Ao início da tarde, Marcelo Rebelo de Sousa comentava aos jornalistas os últimos acontecimentos no Afeganistão na abertura da Feira do Livro do Porto. Horas depois, com um anúncio surpresa em cima da hora, o Presidente da República surgia no aeroporto de Figo Maduro, em Lisboa, para receber os quatro militares portugueses e os primeiros 24 refugiados afegãos que chegaram na noite desta sexta-feira a Portugal.
“Foi uma missão plenamente sucedida”, congratulou-se Marcelo, perante os jornalistas, ao lado do ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, e dos quatro militares que fizeram com que Portugal saísse “de cabeça erguida daquilo que era o cumprimento de um princípio moral”, depois de uma operação de resgate em “condições dramáticas, quase impossíveis”. “Isto são as Forças Armadas portuguesas, isto é Portugal”, rejubilou o Presidente.
Momentos antes de um discurso pautado por muitos elogios, não só aos militares como também ao governo e aos afegãos que colaboraram com Portugal ao longo dos últimos 20 anos, marcava o relógio as 21h18, aterrava na pista do aeroporto o avião C130 da Força Áerea, uma hora depois de ter partido da base aérea de Torrejón, em Madrid. Antes, tinham voado do aeroporto de Cabul até ao Dubai, seguindo depois para Espanha.
Sob o olhar dos jornalistas, a uma distância considerável, saíam, além dos militares portugueses, os 24 refugiados afegãos, grupo no qual se contabilizam pelo menos oito crianças, incluindo um bebé, e várias mulheres. Logo à saída, um autocarro aguardava o grupo, levando os refugiados afegãos para um alojamento provisório, em Lisboa. É, conforme explicou horas antes a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, a primeira fase de acolhimento, onde vai ser feito um trabalho de contacto com as famílias. Numa segunda fase, o objetivo é garantir que têm acesso a habitação, a escolas e ao mercado de trabalho.
Portugal pode receber mais de 300 afegãos e há mais de 800 famílias de acolhimento disponíveis
O acolhimento destes afegãos, vincou o ministro da Defesa, é a forma de Portugal pagar as “dívidas de gratidão” em relação a afegãos que trabalharam, em muitos casos sob o risco da sua própria vida”, para Portugal ao longo dos 20 anos da missão da NATO no Afeganistão. “Esta força, de quatro homens apenas, foi a Cabul honrar essas dívidas de gratidão”, sublinhou João Gomes Cravinho.
Uma missão que “pôs à prova” os portugueses. Governo sem informação de pessoas da lista prioritária que ainda estejam no Afeganistão
Uma missão que, nas palavras do ministro da Defesa, foi “extremamente difícil”, exigindo “coragem, determinação, imaginação e criatividade” perante cenários adversos e imprevisíveis, com uma ameaça sempre presente. Uma ameaça que, aliás, se concretizou na quinta-feira, quando um bombista suicida do ISIS-K, a fação afegã do Daesh, perpetrou um atentado que causou a morte de pelo menos 180 mortes e mais de 200 feridos.
No momento do atentado, enquanto decorriam em contra-relógio as operações de retirada de civis afegãos e estrangeiros do aeroporto de Cabul, os militares portugueses estavam focados na retirada dos afegãos que constavam da lista prioritária portuguesa, sempre com o cuidado de fazer uma avaliação de risco da situação que, desde o momento em que aterraram na capital afegã, perceberam que era muito mais complexo do que quando abandonaram o Afeganistão, em maio.
“Desde o primeiro momento percebemos que as circunstâncias e o ambiente que se vivam naquela base eram significativamente diferentes daqueles que tínhamos deixado há cerca de três meses”, sublinhou o major Marco Silva, responsável pelas forças portuguesas destacadas em Cabul, recordando o dia do atentado reivindicado pelo ISIS-K. “A avaliação que fizemos no momento em que lá estivemos a trabalhar levou-nos a concluir que o risco e a ameaça que estávamos a viver era demasiado elevado e, tendo isso em consideração, tratámos de garantir a segurança das pessoas que já estavam connosco”, acrescentou.
Vários países ocidentais retiram-se de Cabul a quatro dias do fim do prazo
Uma missão que, conforme vincou João Gomes Cravinho, “pôs à prova” os quatro militares portugueses. “O Governo tinha aberto a porta, mas não bastava abrir a porta, era necessário também que esta equipa fosse lá para trazer esses afegãos para dentro do aeroporto e para os ajudar a colocar dentro dos aviões. Missões muito fáceis de enunciar, muito difíceis de cumprir nas circunstâncias do aeroporto de Cabul nestes últimos dias”, salientou o ministro, garantindo que esta missão ficará “para sempre nas memórias” dos portugueses.
Mais refugiados chegam durante o fim de semana
Esta missão que, unanimemente entre militares, Presidente da República e ministro da Defesa foi considerada um sucesso e uma tarefa cumprida “em pleno”, ainda não chegou ao fim, e entre a noite desta sexta-feira e este sábado chegarão mais 36 a 38 afegãos ao aeroporto de Figo Maduro, juntando-se assim ao primeiro grupo de 24 afegãos, composto por quatro ou cinco tradutores ou intérpretes e as suas famílias.
A confirmar-se, o número total de afegãos a chegar a Portugal ascender aos 62 — ao longo desta sexta-feira, o Governo falou em 56 ou 58 refugiados, embora o Ministério da Defesa tenha reiterado que os números não são finais e que podem ser alvo de alterações.
No entanto, por esclarecer fica ainda a questão de o número de afegãos identificados por Portugal e o número de pessoas que vai chegar nos próximos dias não corresponder. Inicialmente, João Gomes Cravinho identificou 116 afegãos — entre colabores com as forças portuguesas e respetivas famílias — da lista prioritária de Portugal. O Ministério da Defesa garante que todas as pessoas foram contactadas por Portugal — e que algumas podem ter decidido sair do Afeganistão com missões de outros países — e que não tem conhecimento de nenhum caso de afegãos que fizessem parte dessa lista e tenham ficado no Afeganistão.
“Aqueles que foram contactados pelos nossos militares e pelo nosso Estado-Maior General responderam e aqueles que quiseram dar seguimento aos contactos portugueses vieram com esta equipa da nossa Força Nacional Destacada que agora regressa. E acreditamos que alguns que não tenham dado seguimento será porque terão saído do Afeganistão com forças de outros países, porque não trabalharam, em exclusivo, com as forças portuguesas. Não temos informação sobre nenhum caso que esteja ainda no Afeganistão e que queira sair do Afeganistão”, acrescentou.
Concluída a missão, fica também a promessa feito pelo Governo de que Portugal está disposto a acolher mais refugiados afegãos, num número que poderá ser superior a 400, prova do compromisso de Portugal em “pagar a dívida” aos afegãos que estiveram ao lado das forças portuguesas durante a missão da NATO, e que chega ao fim quase 20 anos depois de os Estados Unidos invadirem o Afeganistão para derrubar o regime talibã, num ciclo que se fecha com o regresso dos extremistas islâmicos ao poder, num país onde outros grupos jihadistas ainda mais radicais são uma ameaça global.