Não haverá nome que gere mais consenso na cozinha portuguesa do que o de Maria de Lourdes Modesto. Aos 90 anos — dia 1 de Junho fará 91 — a professora, gastrónoma e diva da gastronomia tradicional portuguesa, como é conhecida, deixa mais um livro entre o seu extenso legado, uma coletânea de saberes, sabores, segredos e receitas — “Coisas Que Eu Sei”. E, realmente, há coisas que só Maria de Lourdes Modesto é que sabe.
Mais do que cozinheira, apresentadora ou escritora, Maria de Lourdes Modesto levou a cabo ao longo da sua carreira um trabalho quase antropológico no que à cozinha diz respeito, numa análise detalhada de cada receita e técnica, sempre com o objetivo de tornar a cozinha portuguesa e as suas tradições acessíveis a todos. Em “Coisas Que Eu Sei” a história repete-se, reunindo agora um compêndio de saberes e histórias, algumas delas nunca publicadas.
“Para o bem e para o mal, Portugal vive um momento de grande euforia gastronómica. Se é verdade que hoje, ao contrário do que acontecia há 50 anos, já é possível encontrar na restauração cozinha tradicional em todo o país, não é menos verdade de que o risco de desfiguração e perda se tornou superlativo”, relembra a autora no comunicado que dá a conhecer o seu novo livro.
Na mais recente obra, Maria de Lourdes Modesto volta aquilo que faz de melhor: refletir sobre as heranças da cozinha tradicional portuguesa, homenageando-a uma vez mais. Desta vez, olhou bem lá para trás — para os sabores de infância que a marcaram à volta da mesa. Percorre um conjunto de receitas com história como a dos crepes Suzette ou a das areias de Cascais, e receitas que são incontornáveis no receituário português como é o caso do arroz-doce, pudim flan ou marmelada.
É também no livro que sai neste dia 25 de maio que Maria de Lourdes Modesto volta à base, que é como quem diz, a alguns dos pilares da alimentação, focando-se em receitas e nos tais “saberes” sobre a sopa, que considera ser o triunfo das virtudes, ou até mesmo as saladas, o tão idolatrado pão, os frutos do mar, a laranja que é sinónimo de Portugal no mundo, o tomate, o mel, o iogurte, a castanha e o figo, a curgete e até o gengibre. Tudo é alvo de escrutínio pela veterana da cozinha, que admite não ser “a padeira de Aljubarrota da cozinha tradicional, inflexível a qualquer mudança”.
“Apenas se pede que separem as águas — a chamada cozinha de autor não tem memória, é por regra, irrepetível. A tradicional é fator de identificação de uma região, de um grupo, de um país, e quer-se bem copiada”, refere Maria de Lourdes Modesto, em relação à reprodução da comida portuguesa, que deve ser rigorosa.
Na sua crónica sobre pão, “O pãozinho que faz a diferença”, que integra um dos capítulos do novo livro, Maria de Lourdes aponta a sanduíche como a solução fácil “para ter ao mesmo tempo uma refeição ligeira, equilibrada e até gastronómica”, lê-se ao longo das páginas 67 e 68 de “Coisas Que Eu Sei”.
Começa por dizer que a sanduíche tem, claro, como base o pão, um “alimento sacralizado” discorrendo sobre a sua origem — a do uso do fermento no pão pertence aos egípcios, aponta, mas foram os gregos “que melhor aproveitaram este conhecimento, desenvolvendo a cultura do pão, cozendo-o de várias formas e juntando-lhe outros ingredientes”.
Mas o problema do pão está “na escolha”, na quantidade de pães que dificultam essa escolha. “Não é fácil também definir o que é um bom pão. Começando pelos nossos: poderemos dizer que o pão de Mafra com os seus enormes alvéolos é superior ao compacto e saboroso pão alentejano?”, continua, enumerando vários tipos de pão. Enquanto ensina quem lê, um dos seus grandes objetivos, acaba a dar receitas de coisas tão simples como uma sanduíche.
