Também em Milão as coisas parecem estar a voltar ao dito normal, apesar dos vários desfiles e apresentações que se mantiveram digitais. As casas italianas deram tudo de si neste regresso às passerelles numa semana da moda que termina esta terça, 27. Houve muito brilho para preparar o regresso à rua, inspirações nostálgicas nos anos 2000 que trazem de volta a estética Y2K e explosões de cor para animar a vida pós-pandemia.
Kim Jones mandou para a passerelle a primeira coleção feminina da Fendi assinada por si em formato físico. Mas a marca não ficou por aqui. Num desfile surpresa, a Fendi e a Versace fundiram-se e deram origem à Fendace, uma coleção especial assinada pelos diretores criativos de ambas as casas de moda.
A Versace não deixou de surpreender e, cada vez mais atenta à camada jovem, Donatella decidiu apostar num símbolo desta geração: a estrela pop Dua Lipa. Além de oferecer a banda sonora do desfile, a cantora abriu e fechou o mesmo ao caminhar confiante na passerelle. Giorgio Armani mostrou que a sua etiqueta Emporio Armani também continua a olhar para os jovens, com uma coleção consistente que comprova isso mesmo para celebrar os 40 anos da marca.
Também houve moda portuguesa a apresentar-se em Milão. Primeiro com Gonçalo Peixoto, que foi buscar as memórias da sua avó para uma coleção que é um tesourinho da sua infância e da figura familiar. Já Alexandra Moura, olhou para os seus 20 anos de carreira e trouxe memórias fotográficas desses tempos para as passerelles, onde não faltou a veia punk já habitual da designer.
Alexandra Moura
Foi integrada no calendário oficial da Semana da Moda de Milão em 2019 e apresentou a sua coleção Primavera 2022 no último dia do evento, no Museo della Permanente, com apoio do Portugal Fashion. Na coleção “Confia na tua visão”, as referências punk voltam a marcar o passo de todo o desfile e das criações que lhe dão ritmo, até porque fazem parte do ADN da criadora que assinala quase duas décadas de carreira. O desfile abre com um vestido composto por recortes fotográficos impressos em tecido e unidos de forma a compor a silhueta feminina, com sobreposições e comprimentos distintos —as já conhecidas da designer. As fotografias deste vestido e de outras tantas peças são, precisamente, trabalhos e editoriais fotografados por Rui Aguiar — que trabalha com Alexandra há muitos anos — ao longo destes últimos 20 anos.
As laçadas, já conhecidas da designer, estão presentes em alguns modelitos, mas sobretudo nos sapatos dos manequins. Os conjuntos acetinados, em tons caramelo, quebraram a dureza das peças oversized já habituais de Alexandra Moura, e também muito presentes no desfile. Os blazers estruturados foram uma constante, assim como o blusão de couro com o mesmo corte e aberturas nos ombros.
Dolce & Gabbana
Depois de um ano e meio de pandemia — e com a coleção Alta Moda —, a dupla não escondeu a necessidade de trazer de volta o glamour de quem está pronto a sair à rua para viver a vida ao máximo — e a Dolce & Gabbana sempre foi espelho disso. Talvez numa das coleções mais jovens de sempre, uma vez mais para manter a Gen Z debaixo de olho, Domenico Dolce e Stefano Gabbana olharam então para o ano 2000, altura que ficou marcada pela estética Y2K. “Pensámos em fazer algo que não fosse semelhante [à coleção D&G de 2000], mas com o mesmo estado de espírito daquela coleção de 2000. Estamos a sair de um tempo sombrio e queremos desfrutar da vida. Queremos luz”, disse Stefano, citado pela Vogue. A casa de moda acabou a resgatar peças icónicas dos seus arquivos dos anos 90 e 2000, como as micro saias estampadas, os tops com joias e as calças de cintura descida — muitos umbigos à mostra durante o desfile, assim como o animal print e camuflados. Com uma coleção destas, passa-se tudo menos despercebido e basta olhar (ou envergar) um dos casacos com silhueta-borboleta. Uma especial atenção para um T-shirt com a cara de Jennifer Lopez estampada e com a sua insígnia JLo em vermelho, para o caso de haver dúvidas de mais um símbolo inevitável do início do milénio.
