Liliana e Fernanda sofrem de borderline, uma perturbação da personalidade que as leva a travar uma luta diária para conseguir controlar os impulsos de raiva, de ansiedade, que se traduzem em comportamentos autolesivos e suicidas, para aliviar o sofrimento.

Os problemas manifestaram-se quando ainda eram muito jovens, depois de infâncias sofridas, mas o diagnóstico foi feito já em adultas como contaram à agência Lusa Liliana Camacho, 39 anos, e Fernanda Vieira, 43 anos. “O diagnóstico foi feito devia ter 35 anos, mas já tenho problemas evidentes desde os 17”, disse Liliana Camacho, contando que os problemas começaram depois de ter sido abusada sexualmente em criança, um trauma que não conseguiu ultrapassar.

“Era uma criança normal e deixei de o ser (…) e enquanto não conseguir resolver esta situação, que não tenho como resolver, nunca estarei de bem comigo própria”, desabafou. Liliana disse que quando lhe foi diagnosticada a perturbação de personalidade ‘boderline’ no hospital onde esteve internada, depois de ter tentado saltar da Ponte 25 de Abril, foi o seu “salvamento” porque compreendeu o que tinha.

“As pessoas não sabem o que é viver com borderline. As emoções, a dor que você sente a 10% eu sinto a 1.000%”, elucidou. Apesar do sofrimento que causa, é uma doença “incompreendida” pelos outros: “As pessoas achavam apenas que eu tinha mau feitio, era arrogante, antissocial. Normalmente é assim que nos veem”.

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Foi numa fase complicada da sua vida em que sentiu “um vazio, uma tristeza descomunal” que começou a ter comportamentos autolesivos. “A minha vida transformou-se num inferno ao ponto deter tentado suicidar-me várias vezes”, lamentou. Ao fim de alguns anos sozinha, Liliana está agora numa relação estável, mas confessa que está novamente numa fase difícil.

Aguarda ser chamada pelo hospital para ser acompanhada no hospital de dia, uma vez que recusa ser internada. “É uma vida muito dura e horrível”. “Gostava de ter um grupo de autoajuda ou uma casa com o apoio do Estado para ajudar pessoas como eu. Era uma coisa que me faria muito feliz e se calhar tirava-me do buraco”, revelou.

Os problemas de Fernanda Vieira também vêm de uma infância infeliz. “Não tive uma família bem estruturada, via o meu pai a bater muito na minha mãe e isso perturbava-me bastante, a forma como ela sofria, e o facto dela não ser uma pessoa que demonstrasse afeto por nós”. Quando a mãe morreu, a perturbação que sentia, e que “não sabia o que era”, agravou-se, com “muitas vontades” de se mutilar, de desaparecer.

Sentia um vazio enorme dentro de mim. Às vezes parecia que não tinha qualquer tipo de sentimentos por nada, por ninguém, que eu não era deste mundo, não estava aqui a fazer nada”, descreveu.
Tudo isto foi vivido em silêncio porque achava que se contasse iriam criticá-la. A situação piorou quando foi viver com o pai, foi maltratada e sentiu-se “abandonada”, acabando por fugir de casa aos 18 anos. Sempre procurou “pessoas tóxicas” nas relações, o que veio agravar a situação: “Queimava-me com cigarros, cortava os braços, as pernas, e não me doía. Sentia-me aliviada a ver o sangue”.

“Tive imensas tentativas de suicídio e chegava ao ponto de pensar: é hoje que vou conseguir e ia com uma alegria como se calhar alguém que se fosse casar ou receber um presente”, relatou. Procurou ajuda junto de vários psiquiatras que lhe diagnosticaram “tudo e mais alguma coisa”. “Tinha esquizofrenia, bipolaridade, epilepsia, tudo. Cheguei a tomar 18 comprimidos por dia e estar internada”.

Um dia decidiu parar com toda a medicação, o que disse ter sido “muito, muito difícil, muito duro”, mas hoje orgulha-se de não se cortar há nove anos, apesar de ter vontade de o fazer.

