O antigo diretor de Estudos e Projetos do Serviço de Informação e Segurança do Estado (SISE) de Moçambique disse esta terça-feira que recebeu 980 mil dólares do dinheiro das “dívidas ocultas”, mas afirmou que desconhecia a ilegalidade do pagamento.

Cipriano Mutota, um dos 19 arguidos do processo das dívidas ocultas, disse ter recebido o montante, durante o seu depoimento durante o julgamento do caso, confirmando alegações constantes da acusação do Ministério Público.

“Sim, confirmo, sim, que recebi 980 mil dólares (833 mil euros), em várias parcelas”, declarou Mutota, em resposta a perguntas do juiz da causa e do Ministério Público.

O arguido afirmou que desconhecia a ilicitude do pagamento, tendo deduzido que o dinheiro correspondia a um “agradecimento” pelo papel que teve na elaboração de um estudo do SISE sobre o sistema de proteção marítima de Moçambique.

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Na qualidade de então diretor de Estudos e Projetos do SISE, Cipriano Mutota teve papel ativo na elaboração da referida avaliação, entre 2007 e 2008, que serviu de base para a mobilização de mais de dois mil milhões de dólares para o financiamento de empresas de proteção marítima, com garantias do Estado consideradas ilegais pelo Ministério Público.

“Pensei que o dinheiro fosse pela minha contribuição no projeto. Recebi esse dinheiro depois de ter cessado funções e ter sido colocado a estagiar no Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação”, afirmou.

Cipriano Mutota também declarou ter recebido o referido montante de Jean Boustani, negociador da empresa de estaleiros navais Privinvest, com sede em Abu Dabi, e acusado de ser a pessoa que pagou os subornos alimentados pelo dinheiro das “dívidas ocultas”.

Com o dinheiro recebido, Mutota comprou sete camiões de carga, dos quais vendeu três pouco tempo depois, instrumentos agrícolas para uma herdade que possui na sua terra natal e várias despesas de consumo, acrescentou.

O arguido avançou que tomou conhecimento de pagamentos com o dinheiro das “dívidas ocultas” através de Ângela Leão, arguida e mulher do antigo diretor-geral do SISE Gregório Leão, também arguido no processo.

“Ela perguntou-se se eu já tinha recebido a minha parte e eu disse que não. Foi aí que contactei Teófilo Nhangumele [arguido e interlocutor da Privinvest] para que me fosse paga a minha parte”, acrescentou.

Nhangumele informou o antigo diretor de Estudos e Projetos do SISE que recebera dinheiro pela participação no esquema, tal como outros protagonistas no caso, tendo Cipriano Mutota contactado Jean Boustani para também ser pago, o que veio a acontecer, em várias parcelas.

“Nunca tive a expetativa de receber qualquer valor pelo meu trabalho no estudo sobre o projeto de proteção da costa moçambicana. Não é normal no SISE haver pagamentos dessa natureza”, declarou Mutota.

A audição de Cipriano Mutota, que trabalha para o SISE há 45 anos, durou pouco mais de dez horas e preencheu os trabalhos desta terça-feira, devendo continuar na quarta-feira. Além de Mutota, o tribunal vai ouvir na quinta-feira Teófilo Nhangumele, cuja audição tinha sido também marcada para esta terça-feira.

Nas alegações que leu na segunda-feira, o Ministério Público acusou os 19 arguidos das “dívidas ocultas” de se terem associado em “quadrilha” para delapidarem o estado moçambicano e deixar o país “numa situação económica difícil”.

“Quem se associa em quadrilha para roubar ao Estado não está ao serviço do Estado. Os arguidos agiram em comunhão, colocando os seus interesses particulares acima dos interesses do Estado”, referiu Ana Sheila, magistrada do Ministério Público que leu a acusação.

A conduta dos 19 arguidos, prosseguiu Ana Sheila, delapidou o Estado moçambicano em 2,7 mil milhões de dólares (2,3 mil milhões de euros) angariados junto de bancos internacionais através de garantias prestadas pelo Governo. “Todos prejudicaram o país e deixaram-no numa situação económica difícil”, enfatizou a magistrada do Ministério Público.

Para o Ministério Público moçambicano, entre os diversos crimes que os arguidos cometeram incluem-se associação para delinquir, tráfico de influência, corrupção passiva para ato ilícito, branqueamento de capitais, peculato, abuso de cargo ou função e falsificação de documentos.

Doze dos 19 arguidos estão em liberdade provisória, enquanto sete aguardam o julgamento em prisão preventiva.

As dívidas ocultas foram contraídas entre 2013 e 2014 junto das filiais britânicas dos bancos de investimentos Credit Suisse e VTB pelas empresas estatais moçambicanas Proindicus, Ematum e MAM. Os empréstimos foram secretamente avalizados pelo Governo da Frelimo, liderado por Armando Guebuza, sem o conhecimento do parlamento e do Tribunal Administrativo.

Além do processo principal, a justiça moçambicana abriu um processo autónomo em que várias outras pessoas são suspeitas de participação no esquema, incluindo o antigo ministro das Finanças Manuel Chang, antigos administradores do Banco de Moçambique, e antigos executivos do Credit Suisse, instituição bancária que viabilizou os empréstimos. Sobre o caso foram também abertos processos judiciais nos Estados Unidos da América e em Inglaterra.