Há 15 dias, na última reunião de especialistas no Infarmed, o primeiro-ministro tinha pedido um consenso aos peritos sobre a definição de linhas vermelhas para orientarem confinamentos e desconfinamentos, mas passado este tempo saiu da nova reunião sem respostas concretas ao desafio. O Governo pretendia ter já dados, nesta altura, que permitissem planear o desconfinamento que apontou para abril, mas o processo ainda está atrasado. A ministra da Saúde, à saída da reunião desta segunda-feira, disse que os peritos “mostraram a necessidade de ter uma matriz combinada”, mas na reunião não se detalhou nada disso, só ideias genéricas. A ideia mais forte foi que não se pode falar já de desconfinamento. O pós-Páscoa mantém-se, tal como o Observador noticiou, o momento apontado para o desconfinamento.
“Mesmo lá dentro [na parte da reunião à porta fechada] a ministra falou nessa necessidade [de estabelecer critérios], mas nada se estabeleceu”, diz ao Observador fonte presente na reunião. “Entrou-se na reunião como se nada fosse”, acrescenta outra fonte sobre o facto de ter sido ignorado o repto do primeiro-ministro. “Ao contrário do que pediu António Costa na última reunião não foram avançados critérios para desconfinar nem linhas vermelhas para voltar a confinar”, adianta a mesma fonte.
Especialista crítico do Governo sai do grupo de peritos e Costa pede consenso sobre nova estratégia
“Ficou a sensação que ninguém quis arriscar linhas vermelhas e o que se notou foram intervenções muito cautelosas face aos desconfinamento”, acrescenta outro dos presentes na reunião de peritos que aconselham o Governo para as medidas para responder à pandemia. A única intervenção que foi vista como “mais clara” do ponto de vista de definição de números foi a de João Gouveia, da coordenação da resposta em medicina intensiva. Foi, aliás, uma das que a ministra da Saúde comentou à saída, para referir que ainda estamos longe de poder falar em desconfinamento, agarrando-se a um dado concreto para travar expectativas de desconfinamento: “O número de internamentos em UCI é de 627 e esse é o número de camas que deveríamos ter acesso à atividade não-Covid”.
Na intervenção que fez à porta aberta, o especialista tinha dito que “para conseguirmos dar resposta a Covid e situações não Covid temos 629 camas a nível nacional, 285 das quais para Covid”. “Ou seja, podemos ter em medicina intensiva 242 doentes em simultâneo” para dar resposta a todos os doentes. Mas isto, disse também, obriga a uma incidência reduzida (inferior a 480-240 novos casos por 100 mil habitantes em 14 dias), um R inferior a 0,7, que a taxa de positividade seja inferior a 7-8%, testar o número suficiente de casos e não apenas os de alto risco, inquéritos epidemiológicos feitos atempadamente (com atrasos inferior a 30%), internamentos abaixo dos 1.500, vacinação a “excelente ritmo” e vigilância epidemiológica das novas variantes.
Foi o mais longe que alguém foi na definição de critérios, mas logo de seguida, por exemplo, Henrique de Barros — que tinha opiniões muito divergentes do especialista Manuel Carmos Gomes, que saiu destas reuniões depois de questionar toda a estratégia de combate à pandemia em Portugal — foi bem menos concreto. Fez o levantamento das medidas e a sua relação com taxas de incidência e número de internamento nos vários países europeus, mas nunca se comprometeu com o que defende que deve ser feito em Portugal.
O especialista só foi claro ao dizer que além do critério da taxa de incidência e do internamentos, que considera fornecerem “um quadro racional para a tomada de decisão no futuro”, o mesmo não se justifica quanto aos testes. “O número de testes e a proporção de testes positivos, deixamos de lado porque não mostrava poder descriminante interessante. Não é por causa de diminuírem os testes que diminui a infeção”, afirmou Henrique de Barros, contrariando Manuel Carmo Gomes, o epidemiologista da Universidade de Lisboa que na última reunião apontou como decisivo o número de testes realizados. “Estamos a fazer proporcionalmente um número maior de testes do que os que estão a ser feitos noutros países”, argumentou ainda Barros.
À porta fechada e na resposta a uma pergunta feita pelo Bloco de Esquerda, o especialista do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto ainda defendeu que mais do que a testagem massiva e sem critérios, é preciso definir um programa de testagem”, mas não detalhou mais, segundo fonte que assistiu à reunião. De resto, os especialistas falaram na importância dos testes, mas sobretudo de manter o confinamento, sublinhando a necessidade de “continuar com os números baixos”.