Tentei arranjar estratégias para conseguir ultrapassar as minhas vontades, as minhas raivas, as minhas angústias e houve um dia que fui ter com um dos psiquiatras, que ficou espantado a olhar para mim e disse que não acreditava na minha recuperação”, recordou.
Ao aviso dos médicos que “a recaída está ao virar da esquina”, Fernanda diz que está cá para enfrentá-la e sem medicação. “É uma luta diária, mas encontrei neste momento um trabalho que me ajuda bastante, cuidar de pessoas”, disse Fernanda Vieira, profissional de saúde num hospital onde acompanha doentes com covid-19.

“A Covid-19 foi mau, obviamente, mas deu-me a melhor coisa que me podia ter dado: poder cuidar de pessoas como eu gostava de ter sido cuidada”, disse, rematando: “quando os doentes me dizem ‘Fernanda ajudas-me tanto’, eu penso nem tu sabes o que me ajudas a mim”.

Borderline é incompreendida, mal diagnosticada e maltratada

Foi para dar voz a pessoas que se encontram “perdidas numa terra de ninguém” e alertar para a doença que as afeta, a borderline, que João Carlos Melo escreveu o livro “Reféns das próprias emoções – Um retrato íntimo das pessoas com personalidade borderline”.

Uma em cada 10 pessoas que sofre desta perturbação da personalidade suicida-se ainda jovem, uma doença que constitui um grave problema de saúde pública, mas que é incompreendida, mal diagnosticada e maltratada, alerta o psiquiatra João Carlos Melo.

“Notei que fazia falta um livro com estas características, nomeadamente em Portugal, dedicado sobretudo ao grande público, embora todas as pessoas da área da saúde mental certamente que ficarão mais bem informadas”, diz o psiquiatra em entrevista à agência Lusa. Desde a publicação do livro em maio que João Carlos Melo tem recebido “muitas reações extraordinariamente positivas” de reconhecimento e de agradecimento.

Muitas pessoas que eu não conheço têm mostrado que o livro tem ajudado a divulgar este problema e sentem-se reconhecidas, sentem-se retratadas e sentem que é um bom serviço que é prestado dando a conhecer este problema”, revela o psiquiatra, que pretende também com o livro ajudar doentes e familiares.

No livro, o psiquiatra pergunta o que é que Marilyn Monroe, Janis Joplin e Amy Winehouse tinham em comum. “A fama? Sem dúvida que sim. O talento e o brilho? Também”, mas havia “um outro lado”.

“Eram excessivas, intensas. Viviam sempre no limite. As relações que estabeleciam eram dramáticas e tumultuosas. Tinham atitudes autodestrutivas. Agrediam-se a si próprias de formas variadas” e “eram demasiado jovens quando morreram” e eram doentes borderline, escreve o diretor do Hospital de Dia de Psiquiatria do Hospital Fernando Fonseca (Amadora-Sintra).

À Lusa, João Carlos Melo explica que a maior parte das pessoas não precisa de fazer um grande esforço para regular as suas emoções, podendo ficar indignadas, zangadas, magoadas com muitas situações, mas estas pessoas “ficam muito mais” porque são “hipersensíveis”.

“Não conseguem controlar as emoções por várias razões que têm a ver com o temperamento, com o funcionamento biológico, com as histórias de vida e a própria impulsividade”, explica. Segundo João Carlos Melo, são doentes que “sofrem e fazem sofrer os outros” e são “incompreendidos” como é a doença. “Mesmo dentro da psiquiatria, esta doença é mal compreendida, mal diagnosticada e maltratada. Como o têm sido as pessoas que dela sofre”, afirma.

Estimativas apontam que esta doença atinja mais de 2% da população, o dobro da doença bipolar, da esquizofrenia e da doença de Alzheimer, mas podem ser mais, porque muitas vezes o diagnóstico tende a ser feito para outra patologia, como a depressão ou bipolaridade, ansiedade. Também há doentes que só procuram ajuda em situações de crise nas urgências dos hospitais, acabando por desaparecer e não ficar nas estatísticas.

A ideia da morte está quase sempre presente nestes doentes e 10% morrem de suicídio, o que “é muito”, e cerca de 75% fazem tentativas de suicídio: “Isto pode ser entendido e pode ser sentido como uma manipulação, mas na verdade a pessoa está a ter um comportamento desesperado de sobrevivência”.

