Enquanto a origem do SARS-CoV-2 não estiver completa e inequivocamente confirmada, a hipótese de que foi criado em laboratório vai continuar a assombrar a história da pandemia de Covid-19. O problema é que pode nunca vir a existir uma resposta conclusiva. Até lá, as opiniões dos cientistas dividem-se e os líderes políticos exigem saber se o coronavírus teve ou não uma origem natural.

Marc Veldhoen, imunologista no Instituto de Medicina Molecular (IMM), admite que existem argumentos que apoiam uma e outra teoria — natural versus criado em laboratório —, mas continua a achar que a origem terá sido natural. Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas nos Estados Unidos, por sua vez, disse que não estava convencido que a origem tenha sido natural.

Uma vez que não vejo qual a razão para que um vírus deste tipo tenha sido fabricado, concluo que provavelmente não foi criado pelo homem — o que não exclui que se tenha escapado do laboratório”, diz Marc Veldhoen ao Observador.

Porque é que é tão importante conhecer a origem do vírus?

Pelo lado científico, todas as respostas reunidas durante esta pandemia podem ser úteis agora ou nos anos vindouros. “Saber a origem do SARS-CoV-2 é essencial para entender onde e como este vírus surgiu e o que precisamos fazer para prevenir futuras pandemias“, disse Lawrence Young, virologista na Universidade de Warwick (Reino Unido), citado pelo Science Media Centre (SMC).

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“É importante saber de onde veio, porque se houver um hospedeiro animal, podemos ficar de olho nele, ver como evolui, entender como o vírus pode ter saltado para os humanos, ver se existem vírus semelhantes e ficar atentos“, reforça Marc Veldhoen ao Observador.

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Foi esta necessidade de se obter respostas que motivou a carta de 18 especialistas na revista Science, onde deixavam críticas às conclusões apresentadas pela Organização Mundial de Saúde depois de ter voltado da China. “Não se encontrou informação que apoiasse claramente que era um processo natural ou um acidente de laboratório”, escreveram os investigadores, defendendo que as duas hipóteses sejam levadas em consideração “até existirem dados suficientes”.

Se foi criado pelo homem, bem, isso seria muito constrangedor e, diria, diabólico”, afirma Marc Veldhoen.

Pelo lado político, são claras as tensões entres os Estados Unidos e a China desde o início da pandemia, alimentadas pelas trocas de acusações, entre os líderes dos dois países — na altura com Donald Trump no poder —, sobre qual deles terá criado o vírus em laboratório.

Agora, os Estados Unidos e a União Europeia, mas também a Austrália, o Canadá e o Japão, estão a pressionar a Organização Mundial da Saúde (OMS) para que continue a procurar a origem do SARS-CoV-2. A OMS prepara uma segunda fase de investigação, mas está completamente dependente da cooperação e transparência do governo e autoridades chinesas.

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O Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, não vai ficar sentado à espera e pediu um novo relatório aos serviços secretos, um reforço do que já tinha sido feito, para se obterem respostas sobre como o vírus terá aparecido e como infetou as pessoas.

Porque é que se considera que surgiu na natureza?

Para alguns cientistas, a hipótese de que este coronavírus nasceu num laboratório é praticamente impossível. “É mais provável que o ancestral mais próximo do SARS-CoV-2 esteja na natureza e que ainda não tenha sido encontrado”, disse Jonathan Stoye ao SMC.

Sabendo que o genoma do SARS-CoV-2 tem mais de 1.000 diferenças em relação ao vírus mais próximo conhecido (RaTG13) e conhecendo o ritmo a que ocorreram modificações no vírus desde que infetou a população humana, “parece extremamente improvável, talvez impossível, que mudanças que percorrem uma tal distância evolutiva possam ter ocorrido num laboratório”, disse o especialista em retrovírus no Instituto Francis Crick (Reino Unido).

Lawrence Young confirmou que os genes do SARS-CoV-2 são 96% semelhantes ao de um coronavírus encontrado nos morcegos-ferradura, o que apoia a hipótese de que tenha, acidentalmente saltado para os humanos.

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Marc Veldhoen acrescenta ainda que a sequência genética do SARS-CoV-2 — que serviu de base às primeiras vacinas — “não mostra nenhuma parte que tenha sido fabricada pelo homem ou que não pudesse ter surgido na natureza — todas essas partes são encontradas em coronavírus”.

O imunologista diz ainda que todos os coronavírus estudados no Instituto de Virologia de Wuhan (China) — pelo menos, os que foram divulgados — não têm capacidade para infetar células humanas. E que o vírus, assim que se viu no meio da população humana, se adaptou para melhor infetar esta espécie. “Isto sugere, mas não prova, que o vírus é natural.”

O que apoia a hipótese de que o vírus foi criado em laboratório?

A primeira razão, que deixa líderes políticos e cientistas de sobrancelha levantada, é o facto de as autoridades chinesas não cooperarem totalmente com os outros países e com a investigação, alimentando a ideia de que estão a esconder alguma coisa.

O Instituto de Virologia de Wuhan é um dos laboratórios na mira das suspeitas já que trabalhava com coronavírus antes da pandemia e levanta-se a hipótese de que os investigadores estivessem a fazer crescer um coronavírus em laboratório, em células humanas, que inadvertidamente tivesse originado um vírus com melhor capacidade para infetar células humanas.

Estes dois pontos — o secretismo e os estudos prévios com coronavírus — leva Marc Veldhoen a admitir que as sequências de vírus divulgadas pelo instituto, todas elas incapazes de infetar células humanas, podem não contar a história completa. Da mesma forma, o “aspeto natural” do SARS-CoV-2 não invalida que tenha sido criado em laboratório com “métodos muito sofisticados”.

Mas o que mais intriga o imunologista é ainda não se ter encontrado o hospedeiro animal, ou seja, o último animal infetado pelo coronavírus antes de este ter saltado para os humanos. No caso do SARS foram precisos cerca de quatro meses até ser encontrado nas civetas e cerca de 10 meses para se chegar aos camelos, no caso do MERS, conta o investigador. “Mas [este trabalho de investigação] foi feito em países muito mais cooperantes”, afirma Veldhoen.

Isto significa, provavelmente, que [não vamos saber a origem] até o animal hospedeiro ser encontrado ou até mais dados serem encontrados no instituto Wuhan”, afirma o investigador do IMM.

A informação mais recente que parece apoiar a possibilidade de se ter tratado, no mínimo, de um erro no laboratório chinês foi divulgada pelo The Wall Street Journal. O jornal teve acesso ao relatório dos serviços de segurança norte-americanos que revelam que três investigadores do Instituto de Virologia de Wuhan deram entrada no hospital, em novembro de 2019, com sintomas compatíveis com a Covid-19.

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Sem se saber exatamente qual a doença dos investigadores, cujos sintomas também podem ser atribuídos à gripe sazonal, permanece a dúvida. A China continua a afirmar que o primeiro caso de Covid-19 foi registado no país a 8 de dezembro, mas a investigação à taxa de mutação do vírus diz que o SARS-CoV-2 já estaria em circulação entre a população chinesa algumas semanas antes desse primeiro caso.