Título: O avesso da pele
Autor: Jeferson Tenório
Editora: Companhia das Letras
Ano da Edição: abril de 2021
Páginas: 194
Preço: 16,50€
Henrique tinha acabado de sair da escola onde dava aulas no turno da noite quando foi abordado pela polícia. Os agentes investigavam o homicídio de um colega e pareceu-lhes suspeito estar um homem negro sozinho à noite numa rua de Porto Alegre. Inebriado pelo sucesso da aula sobre Crime e Castigo, Henrique recusou-se a parar para mais uma abordagem policial. Foi baleado e morreu ali mesmo. Dias depois, na sua casa, o seu único filho, Pedro, tenta encontrar um sentido para o que aconteceu e superar a morte prematura e violenta do pai às mãos da polícia de Porto Alegre. Para isso, reconstrói a história da sua vida, que lhe foi sendo transmitida “em retalhos” ao longo dos anos.
É com a dor de Pedro que O avesso da pele, a estreia em Portugal do escritor brasileiro Jeferson Tenório, começa. Com a criação de uma narrativa familiar que, num momento muito difícil, Pedro recupera por lhe ter sido negada. Esta serve a Tenório para explorar o tema central do romance — o racismo, o preconceito e a situação de precariedade que muitos negros se veem obrigados a enfrentar no Brasil por causa da cor da sua pele. Um relato poderoso, O avesso da pele é também um estudo belo e delicado sobre a complexidade das relações humanas e familiares, sobretudo entre pais e filhos, e sobre como os “fantasmas” e os problemas de cada um podem interferir profundamente nessas mesmas relações.
Para contar a história de Henrique, que é também a história de muitos outros homens negros do sul do Brasil, Tenório recorre a uma estrutura narrativa que vai andando para trás e para a frente no tempo. Pedro, que é também personagem além de narrador, vai intercalando as suas próprias experiências com as memórias que tem do pai e com aquelas que, sendo anteriores ao seu nascimento, vê-se obrigado a reconstruir. O processo de reconstituição, que parte do contacto com os objetos que se encontram no seu apartamento de Henrique, não é feito com base numa recolha cuidada de factos e vivências. Não é um trabalho histórico ou de índole jornalística. É “uma verdade inventada”, que o jovem estudante de Arquitetura cria para se “pôr de pé”. “Eu sei que esta história pode estar apenas na minha cabeça”, confessa, “mas é ela que me salva”. “Não estou reconstituindo esta história para você nem para minha mãe, estou reconstituindo esta história para mim.” Ao fazê-lo, Pedro não está apenas a recuperar o pai que perdeu, mas também a encontrar-se a si próprio no meio do caos.
A história que narra é uma história de luta do início ao fim. De “anos a fio” a “suportar a pobreza, o racismo e a ausência paterna”; da primeira infância no Rio de Janeiro; da inevitável mudança para Porto Alegre, onde morava a avó e onde fazia tanto frio que tinha de usar um gorro; da descoberta do significado de “negritude” nas aulas do professor Oliveira e as implicações que isso teve, na sua vida e no modo como a entendia; dos relacionamentos frustrados com raparigas brancas por causa da intransponível barreira da cor da pele; da procura de emprego junto de patrões que desconfiavam de negros; da entrada na faculdade através do sistema de cotas; e das dezenas de abordagens policiais de que foi alvo ao longo dos anos apenas pela cor da sua pele e que acabaram por ditar a sua morte precoce.
Ao mesmo tempo que vai desvendando a história do pai, Pedro vai também contado a história de sua mãe, Martha, e tentando perceber como o seu complicado historial familiar pode explicar a sua personalidade difícil, obsessiva e controladora. Filha de uma mãe alcoólica e de um pai pouco presente, Martha ficou órfã na infância (a mãe morreu atropelada; o pai de “ataque fulminante do coração”, meses depois), tendo sido criada por uma mãe adotiva branca num morro isolado junto à praia. Depois de um relacionamento frustrado com um homem violento viciado em cocaína, Martha foge do Morro das Pedras, mas algo dentro de si ficou partido para sempre. Os seus “fantasmas” impedem-na de voltar a ter um relacionamento saudável, incluindo com Henrique, que conhece na faculdade e com quem acaba por se casar. O nascimento de Pedro só vem dificultar as coisas. Os dois acabam por se separar.
Henrique não é isento de culpa, claro. O professor de Literatura tem também os seus fantasmas, e esses perseguem-no e condicionam a sua vida. A sua luta não é apenas exterior, contra uma sociedade que insiste em julgá-lo pela cor da sua pele (“Você sempre dizia que os negros tinham de lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o que nos restava”, recorda o filho), mas também interior, no “avesso da pele”. São duas faces da mesma moeda, estão intimamente ligadas. Uma deu origem a outra, tal como no caso dos pais de Martha, que morreram não só porque tomaram as decisões erradas, mas porque o mundo os empurrou para uma vida de precariedade. A própria Martha constata isso, ao dizer a Henrique:
“Minha mãe bebia para se proteger da realidade. Ela era uma mulher negra, na década de oitenta, com quatro filhos para criar. Era o mundo contra ela e contra nós. Ela era uma presa fácil, entende? Porque a gente, às vezes, cansa de suportar. E quem a manteve de pé até que pudéssemos sobreviver não foi o discurso do movimento negro, mas as garrafas de cerveja e cachaça que ela conseguia beber”.
Cada um protege-se como pode. Martha tenta controlar a vida dos que a rodeiam; Henrique tem os seus livros, que lhe dão a hipótese de fugir para lugares tão longínquos quanto São Petersburgo. Esse mundo que constrói mantém-no muitas vezes afastado do filho, com quem tem uma relação intermitente, também por culpa da ex-mulher. Embora Pedro o procure com regularidade, passa semanas sem dar notícias, imprimindo uma distância que o jovem tenta encurtar ao reconstruir a sua vida após a sua morte. As saudades que sente do pai morto são uma continuação das saudades que sentia do pai vivo (“Acho que você não sabia ser pai. Não da forma que eu esperava”, admite nas últimas páginas do livro). A repescagem das memórias de Henrique é um último esforço de aproximação e compreensão de uma figura que passou por si com leveza, mas que deixou uma marca profunda. Quem ler este livro não lhe ficará, também, indiferente.
É o olhar incisivo com que Jeferson Tenório descreve as várias matizes das relações humanas, sobretudo da relação entre pais e filhos, que tornam O avesso da pele um romance tão extraordinário. O foco da obra não deixa de ser o racismo e o preconceito da sociedade brasileira do sul, que o autor retratou por meio de exemplos concretos e, por isso, mais impactantes, mas é a forma como Tenório mostra o impacto que estes têm não só nas vítimas, mas naqueles que as rodeiam, que o eleva a outro patamar. Ainda que pequeno, o livro analisa com grande profundidade, beleza e delicadeza um tema que é muito mais complexo do que pode parecer, lembrando que, embora pese a urgência de mudar uma sociedade onde tanta coisa permanece errada, não basta curar as feridas superficiais. É preciso também curar as que estão do lado de dentro, escondidas sob a pele.