No caso da escolha recair sobre um pão redondo, Maria de Lourdes Modesto explica: “Corte uma tampa ao pãozinho e retire-lhe o miolo; espalhe no fundo lascas de atum e acabe de o encher com rodelas de ovo cozido e de tomate bem escorrido (ou 3 tomates-cereja), lascas de pimento verde e uma ou duas azeitonas. Para mais sabor, uma folha de manjericão cortada em tirinhas, ou orégãos. Regue com um pouco de vinagreta com mostarda. Tape com a tampa do próprio pão e espete um palito na vertical trespassando o recheio. Agora é só embrulhar em película aderente, apertando bem e meter na malinha. Não arrisca? Então deite a vinagreta num frasquinho que feche bem e tempere na altura de comer”, pode ler-se na mesma crónica.
Mais à frente no livro, dá conta de algumas verdades, uma delas ligada precisamente a este storytelling que faz questão de desenvolver nas suas obras. “Reparo que agora, mais do que pelas receitas, as pessoas que se interessam por gastronomia, mostram maior curiosidade pela história dos pratos que comem”, escreve na crónica “Afinal, quem era Suzette: donzela ou cortesã?”, nas páginas 181 a 183, onde diz querer falar de estorietas que correm, em conversas ditas de salão, sobre pratos ou manjares que atingiram o estatuto de celebridade”. É o caso dos crepes Suzette, a que chama de “sobremesa-espetáculo”. E o resto? O resto é história e envolve príncipes.
A diva e a crítica. Maria de Lourdes Modesto, a mulher a quem devemos a original cozinha portuguesa
Foi uma peça de Molière — que fez Modesto estrear-se nos palcos nos tempos em que ensinava no Liceu Francês — que a catapultou para a televisão, ainda novidade por cá. Na RTP apareceu pela primeira vez em 1958, numa rubrica de culinária dentro de um programa feminino — depois veio Culinária, o programa próprio que apresentou ao longo de 12 anos, tornando-se num fenómeno de popularidade.
Deu-se a conhecer aos americanos, em 1987, altura em que o New York Times a apelidou de “Portugal’s Julia Child”, a conhecida cozinheira e apresentadora de culinária norte-americana. Além de “diva da gastronomia portuguesa” valem-lhe também os títulos de “uma das cada vez mais raras Guardiãs do Fogo”, atribuído pelo crítico gastronómico José Quitério, ou até mesmo “uma das três grandes génios nascidas no século XX [em Portugal]”, palavras de Miguel Esteves Cardoso, na sua coluna Ainda Ontem.
Os seus livros não envelhecem, são obras sem idade e consideradas base para muitos comensais, chefs e cozinheiros, como já revelaram Henrique Sá Pessoa, José Avillez ou Vítor Sobral. Maria de Lourdes é autora de conhecidos livros que marcam o percurso da cozinha portuguesa, quase que em jeito de bíblias da gastronomia nacional, como é o caso da “Grande Enciclopédia da Cozinha”, o seu primeiro livro, lançado ainda dos anos 60. Ou o icónico “A Cozinha Tradicional Portuguesa”, publicado em 1982, depois de muitos anos guardado na gaveta à espera que as receitas das várias regiões de Portugal vissem a luz do dia. É também o livro de culinária mais vendido em Portugal, tendo ultrapassado já os 400 mil exemplares.
Maria de Lourdes Modesto. “Cozinhados era uma coisa a que eu não achava graça nenhuma”
Da bibliografia obrigatória fazem parte também “As Receitas de TV”, “As Receitas Escolhidas de Maria de Lourdes Modesto”, “Festas e Comeres do Povo Português” e muitos outros livros temáticos tomaram conta da bibliografia da veterana da cozinha portuguesa.
O novo livro “Coisas Que Eu Sei” já está à venda nas livrarias, sob a chancela da LeYa/Oficina do Livro, por 21,90 euros. As crónicas e receitas fazem-se acompanhar de ilustrações de João Pedro Cochofel.