Sempre que vê uma moto a acelerar demasiado ou brincadeiras arriscadas numa piscina, Leonor Saúde não consegue evitar um ligeiro arrepio. Os acidentes de viação e os mergulhos em águas pouco profundas são duas das principais causas de lesão na medula espinhal [também referida por vezes como “medula espinal”], um problema que a cientista investiga há dez anos.

Estes pacientes, geralmente jovens, não têm qualquer problema no cérebro ou nos membros, mas antes na “autoestrada” de informação que os une. A medula espinhal, protegida pelas vértebras da coluna, é essa via: uma espécie de tubo cheio de cabos elétricos, os nervos, que conduzem os impulsos nervosos do cérebro para a periferia – proporcionando o controlo motor – ao mesmo tempo que trazem informação da periferia para o cérebro – permitindo a perceção sensorial. “Nós não temos wireless, a comunicação no nosso corpo é feita por cabo, à moda antiga”, diz a cientista de 52 anos, investigadora no Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (IMM), em Lisboa. “Quando os cabos sofrem danos, a comunicação fica interrompida e pode haver tanto falta de controlo motor, como de perceção sensitiva, que são mais ou menos significativas, dependendo do local e da gravidade da lesão.”

Os pacientes com lesões na medula espinhal não têm problemas no cérebro ou nos membros, antes na “autoestrada” de informação que os une. Leonor Saúde procura uma forma de regenerar essas lesões na medula, que conduz os impulsos nervosos entre o cérebro e a periferia, proporcionando o controlo motor e a perceção sensorial

Apesar da extensa investigação na área, muitas das consequências destas lesões, como a dor crónica, a perda de controlo da bexiga e, sobretudo, a falta de sensibilidade e paralisia dos membros, são ainda irreversíveis. A cientista tem esperança que o estudo do peixe-zebra, um animal com uma extraordinária capacidade regenerativa dos órgãos, possa conduzir, no futuro, a terapias mais eficazes para os humanos, que não têm esta capacidade.

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Leonor Saúde licenciou-se em Biologia na Universidade de Aveiro e teve desde cedo um contacto próximo com a investigação: passou noites nos barcos da ria a colher amostras de água, acampou na serra para recolher dejetos e penas. “Foi divertido, mas também tornou claro que aquela biologia – de campo – não era para mim. Aquilo que me fascinava era a biologia de laboratório.” Assim, fez o mestrado em Engenharia Bioquímica no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, e seguiu para o Reino Unido, onde realizou o doutoramento em Biologia do Desenvolvimento, no National Institute for Medical Research (University College London).

Interessava-me perceber como é que, partindo de uma única célula, que resulta da fertilização do óvulo pelo espermatozoide, nós passamos para um conjunto de trilhões. de células com mais de 250 tipos. Como é que estas células se vão diferenciando, adquirindo novas características e competências?”

Foi então que o peixe-zebra se atravessou no seu caminho. Este modelo animal é muito usado na investigação científica por ter o genoma sequenciado e partilhar uma grande percentagem de genes e doenças humanas. Além disso, o Danio rerio – uma espécie oriunda dos rios da Índia mas já introduzida noutras geografias e que é muito apreciada por aquariófilos no mundo inteiro – é um animal de exceção para estudar o desenvolvimento embrionário: a fertilização ocorre na água, fora do corpo da mãe, e os embriões são transparentes, o que facilita a observação do desenvolvimento.

Mas acontece que este extraordinário animal (abundante em biotérios em laboratórios por todo o planeta) tem também uma capacidade invejável e misteriosa que fez a investigadora interessar-se pela área da regeneração – que, explica, “é uma espécie de biologia do desenvolvimento do adulto”: o peixe-zebra consegue regenerar sozinho todos os seus órgãos, medula espinhal incluída. Isso significa que um mês depois de uma lesão medular grave, já recuperou e voltou a nadar.

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Então, impôs-se a pergunta: o que é que o peixe-zebra faz que nós, mamíferos, não conseguimos fazer? Para isso, Leonor começou a comparar os mecanismos regenerativos dos peixes-zebra e dos ratinhos e encontrou uma diferença substancial que está a explorar num projeto com o apoio da Fundação “la Caixa”: a quantidade das células senescentes que surgem após a lesão.

Estas células são uma espécie de zombies. São incapazes de desempenhar funções básicas, como o crescimento e a divisão, mas recusam-se a morrer. Estão geralmente associadas ao envelhecimento, mas também surgem com o stress provocado por uma lesão traumática. No peixe-zebra, no entanto, apesar do pico pós-lesão, elas rapidamente desaparecem.

