O empresário luso-angolano Carlos São Vicente está acusado de vários crimes, entre os quais fraude fiscal continuada durante cinco anos, com valores superiores a mil milhões de euros, segundo o despacho de acusação a que a Lusa teve esta sexta-feira acesso e que apresenta Manuel Vicente, ex-vice-presidente de Angola, como parceiro.

De acordo com o  Ministério Público angolano, além do crime de fraude fiscal, o genro do primeiro Presidente da República de Angola, Agostinho Neto,  é ainda acusado de peculato e de crime de branqueamento de capitais de forma continuada.

Carlos São Vicente ,que está em prisão preventiva, já foi notificado do despacho de acusação no passado dia 17, mas os advogados de defesa consideram o documento ferido de irregularidades processuais, pelo que já requereram a nulidade do ato.

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De acordo com a acusação, o empresário, que durante quase duas décadas teve o monopólio dos seguros e resseguros da petrolífera estatal angolana Sonangol, terá montado um esquema triangular, com empresas em Angola, Londres e Bermudas, que gerou perdas para o tesouro angolano, em termos fiscais, num montante acima dos 1,2 mil milhões de dólares (mais de mil milhões de euros) .

Com este esquema, e segundo o mesmo documento, Carlos São Vicente, dono de um dos maiores grupos empresariais privados de então em Angola, terá também conseguido não partilhar lucros do negócio dos seguros e resseguros com outras cosseguradoras, como a seguradora pública ENSA, prejudicando, deste modo, estas empresas, bem como a própria Sonangol. Uma acusação que, segundo fontes ligadas à defesa do empresário “tem uma fundamentação quase inexistente”, porque não haver factos que o provem a fraude fiscal.

Já para a acusação, Carlos São Vicente criou a partir de determinada altura uma “espécie de negócio consigo próprio, dentro do grupo AAA [de que era proprietário], causando o desvio de fundos públicos“. Com este esquema, quando um segurado o contactava, através da AAA Seguros, em Angola, o empresário faria contratualização com empresas do grupo fora do país, fugindo aos impostos em Angola. Esta estrutura “em nada veio a beneficiar o Estado angolano” e “apenas beneficiou o grupo de empresas AAA”, lideradas e já controladas, na altura, por Carlos São Vicente, referem os magistrados do Ministério Público.

A base de contacto das Bermudas serviu “unicamente para inflacionar os prémios pagos pelas petrolíferas, tendo sido usada como forma de ludibriar os incautos”. E, pela burocracia existente, “Angola deixou de existir como ‘produtora de petróleo’ e as Bermudas passaram a ser um novo ‘produtor’ de petróleo”, já que os negócios eram feitos através daquele país. Desta forma, a Acusação considera também que o empresário prejudicou a estratégia da Sonangol para fomentar o empresariado nacional, “causando consequentemente graves prejuízos para o tesouro angolano”.

“Na verdade, fruto de tais mudanças estruturais perpetradas pelo arguido, dos prémios pagos pelas petrolíferas apenas 50% seguiam o curso normal do mercado internacional, sendo que da outra parte, 15% eram encaminhados para a AAA Reinsurance e os restantes 35% eram encaminhados, em forma de comissões, para as restantes empresas offshores do grupo AAA”, adianta o despacho.

Além disso, e “sem qualquer justificação”, os prémios passaram a “sofrer aumentos significativos e as franquias subiram para valores muitíssimo acima” dos anteriormente praticados.

Deste modo, franquias que eram de dois milhões de dólares (1,8 milhões de euros) passaram a ser de 20 milhões de dólares (18 milhões de euros), sem que esta subida se repercutisse em qualquer redução nos prémios e comissões que estavam a ser debitados aos riscos em Angola.

Para a “sobrefaturação dos prémios de seguros, o arguido, por intermédio da AAA Corretores de Seguros Lda, em determinadas situações, procedia à indicação de várias comissões dos intervenientes no negócio e, noutras vezes, de forma discricionária, lançava mão de outros critérios que melhor lhe convinham adotar, uma vez que era ele, arguido, quem estabelecia o valor a cobrar-se a cada operador”.