Baltazar Nunes foi um dos peritos que colocou freio à palavra “desconfinamento” e na sua apresentação deixou projeções para o próximo mês, num cenário de manutenção das medidas atualmente em vigor, apontando o final de março como o momento de maior alívio ao nível dos internamentos. Quanto à projeção que fez sobre a incidência da Covid-19, o especialista disse que na primeira quinzena de março o país estará abaixo dos 120 casos por 100 mil habitantes e na última quinzena dos 60 casos por 100 mil habitantes. Já quanto a internamentos em UCI, só a meio de março se prevê que o país atinja cerca de 320 camas ocupadas em UCI e apenas no final de março chegará ao valor de 200 camas.
Na sua intervenção na última renovação do estado de emergência, o Presidente da República tinha falado no objetivo de, “até à Páscoa, descer os infetados para menos de dois mil, para que os internamentos e os cuidados intensivos desçam dos mais de 5 mil [internamentos em enfermaria e intermédios] e mais de 800 [em cuidados intensivos] de agora para perto de um quarto desses valores.” Ou seja, em termos de UCI, a meta é precisamente 200, aqueles que Baltazar Nunes prevê que se atinjam apenas no final de março, ou seja, até à Páscoa como pretende Marcelo Rebelo de Sousa e já o comunicou ao país a 11 de fevereiro, defendendo a manutenção das medidas atualmente em vigor neste período. Um objetivo que não é diferente daquele que o Governo já fez saber, logo após a reunião do Infarmed de há 15 dias, que tem em mente.
Outro dado que foi sinalizado ao Observador por um dos representantes partidários que esteve na reunião: de acordo com a informação transmitida por André Peralta Santos, da DGS, neste momento apenas 16% dos casos têm link epidemiológico. Ou seja, mesmo com quatro semanas de confinamento os responsáveis continuam sem saber onde é que se infetaram 84% dos doentes por Covid-19.
Nesta reunião, ao contrário do que aconteceu na última em que lançou um desafio a peritos e parceiros sociais, o primeiro-ministro não falou. Nas perguntas, apenas CDS, Bloco, PSD, Confederação dos Agricultores e os representantes da APRe! Aposentados, Pensionistas e Reformados colocaram questões aos especialistas. Estes últimos em concreto sobre a situação da vacinação nos lares, depois de o coordenador da task force, Gouveia e Melo dizer que cerca de 90% dos utentes dos lares estavam já vacinados. A APRe quis saber o que acontecia com quem não tinha recebido a vacina e a explicação foi, segundo fonte presente na reunião, que isso se deve ao facto de alguns lares ainda terem surtos de Covid-19 e haver alguns utentes que entretanto foram contaminados, passando para o fim da lista de vacinação.
Da descida dos números à imunidade de grupo antecipada. O que os especialistas apresentaram no Infarmed
A reunião do Infarmed fica marcada pela posição de Henrique Barros, que contrariou Manuel Carmo Gomes, o epidemiologista da Universidade de Lisboa que deixou de frequentar as reuniões do Infarmed e que, na última, apontou como decisivo o número de testes à Covid-19 realizados no país. “Estamos a fazer proporcionalmente um número maior de testes do que os que estão a ser feitos noutros países”, disse, esta segunda-feira, do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto. O especialista vai mais longe e assegura que a incidência e os internamentos fornecem o “quadro racional para a tomada de decisão no futuro”.
Henrique Barros trouxe para a reunião um quadro da OMS que diz que “a atuação precisa de ter controlo de transmissão do vírus, capacidade de identificar infeções e surtos, contrariar importação de casos e garantir que sociedade está comprometida com resposta”. Assim, o especialista refere que, para aturar, tem de se “definir o que nos preocupa e o que são alvos essenciais”. Para que tal aconteça, aponta os indicadores centrais: incidência, internamentos por dias e a velocidade a que os fenómenos ocorrem, através do R, o índice de transmissibilidade, o tempo de duplicação ou “idealmente as taxas de crescimento”. O especialista explica que o R não é o indicador melhor, já que resulta melhor no início, tratando-se da taxa “menos interessante de todas”.
Baltazar Nunes, do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, revelou que “o R encontra-se abaixo de 1 em todas as regiões do continente e das regiões autónomas” e “nos últimos cinco dias tem estabilizado em torno de 0,66 e 0,68”. No que toca à incidência por idades, nos primeiros 14 dias de fevereiro houve “uma redução muito clara em todas as idades”, nomeadamente “nos grupos populacionais com incidência mais elevada”.
O especialista traz mais números, nomeadamente sobre a mortalidade. Entre a 56.ª semana de 2020 (a que começou a 28 de dezembro) e a sexta de 2021, houve um “aumento de 8.718 mil óbitos atribuíveis à Covid-19”, diz Baltazar Nunes, que indica ainda que 64% do total de de óbitos em excesso neste mesmo período foram causados pela Covid-19, 19% aconteceram devido às temperaturas extremamente baixas e 7% por outros fatores.
