É mesmo proibido estar fora de casa depois das 23h nos concelhos com índices de contágio por Covid-19 especialmente elevados? Há ou não um recolhimento obrigatório? A formulação da Resolução do Conselho de Ministros desta quinta-feira deixa margem para algumas dúvidas, explicam ao Observador dois constitucionalistas. Se por um lado há um suavizar na redação, por outro há sanções.

Depois de em conferência de imprensa terem sido anunciadas pelo Governo “limitações à circulação” sem direito a exceções, como o certificado digital — uma medida cuja legalidade foi questionada por diversos constitucionalistas — a resolução veio deixar claro, por seu lado, que “os cidadãos devem abster-se” de estar na rua nesse período.

Ao Observador, o constitucionalista Paulo Otero esclarece que esta ‘nova formulação’ traduz-se numa “suavização, uma dulcificação da limitação”, que pode ser interpretada como um “apelo” aos portugueses. Por isso, defende que, ao contrário de um eventual recolhimento obrigatório, a medida só por si não viola a Constituição: a formulação usada tira “a natureza injuntiva”, de proibição.

O que viola a Constituição, afirma, “é o incumprimento do dever se abstenção ser sancionado pelo crime de desobediência, estendido por resolução do Conselho de Ministros [a estas situações] e não por lei”, diz, garantindo, ainda assim, que este crime será difícil de aplicar, dada a forma como tudo está redigido.

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Para Paulo Otero, está a tentar-se, em situação de calamidade, manter proibições só possíveis em estado de emergência: “Suavizam-se os termos, mas os efeitos são idênticos, vivemos em síntese um estado de emergência material que se chama situação de calamidade”.

Explica ainda que o facto de se “ampliar a aplicação do crime de desobediência”, o que “não é conforme ao princípio da legalidade criminal”, não significa que as pessoas não devam obedecer. “Podem é depois, se forem acusadas de crime de desobediência, alegar que a criação do crime nestes casos viola a Constituição”, conclui.

“Não me espantaria que o STA arranje forma de dizer que não há dever jurídico”

Também Teresa Violante explicou ao Observador que de qualquer das formas, e apesar da suavização, continua a existir um dever: “Não sei se essa formulação não está feita para, existindo uma impugnação da questão, e indo para tribunal, este poder dizer que não há um dever jurídico, mas sim um apelo”.

“Mas, a partir do momento em que colocam exceções, toda a redação do preceito me parece feita como existindo um dever jurídico”, garante, defendendo que nem a suavização da escrita faz com que a medida deixe de, na sua opinião, de violar a Constituição.

“Mas não me espantaria que o Supremo Tribunal Administrativo arranje forma de dizer que isso não é um dever jurídico”, mas sim, por exemplo, uma “recomendação agravada”, acrescentou.

Depois de várias notícias sobre o texto da resolução, o secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, Tiago Antunes, defendeu, em declarações ao Público, que “dever e obrigação, em linguagem jurídica, são sinónimos”.

Diversos constitucionalistas têm colocado em dúvida o alcance do poder legal do Estado para impor um recolher obrigatório no país sem estado de emergência em vigor e sem que a medida seja aprovada na Assembleia da República — alguns têm aliás defendido que este recolher obrigatório decidido pelo Governo, aplicado como obrigatoriedade e com resposta punitiva de autoridades e forças de segurança, seria mesmo inconstitucional.

Desde o primeiro momento que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, defendeu a constitucionalidade da medida: “É a utilização de uma lei que já existe e, portanto, perfeitamente legal e constitucional, e que é justificada para se intervir seletivamente nas situações mais graves ou muito graves. A solução diferente que é encontrada agora não é uma solução nem de estado de emergência nem de confinamento total em todo o território, mas intervenções que são seletivas em função da situação dos municípios”, argumentou o PR, durante uma visita a Castelo de Vide, Portalegre.

“Com mais ou menos eufemismos, é recolher obrigatório”, diz Ordem dos Advogados

O bastonário da Ordem dos Advogados (OA), Luís Menezes Leitão, concorda com os constitucionalistas que questionam a legalidade da medida, mas considera-a na prática um recolher obrigatório e discorda de Marcelo Rebelo de Sousa: “Parece-me claro que não se pode decretar o recolher obrigatório sem estarmos em estado de emergência”, apontou, em declarações à Rádio Observador.

Se for uma simples recomendação, é um dever cívico e não há consequência nenhuma para o cidadão. Se for uma efetiva obrigação, aí poderá haver sancionamento. Isto gera uma situação de insegurança jurídica. Mas também não me parece viável utilizar um eufemismo para na prática criar um recolher obrigatório dizendo que se está a fazer uma recomendação”, acrescentou.

O bastonário fez ainda uma leitura jurídica da formulação apresentada na Resolução do Conselho de Ministros: “O que está escrito é ‘deve’ — é um dever. Sendo um dever jurídico, tem de se cumprir. É assim que o entendo. Quando vejo uma referência a um ‘dever’ entendo que existe um dever jurídico. Com mais ou menos eufemismos, o que me parece que resulta do diploma é um recolher obrigatório”. Porém, reiterou: “Não é possível estabelecer o dever de as pessoas não saírem de casa à noite, parece-me claramente inconstitucional. Teria de ser por lei da AR e mesmo assim também não me parece viável sem o estado de emergência”.

Bastonário dos Advogados. “Com mais ou menos eufemismos, isto é um recolher obrigatório”

Uma medida destas, “por resolução de um Conselho de Ministros” do Governo, é “inviável”, entende Luís Menezes Leitão. O bastonário da OA lembra ainda que “o único precedente que tínhamos de recolher obrigatório antes desta pandemia tinha sido antes da vigência desta Constituição, em 1975, na altura de 25 de novembro. E na altura foi decretado o estado de sítio para poder haver recolher obrigatório. Ainda nem tínhamos a Constituição de 76, mas as autoridades estado de sítio, que ainda é superior ao estado de emergência”.