Por outro lado, a AAA Reinsurance [nas Bermudas], detida pelo arguido, passou a ser a empresa que cedia os negócios no mercado internacional e “quaisquer benefícios que o volume de negócios pudesse oferecer, tal como, a comissão de lucros resultante da boa experiência de sinistralidade, passou a ser paga” naquele país e “não, como deveria ser, aos respetivos segurados em Angola”, salienta ainda o texto da Acusação.

No que diz respeito aos prémios de seguro, os pagamentos eram efetuados diretamente na conta da AAA seguros SA no Hong Kong and Shanghai Banking Coporation (HSBC), sedeado em Londres, e desde aí, eram feitas transferências para as resseguradoras, acusam os procuradores.

Em virtude deste cenário criado pelo arguido, “nos anos de 2009 a 2015, verificou-se um volume de comissões pagas ao grupo AAA, ou seja, cerca de USD: 1.299.222.331,00”, refere a acusação.

A acusação sublinha que “nem uma única” destas comissões deu entrada no território angolano, verificando-se “uma marcada fuga ao fisco, pois se essas comissões tivessem sido pagas em território angolano, teriam sido declaradas nos balanços e contas da AAA Seguros SA, com as devidas contribuições ao Estado, em regime de impostos, revertendo para o tesouro nacional”.

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Isto, apesar de a AAA Seguros estar “vinculada a partilhar as comissões de cedência e de proveito de resseguros, resultando do negócio com as demais cosseguradoras”.

Ora, no quadro do regime especial de cosseguro obrigatório do ramo petroquímico, do qual a AAA Seguros SA era líder e que partilhava uma comissão com a Ensa, numa divisão 55%-45% respetivamente, o arguido deduzia da seguradora pública uma comissão de gestão administrativa adicional e a empresa estatal “tinha menos ganhos do que os que tinha direito por lei”, refere ainda o texto da Acusação.

A justiça angolana considera que Carlos São Vicente “sonegou às várias cosseguradoras os montantes das comissões que por lei teria de pagar em função das percentagens das participações estabelecidas por cada seguradora”.

“De forma incontroversa”, como refere o relatório, citado no despacho de acusação, produzido pela Agência Angolana de Regulação e Supervisão de Seguros (ARSEG), foram “extirpados do tesouro nacional, um montante acima de USD: 1,200.000.000,00 relativo às comissões indevidas”.

Manuel Vicente apontado como parceiro

O antigo vice-presidente de Angola e ex-presidente da Sonangol, Manuel Vicente, é apontado, no despacho de acusação do empresário Carlos São Vicente, como o parceiro com quem o arguido terá montado “um plano de apropriação ilícita de rendimentos e lucros”.

A justiça angolana considera que o antigo número dois do Presidente José Eduardo dos Santos cedeu, quando era presidente da administração da Sonangol, a participação da petrolífera estatal na seguradora AAA Seguros ao arguido, de modo gratuito e sem conhecimento dos restantes administradores.

Esta transferência da propriedade da seguradora, detentora do monopólio dos seguros do petróleo no país, permitiu a Carlos São Vicente a criação um império empresarial, que é agora visado pela justiça angolana por fraude fiscal superior a mil milhões de euros, entre outros crimes.

Entre 2000 e até novembro de 2005, Carlos São Vicente, que já era quadro da petrolífera estatal Sonangol desde 1983, desempenhou a função de diretor de gestão de riscos, área que tratava dos seguros dos trabalhadores e de toda a atividade petrolífera. Manuel Vicente foi presidente do conselho de administração (PCA) da Sonangol entre 1999 e janeiro de 2012, ainda antes de ser vice-presidente da República.

Neste período, em que se cruzaram nos dois cargos, de acordo com o despacho de acusação e com base na Lei das Atividades Petrolíferas, o Estado angolano desenvolveu uma estratégia de gestão de riscos das operações petrolíferas.

Assim, neste novo contexto, e “no sentido de conformar a atividade seguradora da Sonangol. EP., a 1 de abril de 1999, por iniciativa do arguido [Carlos Manuel de São Vicente], detendo esta [Sonangol] 100% do capital social, foi criada como Resseguradora Internacional, uma empresa offshore denominada Mirabilis Insurance Limited”, nas Bermudas.