Será que quando há uma lesão num mamífero, que não tem esta capacidade regenerativa, estas células [senescentes] aparecem, mas não desaparecem?”, pergunta a investigadora.

Feita a experiência, a resposta foi inequívoca: nos ratinhos, sessenta dias depois da lesão na medula espinhal, estas células-zombie não só não desapareceram, como ainda estão a aumentar. Poderia ser esta a grande diferença?

Pode parecer um contrassenso, mas Leonor Saúde não gosta de perguntas complicadas. Para a investigação avançar, argumenta, é necessário saber extrair perguntas simples de situações complexas. Então, a pergunta que fez no arranque deste projeto foi muito simples: “Se eliminarmos as células senescentes no ratinho, fazendo com que o padrão seja mais próximo do peixe-zebra, será que a recuperação motora e sensitiva melhora?” Feita a experiência, chegou a resposta: quando tratados com senolíticos – medicamentos que eliminam as células senescentes –, os ratinhos tratados apresentam melhorias, tanto a nível da sensibilidade como do controlo motor, em relação aos não medicados. Isso sugere uma correlação entre a diminuição deste tipo de células e a melhoria funcional.

Agora queremos perceber exatamente porquê: o que é que aquelas células estão ali a fazer e como é que modelam a resposta do organismo?”

A cientista está entusiasmada com as descobertas, mas não deixa de as relativizar. “Ao contrário das doenças infeciosas, em que há um agente identificado, aqui não se conhece bem o inimigo, o que torna a condição muito complexa. É improvável que a solução para este problema passe apenas por um único aspeto, como este.”

A resposta que toda a gente gostaria de ter – daqui a quanto tempo haverá uma solução? – essa, não a tem. “Por vezes, há descobertas que são um salto gigante, que mudam paradigmas. O tempo médio entre essas grandes descobertas e a translação [para a prática clínica] são sensivelmente dez anos. E essa descoberta pode acontecer amanhã, mas também pode não acontecer em breve”, admite.

Leonor Saúde (com as investigadoras Filipa Dias, Ana Ribeiro, Mariana Costa, Leonor Lameira, Ana Isidro, Isaura Martins e Raquel Quitéria, do IMM) não sabe quando haverá uma resposta eficaz para as lesões permanentes na medula espinhal. “Pode acontecer amanhã, mas também pode não acontecer em breve”

Esta incerteza faz com seja particularmente difícil responder aos e-mails que lhe chegam com frequência de pacientes com lesões graves da medula espinhal – todos os anos ocorrem cerca de dez mil novos casos só na Europa, segundo dados da Comissão Europeia. A investigadora fica sempre com um nó no estômago e uma pergunta na cabeça: “O que é que eu vou responder a esta pessoa?” Mas responde sempre. Ora esclarecendo as dúvidas colocadas, ora enviando links para estudos recentes, ora recordando que há muitas equipas empenhadas em estudar o problema.

As pessoas têm muita esperança em nós, cientistas. Isso lembra-nos a nossa responsabilidade e dá-nos força para fazer melhor.”

Mas, por muito que façam, sabe que há perguntas cuja resposta não vai chegar a tempo de a conhecer. Isso inquieta-a. A sua curiosidade em relação ao futuro é tanta que, quando pensa na morte, mesmo na sua, o que a perturba é tudo o que não vai saber. “Vamos todos morrer e aceito isso. O que me dá mais pena é não estar cá para ver o que vai acontecer daqui a cem, duzentos ou quinhentos anos. O que irá acontecer ao nosso planeta: ainda cá estará? O que irá acontecer à condição humana: seremos humanos-máquinas?”

Hoje os interfaces entre cérebro e máquina já permitem que através da ligação de um dispositivo às ondas cerebrais, a simples intenção de beber um copo de água ative um braço robótico que faz o movimento por aqueles que não conseguem usar o próprio braço. Isso deixa entrever que, possivelmente, a futura solução para as lesões medulares não será apenas médica, mas também tecnológica.

Leonor Saúde não sabe as respostas. Mas continua à procura delas.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto É possível regenerar uma lesão na medula espinal? Targeting Induced-senescent Cells: a Novel Approach to Promote Spinal Cord Regeneration in Mammals, liderado por Leonor Saúde, do IMM, foi um dos 25 selecionados (6 em Portugal) entre 632 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2019 do Concurso Health Research. A investigadora recebeu 444 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. O concurso chama-se agora CaixaResearch de Investigação na Saúde e as candidaturas para a edição de 2022 encerram a 25 de novembro.