Os governos de Espanha e de Portugal negam a existência de qualquer carta enviada pelo Executivo espanhol no sentido de pressionar as autoridades portuguesas a não avançarem com a criação de uma ligação marítima entre Tânger, em Marrocos, e Portimão, que serviria como alternativa aos portos espanhóis. Quanto às negociações entre Lisboa e Rabat, permanecem estar num impasse, numa altura em que a presidente da Câmara Municipal de Portimão, Isilda Gomes, garante que as conversações com o Governo estão paradas há cerca de três semanas e reitera que o município não está interessado numa ligação sem “mais valia económica”.

Nas últimas semanas, tanto o governo português como o marroquino já tinham confirmado o interesse na ligação marítima inédita entre os dois países, indicando que as negociações, sob a alçada da Administração dos Portos de Sines e do Algarve (APS), estão em curso. No entanto, devido à tensão diplomática existente entre Marrocos e Espanha, o tema tem sido tratado de forma delicada, uma vez que o porto de Portimão poderá vir a ser a alternativa aos portos espanhóis excluídos por Rabat da “Operação Passagem do Estreito”, quando milhões de marroquinos que vivem na Europa regressam a Marrocos para passarem férias. Para Espanha, a exclusão dos portos espanhóis pode representar perdas de centenas de milhões de euros.

A ligação polémica Tânger-Portimão: a pressa marroquina, a discrição de Portugal e o conflito diplomático entre Espanha e Marrocos

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O desconforto que a ligação Tânger-Portimão estará a gerar em Madrid tem sido apontado como um dos motivos que poderá estar a atrasar a conclusão do projeto, tendo o jornal espanhol El Confidencial, citando a televisão israelita INews24, referido que o governo espanhol escreveu uma carta ao Executivo português a manifestar preocupação com a criação da nova rota marítima, que iria “afetar os interesses espanhóis”, algo que seria encarado como uma forma de pressionar Portugal a não avançar nas negociações em curso com Marrocos.

Contudo, tanto os ministérios dos Negócios Estrangeiros português como o espanhol negam em declarações ao Obsrvador a existência da referida carta e garantem que não houve qualquer impacto nas relações entre Portugal e Espanha.

“O ministério dos Negócios Estrangeiros não foi alvo de quaisquer diligências por parte das autoridades espanholas a propósito do assunto em apreço. Portugal mantém com todos os países vizinhos, mormente Espanha, sólidas e duradouras relações bilaterais, pautadas pela proximidade e diálogo, não se registando qualquer dificuldade no plano político-diplomático (em função de relações bilaterais com países terceiros)”, afirmou o ministério tutelado por Augusto Santos Silva ao Observador.

No mesmo sentido, questionado pelo Observador, fonte do ministério dos Negócios Estrangeiros de Espanha garantiu que “não existe carta alguma” e que “não foi feito qualquer contacto com Portugal” para travar esta ligação, com o executivo espanhol a garantir que “as relações entre Espanha e Portugal continuam boas como sempre, como convém a dois países vizinhos e parceiros”.

O Observador questionou ainda o ministério dos Equipamentos e dos Transportes de Marrocos e a Embaixada marroquina em Portugal sobre se um eventual desconforto de Madrid estaria a atrasar as negociações, mas não obteve resposta. Já o ministério das Infraestruturas e da Habitação português, responsável pelo dossier, voltou a remeter para justificações para a Associação dos Portos de Sines, que já tinha dito que “estão a ser avaliadas as condições operacionais do Porto de Portimão, em conjunto com armadores e diversas autoridades, para dar início a uma ligação por ferry entre Portimão e Tânger”. A APS acrescenta ainda que “neste momento, ainda não é possível confirmar se a ligação será estabelecida”.

As más relações entre Espanha e Marrocos

A questão sobre o desconforto que as negociações em curso poderiam estar a gerar em Madrid já tinham sido colocadas na semana passada ao ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, que numa entrevista à agência Efe disse que o Executivo português está em contacto com Espanha sobre “questões de interesse recíproco e não há razões para que as excelentes relações que temos possam ter impactos negativos. Na mesma entrevista, Siza Vieira sublinhou que “há interesse do Governo de Marrocos e há interesse nosso” na criação da rota entre Tânger e Portimão.

