Um caso de violência doméstica, que terminou com a morte da mulher pelo marido, teve vários inquéritos arquivados, porque não houve recolha de prova além dos testemunhos, e avaliações de risco pouco criteriosas.

Segundo a Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídios em Violência Doméstica (EARHVD), que analisou o caso, tendo em conta a investigação criminal, a avaliação do risco e a atuação do setor da saúde, “era impossível deixar de ter a clara perceção de que algo de muito preocupante se encontrava a decorrer na dinâmica relacional do casal, bem como do possível aumento da gravidade dos eventos que sustentavam o contexto de violência doméstica”.

O caso diz respeito à morte de uma mulher de 66 anos, assassinada pelo marido de 69 anos, casados durante 46 anos, “numa relação conturbada, pelo menos desde 2005, intensificando-se em 2016 as ideias delirantes de ciúme do homicida (…), ocorrendo a morte em janeiro de 2018″.

No que diz respeito à investigação criminal, a EARHVD constatou que “nos inquéritos em que se investigaram factos caracterizados como violência doméstica (…) as entidades responsáveis pela investigação criminal atuaram sem proatividade”.

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Por outro lado, indicadores preocupantes registados nas avaliações de risco deveriam ter suscitado, pela sua importância e gravidade, a necessidade de desenvolver atividade investigatória”, lê-se no relatório.

Acrescenta que uma investigação desta natureza, em que está em causa um contexto de violência doméstica, “não se pode restringir a depoimento da vítima nem ficar na total dependência da iniciativa desta para levar a cabo a recolha de elementos probatórios”.

As críticas da equipa surgem do facto de terem sido instaurados quatro inquéritos anteriores ao homicídio, entre junho de 2016 e dezembro de 2017, cujos factos relatados apontavam para a prática de um crime de violência doméstica, mas que acabaram arquivados por falta de prova, uma vez que agressor, vítima e testemunha, filha do casal, recusaram-se a testemunhar.

A EARHVD critica também a atuação do Ministério Público (MP), apontando que é da sua responsabilidade, bem como dos órgãos de polícia criminal, “investigar, independentemente da colaboração que a vítima esteja em condições de prestar“.

No caso em análise, não o tendo feito no decurso do inquérito, deveria o MP, ao proferir despacho de arquivamento, acionar a intervenção dos serviços e entidades que pudessem proporcionar o suporte e o acompanhamento que tivesse em vista procurar evitar o prolongamento e a agudização do conflito”, refere.

Acrescenta mesmo que nestes casos, cabe também ao MP, não só investigar, mas proteger a vítima e “assegurar a neutralização de outras eventuais condutas violentas da pessoa agressora”.

Relativamente à avaliação do risco, a equipa constatou que “em todos os inquéritos“, a GNR fez a avaliação de risco tendo por base apenas o testemunho da pessoa que denunciou o caso, tendo a equipa de análise encontrado “pontos que suscitam perplexidade”.

A equipa encontrou contradições nas avaliações de risco, bem como fatores de risco que não foram assinalados apesar de estarem explícitos na denúncia, a falta de uma ação de investigação em linha com os eventos mais relevantes e medidas de vigilância com um “caráter muito genérico”.

“O resultado foi uma avaliação pouco criteriosa, que compromete a sua própria credibilidade e questiona a capacitação dos profissionais que a executaram”, critica a EARHVD.

A análise da atuação do setor da saúde, por último, mostra que não terá sido questionada a possível existência de um ambiente de conflitualidade naquela relação conjugal, apesar de “os profissionais de saúde se encontrarem numa posição privilegiada para o poder identificar precocemente” e com isso desencadear os meios de intervenção necessários.

Tanto a vítima como o agressor foram assistidos nos serviços de saúde, ela por várias lesões traumáticas, ele na sequência de acompanhamento a “problemas de ansiedade, perturbação depressiva e outros transtornos psicológicos”, tendo sido diagnosticado com Perturbação Delirante e Perturbação Depressiva, centradas na temática de ciúme para com a mulher.

Por último, a EARHVD recomenda ao Governo que faça, com caráter de urgência, o balanço da aplicação do modelo de avaliação e gestão do grau de risco da vítima de violência doméstica.