Mais de um ano e meio depois do primeiro caso de infeção com SARS-CoV-2, a pergunta mantém-se: qual a origem deste vírus? Uma equipa internacional de 21 cientistas conclui, no entanto, que “não existe, atualmente, evidência de que o SARS-CoV-2 tenha tido origem num laboratório”.

A equipa liderada pelo virologista Edward Holmes, da Universidade de Sydney, não “descarta completamente a hipótese de um acidente no laboratório” — sobretudo porque será difícil provar, sem sombra dúvidas, que a hipótese não é válida —, mas reforça que os dados existentes (atuais e históricos) apontam para o contacto entre os humanos e os animais selvagens (potenciais portadores do vírus) como a hipótese mais provável.

Os cientistas alertam ainda que, se não for possível conduzir uma investigação colaborativa e cuidadosamente coordenada sobre a origem zoonótica do vírus (nos animais), “o mundo ficará vulnerável a futuras pandemias decorrentes das mesmas atividades humanas que nos colocaram repetidamente em rota de colisão com novos vírus”.

A equipa, que junta alguns dos melhores investigadores em epidemiologia viral, analisou a informação científica disponível para chegar às presentes conclusões. O artigo foi submetido a uma revista científica, mas já está disponível numa plataforma de pré-publicação de artigos antes da revisão por investigadores independentes.

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O virologista Stuart Turville, do Instituto Kirby (Sydney), que não esteve envolvido no estudo, defendeu a qualidade do trabalho e lembrou a experiência que os autores têm nesta área. O professor da Universidade de Nova Gales do Sul destaca o trabalho de detetive que é preciso fazer para se chegar às origens e lembra que “a história é o melhor local para começar”.

Eles não excluem que tenha havido uma fuga do laboratório, antes mostram que as provas existentes não apoiam esta teoria”, disse num comentário ao artigo.

As semelhanças com casos de origem zoonótica

Todos os coronavírus que infetaram humanos anteriormente tiveram origem em animais, tal como a larga maioria dos vírus que infetam humanos, lembram os autores.

O aparecimento do SARS-CoV-2, aparentemente ligado ao mercado de animais vivos de Wuhan, tem claras semelhanças como os casos de SARS-CoV de 2002 e 2003. Nestes casos, a origem foi determinada com sendo este tipo de mercados que vendem civetas e guaxinins (como o de Wuhan), que se sabe poderem ser infetados com SARS-CoV-2.

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Há vários casos de infeção ligados ao mercado de Wuhan

Dois dos três primeiros casos de infeção tinham uma ligação direta ao mercado Huanan de animais vivos, assim como 28% dos casos reportados durante dezembro de 2019, referem os investigadores. No total, 55% dos casos desse mês, sobretudo na primeira quinzena, estavam ligados a mercados de animais vivos na cidade.

Adicionalmente, a presença de SARS-CoV-2 foi detetada em amostras colhidas no mercado Huanan, incluindo na parte onde era comercializados animais selvagens e nos esgotos.

Os investigadores reforçam que os surtos iniciais estavam bem localizados e identificados e que nenhum deles se localizava nas proximidades do Instituto de Virologia de Wuhan, o laboratório apontado por alguns como a origem (acidental ou deliberada) do vírus.

Os serviços secretos norte-americanos identificaram, pelo menos, três funcionários do instituto que deram entrada no hospital, no outono de 2019, com “sintomas consistentes com a Covid-19 e com a gripe sazonal”, mas não se sabe que a infeção tinha sido provocada pelo coronavírus em causa. A equipa de Edward Holmes acrescenta que não foram identificados anticorpos contra o SARS-CoV-2 nos cientistas (que determinaria uma exposição anterior ao vírus).

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Houve mais do que um animal envolvido na origem da epidemia

Logo no início da pandemia havia duas linhagens do SARS-CoV-2, sendo que uma delas acabou por se tornar dominante. Mas o facto de inicialmente terem circulado em paralelo, reforça a possibilidade de a disseminação do vírus em humanos ter tido origem em mais do que um contacto entre humanos e animais ou entre os vendedores dos animais e outras pessoas.

O transporte de animais entre os mercados de Wuhan ou a existência de um mesmo fornecedor pode explicar os focos de infeção em locais diferentes — um facto também verificado com o SARS-CoV em 2002 e 2003.

Não foi encontrado nenhum vírus semelhante no laboratório

Os pangolins e os morcegos foram apontados como a origem mais provável do vírus que viria a infetar os humanos, mas existe uma distância de décadas de evolução entre esses vírus conhecidos e o SARS-CoV-2 que ainda não foi explicada. Existem vários vírus de morcegos que terão um ancestral comum com o SARS-CoV-2, “mas nenhum destes vírus mais próximos [evolutivamente] foi encontrado no Instituto de Virologia de Wuhan”, escrevem os autores.

Isto demonstra, sem sombra de dúvidas, que o [vírus de morcego] RaTG13 não esteve na origem do SARS-CoV-2 com ou sem manipulação de laboratório ou mutações experimentais.”

Os acidentes acontecem, mas…

Os investigadores admitem que já houve contaminações acidentais em laboratório, que provocaram casos individuais de infeção ou pequenas cadeias de transmissão, mas não há nenhuma indicação de uma epidemia ou pandemia que tenha resultado do trabalho de investigação num laboratório.

“Nenhuma epidemia anterior foi causada pela fuga de um novo vírus e não há dados que sugiram que o Instituto de Virologia de Wuhan — ou qualquer outro laboratório — estivesse a trabalhar com SARS-CoV-2, ou qualquer vírus próximo o suficiente para ser o progenitor, antes de a pandemia de Covid-19”, reforçam.

Mesmo o trabalho de sequenciação genética do vírus (leitura dos genes) — como se faz atualmente para identificar a variante que causou a infeção —, que implica um trabalho direto com o material genético, “representa um risco insignificante”, porque o vírus é inativado antes do processo.

A equipa de Edward Holmes reforça que não encontrou qualquer evidência de que o laboratório de Wuhan estivesse a fazer experiências de modificação de um vírus para se tornar, por exemplo, mais infeccioso e que o SARS-CoV-2 não tem qualquer marcador genético que indique que tenha sido manipulado em laboratório.

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O vírus não estava assim tão bem adaptado

Se o vírus tivesse sido criado em laboratório para estar mais bem adaptado à infeção e transmissão entre humanos, não teríamos assistido ao surgimento de variantes com mutações que aumentam a transmissibilidade do vírus e a afinidade com as células humanas, defendem os investigadores.

Mais, se tivesse sido criado em laboratório para infetar especificamente humanos, dificilmente seria tão generalista, capaz de infetar e transmitir-se entre gatos, gorilas, cães e guaxins ou até de andar a saltar de humanos para visons e vice-versa como se verificou durante a pandemia.

Atualizado: três investigadores do Instituto de Virologia de Wuhan estiveram doentes no outono de 2019.