Morreram 200 pessoas durante a experiência com proxalutamida no tratamento de doentes Covid-19 no Amazonas. A Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) considera que poderá ser uma das mais graves violações éticas na área da investigação na história da América Latina, reportou a DW.

Consideramos que este poderá ser um dos episódios mais graves e sérios de infração à ética das pesquisas e de violação aos direitos humanos dos participantes na história da América Latina, que envolve a morte suspeita de 200 indivíduos”, afirmou a Rede Latino-americana e Caribenha de Bioética (Redbioética) da Unesco, no sábado.

O fármaco, originalmente em estudo para o tratamento do cancro da próstata, é defendido pelo Presidente brasileiro Jair Bolsonaro, apesar de não haver, até agora, qualquer evidência científica comprovada de que possa ter efeitos benéficos nos doentes Covid-19 — tal como já acontecia com a hidroxicloroquina e ivermectina.

A Comissão Nacional de Ética e Pesquisa (Conep) do Brasil já estava a investigar o caso, por causa das irregularidades detetadas, e já tinha enviado um relatório à Procuradoria-Geral da República em setembro.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

  1. Alterações sem autorização
    É a Conep que tem de autorizar a realização de ensaios clínicos com humanos e deve ser informada sobre as alterações ao mesmo. No entanto, verificou que o estudo passou de 294 voluntários, aprovados a 27 de janeiro, para 645 sem permissão e que o local do ensaio foi alterado para o Amazonas.
  2. Mortes não investigadas
    A Conep diz que não foi feita a devida investigação sobre a morte dos 200 voluntários durante o ensaio. As causas de morte apontadas são insuficiência renal e hepática — compatível com a morte de doentes Covid-19 em unidades de cuidados intensivos —, mas o estudo só tinha autorização para incluir pessoas com doença ligeira ou moderada.
  3. Conflitos de interesse no comité independente
    Este ensaio clínico, como é norma, deve ser acompanhado por um comité independente que analisará, por exemplo, os resultados preliminares, os efeitos secundários e as causas de morte. No entanto, o comité é liderado por uma investigadora da farmacêutica que financiou o estudo, a Applied Biology — algo que foi omitido no pedido de autorização à Conep.

A revista Questão de Ciência, no Brasil, identificou uma série de outras violações éticas e científicas do grupo de investigação, como registar o ensaio clínico na plataforma ClinicalTrials e começar a recrutar voluntários antes de ter autorização para o ensaio clínico, mudar o fármaco em teste sem fazer um novo registo de ensaio clínico, mudar o registo do ensaio clínico depois de este já ter terminado, incluir doentes com ventilação mecânica invasiva no ensaio quando isso não estava previsto nem autorizado, alterar a forma de distribuição dos voluntários entre os grupos tratamento e placebo, entre outros.

A suspeita de que haveria unidades hospitalares e clínicas a usarem proxalutamida à revelia dos estudos científicos aprovados pela Conep levou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a suspender, em setembro, a importação do fármaco e o uso em estudos que não tenham sido previamente autorizados.

Depois de detetada esta situação, a Anvisa lançou uma consulta pública sobre a importação com objetivos de investigação científica. “O objetivo é aprimorar o controlo sanitário na importação de produtos utilizados em pesquisa científica com seres humanos e coibir o desvio de finalidade para consumo irregular desses produtos”, conforme comunicado da agência.

Em resposta ao comunicado da Unesco, Flavio Cadegiani, endocrinologista e coordenador do ensaio clínico diz que a organização “foi induzida a erro por declarações tendenciosas, por informações inverídicas e distorcidas pela Conep” e nega que se tenha recusado a fornecer todos os elementos requeridos pela comissão de ética. Mais, no esclarecimento divulgado no Twitter, Flavio Cadegiani diz que “não houve nenhum óbito suspeito” e que “nenhum evento adverso sério decorreu da medicação em teste”.

“A investigação de nossa parte, na Conep, foi concluída, porque o pesquisador se recusou a fornecer as informações solicitadas”, disse o coordenador da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), Jorge Alves de Almeida Venâncio, à Globo (g1).

A proxalutamida ainda não foi autorizada em nenhum país do mundo, nem sequer para o fim original a que se propunha: o tratamento de doentes com cancro próstata resistente à castração. O fármaco foi desenvolvido produzida pela empresa chinesa Kintor em colaboração com a farmacêutica americana Applied Biology.