André Peralta Santos, da DGS, também revelou números das últimas semanas e refere que a incidência de contágios a 14 dias teve uma “consolidação da tendência” e uma “descida muito significativa”. De olhos postos nas regiões, o especialista enaltece ainda o “processo de descida da Madeira”, bem como das restantes regiões nacionais. Lisboa e Vale do Tejo continua com o nível de incidência mais elevado do país.
Com os valores a descer em todos os parâmetros, Baltazar Nunes apresenta as projeções para o próximo mês, em que na primeira quinzena de março o país estará abaixo dos 120 casos por 100 mil habitantes e na última quinzena dos 60 casos por 100 mil habitantes. As descidas estendem-se à medicina intensiva, mas só a meio de março será possível atingir cerca de 320 camas ocupadas em UCI e apenas no final de março se chega às 200 camas.
João Gouveia, da Coordenação da Resposta em Medicina Intensiva, explica que “a situação da medicina em Portugal é muito frágil porque a capacidade instalada é muito enganadora, não é real”. O especialista alerta que para se chegar a um ponto ótimo “é preciso completar as obras em curso e principalmente assegurar recursos humanos com a realização de concursos e a contratação de enfermeiros para a medicina intensiva”.
“Estávamos na cauda da Europa quando começou a pandemia, fruto de um sub investimento crónico em saúde em medicina intensiva em Portugal”, afirma João Gouveia que diz que “apesar do défice crónico, fomos capazes de tratar mais de 10% dos doentes internados” nos hospitais.
Nos últimos meses, com um “pico francamente elevado”, Portugal conseguiu “dar resposta a mais de 900 doentes em simultâneo”, uma capacidade de resposta que só foi possível com “muito esforço de todos os profissionais, com ocupação de espaços não dedicados à medicina intensiva e com a construção de novos espaços feitos para a medicina intensiva”.
A capacidade instalada chegou às 1.424 camas em medicina intensiva, no pico, face às 629 que existiam em janeiro de 2020 e às 1021 de março desse mesmo ano. Mas esta capacidade não pode ser mantida, segundo o especialista. Se tivéssemos a atual capacidade instalada, de 1.339 precisávamos de “ter mais 448 especialistas em medicina intensiva e mais 2173 enfermeiros”. Isto para manter a capacidade instalada com recursos humanos.
Henrique Gouveia e Melo, coordenador da Task Force para o Plano de Vacinação contra a Covid-19 em Portugal, foi o último a tomar a palavra para anunciar uma das metas mais esperadas. A previsão para se atingir a imunidade de grupo em Portugal “pode passar do fim do verão para meados de agosto ou o início de agosto” porque a disponibilidade das vacinas aumentou em relação aos dados da última reunião do Infarmed.
São apenas “expectativas que ainda têm de se confirmar”, é o próprio que o diz, mas espera-se que no segundo trimestre haja concentração de vacinas “suficiente para aumentar a velocidade vacinação para cerca de 100 mil vacinas por dia, o que fará com que se tenha de pensar em modelos alternativos aos centros de saúde, para que o processo decorra sem problemas na administração de vacina”.
Até agora chegaram cerca de um milhão de vacinas a Portugal e destas foram aplicadas 680 mil no continente, 29 mil nos Açores e Madeira e 230 mil vacinas serão aplicadas esta semana.
João Paulo Gomes, do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, ficou responsável por falar das variantes da Covid-19 e deixou claro que a do Reino Unido “salta à vista” em Portugal e no mundo. Os especialistas estimavam que 65% dos casos de Covid-19 em Portugal fossem causados por esta variante, mas “tal não aconteceu graças ao confinamento rígido”. Na semana sete de 2021 cerca de 48% dos casos são causados pela variante inglesa e “não tem mostrado tendência crescente”.
“Apesar da redução do número de casos, seria expectável que a variante do Reino Unido aumentasse” porque a transmissibilidade é mais forte, mas o especialista refere que o mesmo não aconteceu. “Pode ter acontecido que tenhamos conseguido bloquear todas as transmissões além da primária”, diz, frisando que com esse bloqueio a variante mais transmissível terá perdido vantagem”. Trata-se da existência de um platô. No ponto de vista de João Paulo Gomes “esta variante não vai desaparecer” quando desconfinarmos e é normal que “possamos assistir a um novo crescimento exponencial”.
Sobre outras variantes, João Paulo Gomes refere que se mantêm os quatro casos da mutação da África do Sul e não foi detetado nada nas últimas semanas. Ontem foram detetados sete casos da variante de Manaus, do Brasil. São casos recentes e os contactos têm história delineada. Apesar de serem sete casos, é apenas uma única introdução do país. São dois clusters familiares, a mesma cadeia de transmissão, o que é uma “boa notícia”.