Ahmad Zaid trabalhou quase três anos como intérprete para as forças portuguesas no Afeganistão e esse foi o seu salvo-conduto para fugir do país, mas agora vive numa situação “excruciante” e de permanente sofrimento pela família que lá deixou.

“Não me lembro há quanto tempo cheguei a Portugal, ainda estou confuso e perplexo com isto tudo. E não faço ideia de que dia [da semana] é hoje, se é segunda, terça, ou domingo, falo muito a sério, só penso na minha família”, contou Ahmad Zaid.

Apesar de não se lembrar do dia ao certo, Ahmad Zaid chegou recentemente a Portugal, juntamente com outros cidadãos afegãos retirados do país pelas forças militares portuguesas depois de os talibãs terem tomado o poder.

Durante cerca de dois anos e meio trabalhou como tradutor para as forças portuguesas e antes disso para as americanas, o que fez de si e da sua família um alvo imediato para os talibãs, que por mais do que uma vez já foram à sua procura.

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Lembra-se que “foi muito difícil chegar ao aeroporto de Cabul” e que a comunicação com as forças portuguesas era feita apenas por whatsapp ou por mail. Recorda-se também que foi avisado pelos militares portugueses para não ter consigo qualquer documento porque os “talibãs estavam à procura de quem tivesse colaborado com as forças internacionais”.

“Fugi sozinho, pedi para retirarem também a minha família, mas o que me disseram na altura foi que só garantiam a minha saída e que só mais tarde podia pedir para trazer a minha família”, contou à Lusa.

Consigo trouxe apenas uma mochila e uma muda de roupa, não conseguiu sequer despedir-se do pai ou da mãe, que deixou para trás juntamente com dois irmãos e duas irmãs e que agora quer desesperadamente trazer para junto de si.

“Eles disseram ‘vamos manter os nossos números, tu manténs o teu e havemos de continuar em contacto, por favor não os percas'”, contou, lembrando a conversa que teve com os pais.

Sabe onde estão, mas prefere não falar muito, explicando que estão bem, mas não estão em segurança porque não há garantias de segurança para aqueles que são familiares de quem trabalhava com as forças da coligação.

Eles [talibãs] não vão deixar as famílias, vão matar as famílias porque eles dizem ‘vocês foram traidores e os vossos filhos eram traidores, se não apoiassem o vosso filho, o vosso filho não faria isso, vocês eram o apoio do vosso filho’. Eles vão vingar-se na minha família, estou muito preocupado com a minha família”, diz.

Ahmad refere, por outro lado, que está muito grato a Portugal por o ter retirado do Afeganistão e por as autoridades portuguesas lhe terem dado desde comida, a roupa ou alojamento, pelo sentimento de liberdade e de segurança, mas a sua preocupação é só uma e admite mesmo que enquanto não conseguir trazer a família para junto de si só lhe “resta viver em sofrimento emocional e psicológico”.

Já falei com muita gente, estou disponível para tirar uma refeição das três refeições por dia, eu tiro uma refeição, mas por favor tragam a minha família, não me deem de comer três vezes por dia, deem só uma, mas tragam a minha família por favor”, suplica.

“É uma situação excruciante”, admite.

Pelo meio, mostra vídeos de ações recentes dos talibãs, que recebeu através do Facebook, e onde, segundo Ahmad, é possível ver decapitações, enforcamentos ou pessoas mortas à beira da estrada.

Segundo Ahmad Zaid, os alvos dos talibãs são todas as pessoas que trabalharam para as forças de segurança afegãs, mas também polícia, segurança nacional e intérpretes, já que estes últimos eram “os olhos e os ouvidos das forças de coligação”.

À Lusa, o diretor do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) admitiu mesmo que “a maior preocupação” dos afegãos que, tal como Ahmad, chegaram recentemente a Portugal “não é tanto com o seu futuro imediato, mas com o que está a acontecer com as suas famílias e os seu familiares”.

“Há entre eles um sentimento de profunda gratidão pelo resgate, mas ao mesmo tempo uma enorme ansiedade por toda a família que permaneceu no Afeganistão e essa é a maior preocupação dessas pessoas”, apontou André Costa Jorge.

De acordo com o responsável, o governo português já manifestou vontade em resgatar essas pessoas, mas defendeu que “é importante que o salvamento possa prosseguir muito rapidamente”.

“Primeiro porque retiramos pessoas que estão em perigo de vida, a informação que temos é que estas pessoas correm real perigo de vida, mas também porque as pessoas que aqui estão não estabilizarão enquanto não souberem que os familiares estão em segurança”, apontou.

Segundo André Costa Jorge, estão já identificadas e mapeadas 296 pessoas nestas condições, que precisam de ser retiradas do Afeganistão “o mais rapidamente possível”, seja através de salvo-condutos, vistos humanitários ou cartas convite que garantam a sua saída em segurança.

O JRS tem estado, juntamente com a Câmara Municipal de Lisboa, a garantir o funcionamento das estruturas de acolhimento de refugiados, dando não só acompanhamento social e psicológico ou mobilizando voluntários e a fazer a articulação com instituições que possam vir a fazer o acolhimento de famílias refugiadas, nomeadamente afegãs.

André Costa Jorge contou que “as pessoas chegaram naturalmente muito cansadas, emocionalmente exaustas”.

“Passaram por muito, sobretudo saíram com a roupa do corpo, para salvar a vida, mas [chegaram] com um profundo sentimento de gratidão por aquilo que os militares portugueses fizeram na evacuação do Afeganistão”, apontou, acrescentando que os cidadãos afegãos estão “tranquilos” e que “acreditam que vai correr tudo bem”.

Outra instituição que está a trabalhar no acolhimento aos cidadãos afegãos é a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) que, juntamente com a associação Corações Com Coroa (CCC), fez um apelo humanitário e tem, desde há cerca de um mês, uma conta bancária para onde os portugueses podem contribuir monetariamente, até ao final do ano.

À Lusa, a coordenadora da ação social da CVP adiantou que já angariaram cerca de 40 mil euros e explicou que a verba será destinada a todos os refugiados, independentemente da nacionalidade, apesar de ainda estarem a ser definidos os moldes em que esse apoio será concretizado.

De acordo com Joana Rodrigues, está pensado que venha a ser feito um plano personalizado de acordo com as necessidades especificas da pessoa refugiada. A responsável apontou que a CVP tem 22 vagas disponíveis para cidadãos afegãos que ainda não foram preenchidas.

A gestão do fundo será feita entre a CVP e a CCC, razão pela qual será dada prioridade na ajuda a mulheres e crianças.

Ahmad Zaid não se cansa de agradecer toda a ajuda e apoio que lhe foi dado até agora, e repete o quanto deseja conseguir reunir-se à sua família, sem a qual “a vida não tem sentido”.

“O segundo desejo é ir para a universidade para no futuro ser alguém e ajudar este país, que é o meu novo país”, adiantou.