Fendi
Na lendária Via Solari, Kim Jones mostrava a sua mulher Fendi, repensada e mais arriscada que as coleções anteriores, neste que é o seu primeiro desfile ao vivo desde que assumiu a direção criativa da marca. Se há coisa a apontar logo de início ao que passou pela passerelle foi o trabalho minucioso, quase em jeito de homenagem, da utilização de ilustrações de Antonio Lopez em muitas das peças da coleção. “Enquanto eu olhava para o legado de Karl na Fendi, também olhei em redor dele, para os seus contemporâneos — em quem ele estava interessado”, explicou Jones citado pela Harper’s Bazaar. “Lopez era amigo de Karl e sempre foi alguém que me inspirou. Ele estava a pensar no futuro, era inclusivo, admirado por todos, de Andy Warhol a Steven Meisel e David Hockney. Eu quis apresentá-lo a uma nova geração.”
A cor tornou-se mais impactantemente à medida que mais ilustrações davam vida aos modelitos na passerelle — modelos esses que começaram numa paleta de brancos e foram evoluindo para bejes, castanhos, até se tornarem num arco-íris para acabarem no preto, que fechou o desfile. A pinceladas de Lopez aparecem em blusas de seda, kaftans, malas e vestidos, e muitas das ilustrações figurativas dão vida a peças em couro ou de renda. Fendi não era Fendi sem os seus casacos, sobretudo o de penas que aqui apareceu num rosa choque marcante, e os de pelo. A alfaiataria, mais uma vez, foi ponto forte da marca romana, que se inspirou nos anos 70 e no auge do disco, para passar uma mensagem sobre diversidade e a força da mulher.
Gonçalo Peixoto
As memórias vêm de há muito tempo, nunca estiveram enterradas, mas é nesta coleção que Gonçalo Peixoto decidiu que era altura de verem a luz do dia. O designer português integrou o calendário oficial da Semana da Moda de Milão, através da parceria de cooperação entre a Associação ModaLisboa e o Portugal Fashion, e apresentou a sua coleção ao público num cocktail no Senato Hotel Milano, em que os convidados tiveram oportunidade de ver de perto as peças da primavera de 2022, bem como o vídeo gravado na cidade italiana dias antes e emitido na plataforma oficial da Camera Nazionale della Moda Italiana. “Alice We Will Meet in the Wonderland” é o país das maravilhas da memória de Gonçalo, que foi beber à arca de memórias da sua avó Alice. “‘Encontramos-te no país das maravilhas’ traduz a esperança de um reencontro com a pessoa que marcou a minha infância de uma forma muito impactante, e recria o lugar imaginário e utópico onde as nossas almas se voltam a encontrar”, explica o criador em comunicado. A coleção, quase toda em tons pastel — azuis, laranjas, verdes e rosas — explorou os padrões florais, assim como o vichy, e várias peças mostraram o trabalho minucioso de crochet e brocados.
Emporio Armani
Giorgio Armani assinalou nesta semana da moda 40 anos da sua etiqueta Emporio Armani, marcando assim o regresso aos desfiles depois de ter sido dos primeiros a cancelar em 2020 por riscos associados à pandemia — de recordar também que as fábricas Armani produziram uniformes para profissionais de saúde no tempos negros da Covid-19. A celebração veio assim na forma que o criador de moda mais tem demonstrado ao longo dos últimos anos nas passerelles — com consistência. Com peças masculinas e femininas, nesta que é o tentáculo mais jovem do império Armani, o criador trouxe a elegância italiana aliada a alguns símbolos da marca. “Nesta estação, a viagem começa num deserto imaginário, atravessando o seu oásis e terminando caminho de cor vibrantes”, escreveu o criador nas notas do desfile. “E tudo se mistura, muito livremente.”
Giorgio Armani desejou longa vida à ganga, com a qual arrancou o desfile, com blazers e calças patchwork neste material usando vários tons, e a partir daí a passerelle foi assumindo um gradiente de cores e estilos diversos. A casa italiana passou por silhuetas fluídas de seda e cetim, conjuntos mais desportivos, alfaiataria em linho, com muitas peças a serem complementadas por cintos de corda e colares grandes. Giorgi Armani rematou o desfile com um trio de modelos com tops e saias pailette em cores primárias, um fecho em grande, com brilho e a dar provas da sintonia que mantém com a geração mais jovem.