Já os comportamentos autolesivos tem outro significado que é provocar uma dor física para aliviar a dor psicológica que os doentes descrevem como sendo “dolorosa” e “insuportável”. Estudos epidemiológicos mostram que mesmo sem tratamentos específicos os doentes vão melhorando com o avançar da idade “nestes comportamentos mais exuberantes, de impulsividade, agressividade”. Mas há outros aspetos que são mais difíceis de melhorar como o vazio interior, a baixa autoestima, a dificuldades nas relações com as pessoas e angústias de separação e abandono.

Psiquiatra defende tratamentos para todos os doentes borderline

João Carlos Melo defende ainda que a psiquiatria “tem o dever” de arranjar formas de tratar todas os doentes com perturbação de personalidade borderline porque há tratamento para a doença e as pessoas podem melhorar. “É possível ajudar estas pessoas numa dimensão muito maior, muito mais numerosa do que tem sido até agora”, afirma.

O médico diz que é importante transmitir uma “palavra de esperança” a estes doentes de que podem melhorar e, por isso, “é importante que haja tratamento para todas estas pessoas”. Para o psiquiatra, é “inaceitável” que exista “uma doença tão mal conhecida, tão mal diagnosticada e tão maltratada”.

“Um dos maiores desafios que a psiquiatria terá de abraçar é o de encarar de frente e com coragem o grande problema que constitui a perturbação borderline”, afirma no livro o diretor do Hospital de Dia de Psiquiatria do Hospital Fernando Fonseca (Amadora-Sintra).

Tal passa por identificar melhor a doença e as pessoas afetadas por ela. “Fazendo estimativas por baixo, podemos admitir que existam em Portugal 200 mil pessoas com a doença. E se considerarmos que ela acaba por afetar todas aquelas com quem a pessoa se relaciona em privado, podemos aceitar que, direta e indiretamente, são afetados quase um milhão de portugueses. É muito”.

Por outro lado, apontou João Carlos Melo, não há muitos profissionais a dedicarem-se a estes doentes, o que faz com que sejam poucos os que têm acesso a tratamentos tanto nos hospitais privados como públicos. Até agora, os tratamentos disponíveis têm-se restringido aos poucos doentes que têm tido “a sorte” de poder ter acesso aos escassos programas terapêuticos que existem. Mas há um problema que se prende com o facto de haver poucos psiquiatras com formação específica nesta área.

Para ultrapassar esta situação, João Carlos Melo defende a criação de programas específicos que pudessem ser postos em prática “por técnicos que, embora competentes e dedicados, não tivessem de ter uma formação diferenciada, dispendiosa e pouco acessível”.

O comportamento e o quadro clínico é muito variável de pessoa para pessoa e há muitas pessoas que foram diagnosticadas com outras doenças como depressão, doença bipolar, déficit de atenção com hiperatividade, toxicodependência, alcoolismo etc”, diz.

Também são diagnosticadas com crises de pânico, de ansiedade, ansiedade social, ansiedade generalizada e o diagnóstico médico fica por aí, lamenta. Há também muitos doentes que são diagnosticadas pela opinião pública como tendo “mau feitio” e há outras situações que estão nas classificações oficiais e que se designam por ‘quiet borderline’.

“São pessoas que não exteriorizam o sofrimento, mas sofrem muito em silêncio e há pessoas que têm comportamentos autolesivos, crises de grande desespero e de grande raiva, mas viram isso tudo para dentro, de tal modo, que as pessoas próximas nem se apercebem disso”, descreveu.

João Carlos Melo salienta a importância de ter “uma atitude de compreensão” para com estas pessoas. “Isto já é um ponto muito importante porque aquilo provoca muitas vezes reações, mais negativas, é as pessoas se sentirem incompreendidas”, rematou. Como há poucos psiquiatras com formação psicoterapêutica limitam-se muitas vezes a prescrever medicamentos, uma situação que pode ser sentida pelo doente como uma rejeição.

“Este médico não me quer ouvir, o que quer é despachar-me com medicamentos e isto aumenta a irritação da pessoa e, portanto, há todas estas razões que levam a que haja ideias preconceituosas, mal-entendidos e estigma dos próprios técnicos de saúde mental em relação a estas pessoas”, salientou o médico.