Três portuguesas que estiveram no Afeganistão nos últimos 20 anos, ao serviço das Nações Unidas, retiraram do país, nos últimos dias, nove cidadãos vulneráveis, de uma lista de 258. O documento foi entregue ao Ministério dos Negócios Estrangeiros há mais de uma semana e contém nomes de cidadãos que trabalharam com as missões das Nações Unidas e que, por isso, estão em risco. O objetivo é encontrar casa para estes refugiados em Portugal ou noutros países do mundo. Ao Observador, as portuguesas explicam que estes afegãos estão “aterrorizados” e que precisam “desesperadamente de ajuda”. Por isso, apelam à ação imediata do Governo português.

Sónia Pereira de Figueiredo foi conselheira eleitoral da ONU no Afeganistão. Fez quatro missões como conselheira e observadora eleitoral desta entidade no país, entre 2009 e 2019. Ao Observador, explica que as pessoas resgatadas até agora são “uma família de oito pessoas” e uma outra mulher. Mas há muitos mais afegãos a pedir ajuda.

Grande parte da nossa lista contém nomes de pessoas que trabalharam ou trabalham para as Nações Unidas. Se não trabalharam na ONU, trabalharam com projetos apoiados pela União Europeia. São parceiros que, ao longo dos últimos 20 anos, estiveram sempre na linha da frente e, por isso, correm um risco maior”, alerta Sónia Pereira de Figueiredo.

Também ao Observador, uma das colegas adianta que estas pessoas foram acolhidas “pelos Estados Unidos e por países da Europa”. Eliane Torres trabalhou no Afeganistão em 2009 como observadora de longo termo da União Europeia. Atualmente, é investigadora na Universidade das Nações Unidas em Guimarães. Os contactos entre Portugal e Afeganistão são maioritariamente feitos via Facebook, em inglês, explica. A lista já chegou igualmente ao Serviço de Ação Externa da União Europeia e também ao Departamento de Estado norte-americano.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Apesar dos esforços internacionais, a responsável lamenta a falta de resposta do Ministério dos Negócios Estrangeiros português: “Somos nós, meras cidadãs portuguesas, que estamos a atuar para ajudar estas pessoas a sair desta situação de insegurança”. Eliane Torres admite ainda que, volvida uma semana desde que entregaram a lista ao Governo, esperava já ter retirado mais pessoas do Afeganistão.

Portugal tem o dever de receber estas pessoas. Podemos garantir que não são terroristas nem têm os valores que tememos. São pessoas que iriam contribuir de forma positiva para a sociedade portuguesa. Apelamos ao Governo para que nos contactem. Temos os documentos e tudo o que é preciso para provar que serviram as forças internacionais e nos serviram a nós. Agora, é a nossa vez de os servirmos para os livrar desta insegurança que vivem”, apela a investigadora.

Citada pelo jornal Público, Carla Lopes, que também cumpriu missões no Afeganistão e está a trabalhar com Eliane e Sónia, é clara: “É difícil, mas não podemos perder a esperança”. Mas a antiga conselheira eleitoral da ONU no Afeganistão, Sónia Pereira de Figueiredo, ressalva: “Não vamos conseguir salvar toda a gente. O número é enorme. Nos últimos 20 anos, muitos afegãos trabalharam com organizações internacionais”.

Por isso, reforça também, é necessária a intervenção do Governo. Sónia Pereira de Figueiredo considera que muitas das pessoas da lista podiam ter vindo para Portugal com os quatro militares destacados em Cabul para ajudar no esforço de retirada. “Não estávamos à espera que trouxessem de uma só vez estas 258 pessoas, claro”. Mas a responsável considera que os militares podiam ter usado a lista como “plano B”. “E isso não foi feito”, lamenta. As portuguesas garantem que todos estes cidadãos estão contactáveis e têm documentos.

A chegada dos primeiros 24 refugiados afegãos, os elogios aos militares, “as dívidas de gratidão” e o aparecimento de Marcelo

Sónia Pereira de Figueiredo adianta, em declarações ao Observador, que há uma segunda lista “de outras agências em zonas fora de Cabul com pessoas que estão retidas porque não se querem movimentar”. “Têm medo”, adianta. “Nomeadamente mulheres”, continua.

Questionada sobre que casos e histórias têm chegado ao grupo de colegas, Eliane Torres responde com voz pesada e respiração forte.

Choca-me o desespero. Quando me ligam e dizem: ‘Eles querem-me matar a mim e à minha família só porque me revejo e acredito nos valores ocidentais implementados durante 20 anos no Afeganistão’. Dizem-me que já não têm casa e estão dispostos a largar tudo, tudo. Pegar numa mala pequena e ir embora. Estamos a falar de pessoas com bebés. São gritos de desespero com os quais não podemos ficar indiferentes”, afirma Eliane Torres.

A investigadora na Universidade das Nações Unidas em Guimarães apela a que seja feito o maior número de contactos possíveis: “Contactos e acreditar que o Governo português nos vai contactar e às pessoas da lista e que vai agir junto das Nações Unidas para ter no manifesto dos últimos aviões de evacuação membros da nossa lista”. Sónia Pereira de Figueiredo também garante que está a fazer “pressão junto do Governo” para obter respostas. Mas admite, com um tom de voz taciturno, que não tens as melhores perspetivas para as próximas horas.

O fim de uma era (e da “guerra mais longa”): 20 anos depois, volta a não haver tropas americanas no Afeganistão

Temos vivido picos: uns de entusiasmo, outros em que não conseguimos ver a luz ao fundo do túnel. Hoje (esta segunda-feira) estamos um bocado apreensivas e com medo. Estamos frustradas e apavoradas. Estamos a receber mensagens demasiadamente penosas de ouvir. E não temos resposta para essas pessoas. Está a custar imenso”, lamenta.

A responsável afirma ainda que o ataque ao aeroporto de Cabul de quinta-feira teve “um duplo efeito”: “Assassinou todas aquelas pessoas e instaurou um clima de terror, o que levou as pessoas a sair de Cabul. E isso vai acontecer também com pessoas da nossa lista”, explica. Carla Lopes também diz que estes cidadãos “estão quase todos em casa, com receio de novos atentados”.

Ouça aqui na íntegra as declarações de Sónia Pereira de Figueiredo, ex-conselheira eleitoral da ONU no Afeganistão, ao Observador:

Afeganistão. Aliados do Ocidente “estão aterrorizados e a receber chamadas com frequência”

Chegaram a Portugal desde sexta-feira três grupos de afegãos: 24 no primeiro voo, com os quatro militares portugueses; 18 pessoas num voo fretado, durante a madrugada de sábado; e outras 19 no sábado de amanhã, num avião da Força Aérea. Estava previsto que viessem para Portugal 116 refugiados. O Governo garante que Portugal tem alojamento para receber no imediato mais de 300 refugiados afegãos. Cerca de 840 famílias portuguesas já mostraram disponibilidade para acolher estas pessoas.