Versace
Nem sempre os modelitos são o que mais burburinho causa num desfile de moda e, no caso desta estação, Donatella Versace fez escolhas que deram que falar — a cantora Dua Lipa abriu e fechou o desfile, cuja música serviu de banda sonora ao espetáculo. Donatella sabe, de facto, captar a atenção, tanto dos fiéis seguidores Versace, como da camada mais jovem, a chamada geração Tik Tok, que tem tido um papel de destaque no panorama da moda e dos designers – um lembrete à criação da designer italiana para Lis Nas X na Met Gala. Num desfile de empoderamento da marca, não faltaram clássicos Versace, como os padrões Medusa e La Greca, com uma paleta de cores que gritava pop. Apesar de um começo onde dominou o preto, a cor começou a brotar em pequenos detalhes até se tornar gritante. Donatella presenteou a plateia com lenços – na cabeça, no pescoço e a fazer de top —, casacos estruturados, camisas fluídas, equipamentos de basquetebol de seda, rachas de grande amplitude em vestidos e saias e, claro, peças em lantejoulas — uma das quais em rosa choque envergada por Dua Lipa no encerramento do desfile.
Prada
Dois desfiles simultâneos e uma coleção co-dirigida que finalmente viu a luz do dia — é apenas um breve resumo da apresentação da Prada nesta estação. A ter lugar em Milão e em Xangai, esta foi a primeira oportunidade física de deitar o olho na co-direção criativa da marca entre Miuccia Prada e Raf Simons, 18 meses depois de esta ter arrancado. O foco esteve no espartilho, uma peça tradicionalmente feminina e também ligada à opressão do corpo, apesar de este ter sido apresentado de uma forma desconstruída e recontextualizada pelos dois designers. “Seduction, Stripped Down” é o nome da coleção que vê com outros olhos aquilo que é (ou poderá) ser sexy, isto porque as formas mudam, a aceitação dos corpos também e a objetificação do corpo da mulher idem, e para o verão de 2022 Raf Simons e Miuccia Prada quiseram mostrar isso com peças que têm o seu quê de sobriedade, ao mesmo tempo que transmitem uma sensualidade pensada e equilibrada. Vestidos e blusas bem cerrados à frente e com as costas ao léu, saias curtas com longas caudas de cetim, casacos adornados com cordões de espartilhos, os blusões de couro e os slingbacks de salto baixo foram apenas alguns dos destaques do desfile, que também foi transmitido online. “Pensámos em palavras como ‘elegante’, mas isso pareceu-nos tão antiquado. Na verdade, trata-se de uma linguagem de sedução que conduz sempre de volta ao corpo. Utilizando estas ideias, estas referências a peças históricas, a coleção é uma investigação do que elas significam hoje”, referiu Miuccia nas notas de imprensa citada pela Vogue.
Fendace
Leia-se: Versace by Fendi ou Fendi By Versace, uma colaboração única e inesperada (apesar dos rumores) no mundo da moda, pelo menos com o peso que cada uma das marcas tem na indústria e que não pertencem ao mesmo grupo. O que é certo é que Kim Jones, diretor artístico das coleções femininas da Fendi, Silvia Venturini Fendi, designer de roupa masculina da Fendi, e Donatella Versace, convidaram-se mutuamente para pôr as mãos nas marcas um do outro e mostrar o resultado na passerelle, honrando por sua vez o trabalho de Gianni Versace e Karl Lagerfeld. Não passou despercebida a “brincadeira” com o duplo-F da Fendi que se fundiu com o padrão Greca da Versace em casacos, malas e até meias. E para um momento para mais tarde recordar não faltaram supermodelos para avivar a memória tardia — pela passerelle passaram Kate Moss, Naomi Campbell, Kristen Mcmenamy, Amber Valletta e Shalom Harlow, além de Gigi Hadid, Lila Moss ou Precious Lee.