Porque, segundo Manuel Vicente [que foi ouvido pelo Ministério Público no âmbito deste processo, mas não acusado], “todas as restantes companhias petrolíferas expressivas no mundo tinham seguradoras cativas naquele país”.

Esse foi o momento a partir do qual Carlos São Vicente, “devidamente mancomunado [combinado] com o declarante Manuel Vicente, passou a engendrar um plano de apropriação ilícita de rendimentos e lucros, que viriam a ser produzidos com a implementação do sistema de seguros e resseguros no setor de exploração petrolífera, com vista a evasão de divisas do país e ao enriquecimento ilícito”, lê-se no despacho de acusação.

Já de 2001, qualquer companhia petrolífera internacional tinha a obrigação de criar uma parceria com a Sonangol Holding.

No mesmo ano, com a publicação de um outro decreto, foi constituído o cosseguro para os riscos petrolíferos, cobrindo todas as operações em curso no território angolano, “o que retirou o monopólio então atribuído à empresa pública ENSA, concedendo-o à AAA Seguros”.

Coube à direção de gestão de riscos da Sonangol a responsabilidade de implementar a estratégia e gestão de riscos das atividades petrolíferas e a Carlos São Vicente “a missão de negociar com as companhias os termos dos contratos de exploração e produção de petróleo”.

Em 2000, já tinha sido constituída a Sociedade AAA Serviços Financeiros, apresentada como uma holding, enquanto coordenadora das atividades em Angola e incluía quatro subsidiárias, tendo o Estado angolano 100% do capital social de todas elas.

No intuito de globalizar a empresa AAA, o “arguido com a conivência do declarante Manuel Vicente, oportunamente lançou mão da então offshore Mirabilis Reinsurance Limited, sedeada nas Bermudas, alterando a sua designação, em 2003, para AAA Reinsurance Limited”, lê-se no despacho de acusação.

“Com a estrutura acima concebida, desde o início da sua constituição, inusitadamente, mediante um ‘acordo verbal’ estabelecido entre o arguido e o declarante Manuel Vicente, ficou assente que o grau de participações da Sonangol. EP. no Grupo AAA, deveria ir-se reduzindo e, em contrapartida, a posição do arguido iria gradualmente aumentar como acionista da AAA Seguros Lda, ao longo do tempo”, adianta o documento.

Entretanto, Carlos São Vicente foi nomeado por Manuel Vicente para o cargo de presidente do conselho de administração (PCA) da AAA Seguros SA, numa altura em que simultaneamente “num manifesto e gritante ato de conflito de interesses exercia igualmente o arguido a função de diretor” na petrolífera, realça a acusação.

“Desde essa altura, a relação entre a Sonangol EP e o grupo de empresas AAA foi sendo direta e convenientemente estabelecida entre o arguido e o declarante Manuel Vicente, cabendo a este último a supervisão de Gestão de Riscos no quadro do conselho de administração” da petrolífera angolana.

“A partir de 2001, colocando o arguido em prática o ‘acordo verbal’ estabelecido com o declarante Manuel Vicente e com a implantação do negócio e o monopólio dos seguros atribuído à AAA Seguros SA, sem qualquer benefício para a Sonangol EP, a estrutura acionista do grupo AAA começou a sofrer várias alterações substanciais”, referem os promotores.

“Foi assim, que com as cedências de ações de valores avultados ‘presenteadas’ pelo declarante Manuel Vicente, sem que autorização tivesse da autoridade competente e, aproveitando-se da sua qualidade de PCA da Sonangol EP, permitiu a redução drástica das ações detidas pela Sonangol EP na AAA Seguros SA, de 100% para 10% em benefício do arguido, que se tornou, deste modo, detentor maioritário de 87,89% do capital”.

Para a justiça angolana, “as alterações que se ocorreram e que (…) culminaram com a perda da condição da Sonangol EP como acionista maioritária do grupo AAA, em benefício do arguido, desencadearam-se de forma ardilosa, sob a falsa aparência de que se cumpriam todas as formalidades legais”.

Além disso, as sessões presididas por Manuel Vicente no conselho de administração da Sonangol, que resultaram em deliberações exaradas pelo Conselho e que, em consequência, vincularam os restantes membros da administração da petrolífera, visando a cedência das participações da AAA, “foram realizadas na ausência” dos outros elementos da administração, acusam os promotores.