se pronunciou: “Farei sempre a minha parte enquanto artista e cidadão, irei continuar a gritar quando tiver de gritar, falar o que tiver de falar! Isto é muito mais do que guerras partidárias, que só servem para dividir e segregar ainda mais as pessoas, isto é muito mais do que qualquer ideologia política, é a nossa liberdade é o bem comum!”, terminando a frase em maiúsculas.
Já Valete partilhou, no Instagram, uma notícia da detenção de Hasél com uma só palavra: “Franquismo”.
Quem é Pablo Hasél, o “rapper terrorista”?
O nome do rapper Pablo Hasél entrou nas bocas do mundo, dado que a sua prisão não só levantou de novo a discussão sobre se devem ou não existir limites — e se sim, quais — à liberdade de expressão e à liberdade artística, como levou centenas de pessoas às ruas espanholas, para protestar vigorosamente contra a detenção.
O rapper, de origem catalã, deverá cumprir uma pena de nove meses por crimes de enaltecimento de terrorismo e injúrias contra a Coroa e instituições do Estado — ao contrário do que acontece em outros países, as ofensas ao Estado e à Monarquia espanhola são puníveis por lei.
Mas apesar de Hasél ter-se tornado uma figura internacional em 2021, na sequência da sua prisão, o rapper tem um longo historial de produção musical, por um lado, e de tensões com a justiça, por outro. Em 2014, há quase sete anos, Pablo foi condenado a uma pena de dois anos de prisão por ter sido considerado que fizera a apologia de atos terroristas, ao mencionar organizações como a ETA e a Al Qaeda — entre outras — nas suas contas das redes sociais. Por não ter cadastro anterior, acabou por ficar com pena suspensa.
Ainda nesse ano de 2014, um juiz pediu para que a sua canção “Menti-Ros” fosse retirado, por Pablo rapper no tema que o autarca de Lérida, Àngel Ros, merecia levar “um tiro”. Hasél foi ainda condenado em 2016 por ter empurrado, insultado e borrifado com um produto de limpeza um jornalista (da TV3), em 2017 por uma agressão e em 2018 novamente por enaltecimento de práticas terroristas (desta vez de forma reincidente) na sua música. Porém, nunca cumprira pena de prisão ativa.
O que motivou a sua prisão este ano foram, de acordo com o jornal El Confidencial, 64 mensagens publicadas na rede social Twitter entre 2014 e 2016 e uma canção que colocou no Twitte, “Juan Carlos el Bobón”, onde acusa o antigo monarca de ser “o herdeiro de Franco” e de ter assassinado “o seu irmão” Afonso, Infante de Espanha. O irmão de Juan Carlos morreu num acidente quando tinha 14 anos, quando se encontrava em Portugal com o irmão Juan Carlos, com o disparo de um revólver. Suspeita-se que o irmão possa ter estado envolvido no acidente.
Entre os tweets que motivaram a sua prisão estão afirmações como “a polícia assassina 15 imigrantes e são santinhos, o povo defende-se da sua bralidade e somos terroristas violentos”, “Polícia Nazi-onal a torturar pessoas até à frente das câmaras”, “o mafioso do Bobón [Juan Carlos] em festa com a monarquia saudita, que está entre os financiadores do ISIS…”, “o mafioso de merda do Rei dando lições a partir de um palácio, milionário à custa da miséria alheia” e “se o povo quer assim tanto a monarquía como dizem os mercenários das tertúlias, que soltem a família real sem escoltas pelas nossas cidades”.
A detenção do rapper catalão motiva duas discussões paralelas: primeiro se faz sentido manter penas criminais especificas para injúrias contra a Monarquia e instituições do Estado espanhol, depois sobre os limites e os direitos de proteção que os artistas devem ou não ter.
Em Espanha e no mundo discute-se se os julgamentos por palavras devem ser os mesmos mediante quem os proferir for ou não um artista, que pode recorrer a metáforas e expressões mais virulentas para fins líricos — mesmo no caso de um rapper como Pablo Hasél, bastante direto e denotativo na sua música —, e também se as autoridades devem julgar e prender cidadãos por delito de opinião, ofensa ao bom nome e injúrias.