A exclusão dos portos espanhóis da “Operação Passagem do Estreito” está a ser encarada como uma retaliação por parte de Rabat, depois de Espanha ter recebido o líder da Frente Polisário, Brahim Ghali, num dos seus hospitais, após este ter contraído Covid-19 e chegado a território espanhol, supostamente com um passaporte falso.

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A Frente Polisário, representante do povo sarauí, disputa a soberania do Saara Ocidental com Marrocos, e o facto de Ghali ter sido tratado em Espanha levou as autoridades marroquinas, em maio, a deixarem de patrulhar as fronteiras terrestres com o país vizinho, o que permitiu que mais de oito mil pessoas (incluindo mais de 1500 crianças e adolescentes) entrassem em Ceuta, gerando um momento de enorme tensão, que levou a duras trocas de acusações entre Rabat e Madrid, com a União Europeia a sair em defesa de Espanha, acusando Marrocos de usar migrantes como forma de chantagem.

Desde então, a tensão entre Espanha e Marrocos ainda não baixou, e a decisão do governo marroquino retirar os portos espanhóis da “Operação Passagem do Estreito” veio atirar ainda mais achas para a fogueira. O Ciudadanos, de resto, segundo a Europa Press, acusa Marrocos de estar a “castigar Espanha” e pediu à União Europeia para investigar a decisão das autoridades marroquinas.

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De acordo com o eurodeputado Jordi Cañas, o impacto económico para Espanha será de cerca de 500 milhões de euros, sendo que Marrocos terá destinado 400 milhões de euros em subvenções para ajudar os marroquinos a viverem na Europa a irem de férias para o país natal, de avião e de barco, através dos portos permitidos, como os de França e Itália, sendo ainda incerto se Portugal vai ou não ter ligação de ferry com Marrocos.

Isilda Gomes diz que não fala com o Governo há três semanas e que o “assunto está encerrado”

Enquanto Espanha e Marrocos estão envolvidos neste conflito diplomático e Portugal mantém o silêncio sobre a futura ligação marítima entre Tânger e Portimão, na cidade algarvia já há marroquinos a se deslocarem ao Porto de Portimão na esperança de viajarem até ao seu país.

A ligação marítima entre Tânger e Portimão chegou a ser dada como certa pelo ministro dos Equipamentos e dos Transportes marroquino, Abdelkader Amara, que anunciou que a rota estaria operacional a 1 de julho, avançando, inclusive, que a mesma teria um custo de 450 euros para o transporte de quatro pessoas e uma viatura.

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No dia anunciado pelo governo marroquino, confirmou Isilda Gomes, presidente da Câmara de Portimão ao Observador, “duas ou três famílias” foram até ao Porto de Portimão, tendo sido informadas que o ferry não estava disponível. No site da Inter Shiping, a empresa marroquina que deverá garantir a ligação entre Portugal e Marrocos, chegou a estar disponível a opção Portimão-Tânger (e vice-versa), embora não houvesse horários nem fosse possível comprar viagens.

Quanto ao estado das negociações, Isilda Gomes assegurou ao Observador que não é o aumento de casos de Covid-19 e a propagação da variante Delta no Algarve que estão a atrasar o processo — uma hipótese que também tem sido avançada na imprensa marroquina —, e reiterou que as negociações estão suspensas e que há três semanas que não tem “nenhuma novidade por parte do Governo português”.

“Não estou nas negociações, não sei o que se está a passar. Não me foi passada mais nenhuma informação”, garante a autarca de Portimão, que em junho chegou a ver com bons olhos a possibilidade de receber turistas marroquinos, mas que mudou de ideias quando lhe foi comunicado que o objetivo principal da ligação Tânger-Portimão seria o regresso a Marrocos de imigrantes marroquinos a viver na Europa.

“O que se pretendia era que houvesse um fator de mais valia económica para o município [de Portimão] e para o Algarve. Não havendo retorno económico, obviamente que não serve”, reiterou Isilda Gomes, rematando: “Para mim, esse assunto está encerrado. Portanto, não estou a acompanhar, não estou interessada.”