Cinco minutos antes de preencher o formulário para se candidatar à faculdade, em 1997, Agostinho Carvalho “nem sabia bem o que queria”, graceja como quem desfaz um equívoco. Ser cientista surgiu então de um acaso. Como conhecia uma pessoa no primeiro ano da então recente licenciatura em Biologia Aplicada, na Universidade do Minho, e porque até considerava a Biologia “uma área interessante”, tomou essa “decisão em cima do joelho”, como gosta de reforçar, e acabou por se inscrever no curso que o levaria a abraçar a ciência como o caminho que lhe faz hoje os olhos brilhar.

Em 2018, o investigador de 41 anos da Escola de Medicina da Universidade do Minho e do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde (ICVS) da mesma instituição conseguiu a aprovação de financiamento máximo de um milhão de euros para o projeto científico TRANS-CPA, que está a investigar infeções respiratórias, numa parceria entre a Fundação “la Caixa” e a Fundação para a Ciência e a Tecnologia. A proposta, que junta várias áreas do conhecimento, terá pesado na seleção. “Essencialmente foi aperceber-me de que havia ali qualquer coisa de que eu gostava muito, que era esta combinação da Genética com Imunologia e com a Microbiologia”, sintetiza, para fundamentar a base científica do TRANS-CPA.

“Como evitar e melhorar o tratamento de infeções respiratórias?” É esta a pergunta que mobiliza esse projeto com mais três investigadores – Cristina Cunha, Teresa Silva e Samuel Gonçalves –, sob a liderança de Agostinho Carvalho. Trata-se de uma “abordagem transdisciplinar para a identificação de biomarcadores personalizados e alvos terapêuticos para a aspergilose pulmonar crónica”, causada pelo fungo Aspergillus. Os cientistas querem saber qual a suscetibilidade a esta infeção dos pacientes com doenças pulmonares anteriores, de forma a melhorar a prevenção e o diagnóstico, e o desenvolvimento de terapias personalizadas. Dessa forma, pretendem criar condições para melhorar a qualidade de vida de quem sofre destas infeções.

O trabalho que Agostinho Carvalho está a desenvolver no ICVS, na Universidade do Minho, poderá criar condições para melhorar a qualidade de vida de quem de problemas como a doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC), que tem uma taxa de mortalidade de 8%

Agostinho admite que trabalha muito e que agora o maior hobby é ter tempo para a família – tem uma filha de dois anos e meio e a mulher também é cientista –, por isso chega cedo ao trabalho. Vai primeiro ao laboratório cumprimentar os estudantes e, depois, mergulha com intensidade no universo do Aspergillus. Podemos encontrar o investigador no terceiro andar do edifício do Campus de Gualtar, no escritório com o número i3.05, partilhado com um colega. Todos os dias, sobe os vários lanços de escadas do ICVS, aproveita para fazer exercício, e garante que nunca se lembrou de as contar.

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O que ele também não conta, mas que sabemos, é que nessa subida ele está ainda mais em contacto com o Aspergillus. Ele e todos nós. Afinal, trata-se de um fungo que respiramos diariamente.

Há estudos que estimam que respiramos cerca de duzentos esporos deste fungo, todos os dias. Se tivermos um sistema imunitário que é funcional, competente, eliminamos esses esporos sem qualquer problema.”

A maior complicação, ressalva, está nas pessoas que têm patologias pulmonares que favorecem a infeção. “Ou pessoas imunocomprometidas por causa de tratamentos que fazem, como quimioterapia, têm um risco elevadíssimo, já que o sistema imunitário não vai ser capaz de eliminar esse fungo.”

O Aspergillus compõe-se por centenas de espécies de fungos que estão em todo o lado, sendo agentes patogénicos [que podem provocar doenças], aproveitando-se de fragilidades dos seres humanos, sobretudo com sistemas imunitários mais comprometidos.

A aspergilose, a infeção causada pelo fungo, é, segundo o Observatório Nacional das Doenças Respiratórias, uma das principais causas de morte quando associada à doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC), apesar de ser ainda uma patologia desconhecida pelos portugueses.

Não se conhece a prevalência da Aspergilose Pulmonar Crónica, muito porque em Portugal não se pesquisam estas infeções”, contextualiza o cientista, “ao contrário do que acontece no resto da Europa.” Supõe-se que “sejam número relevantes, visto que são estimados 6400 doentes com DPOC, todos os anos, em Portugal.”

O fungo está no ar, no pó, no material em decomposição (em campos agrícolas, por exemplo), nas plantas, em materiais de construção, nas saídas de ar condicionado ou aquecimento, em materiais de isolamento de construção e em todos os elementos que possam formar bolor. Ou seja, não lhe podemos escapar. Para piorar, há situações em que ele está agravado, como o facto de ser mais comum durante o outono e o inverno no hemisfério norte. Depois de inalado, esse fungo começa a desenvolver-se nas vias respiratórias e pulmões, podendo desenvolver uma infeção invasiva, cuja taxa de letalidade é elevada.

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Aliás, os mais recentes dados evidenciam motivos para preocupação. Por um lado, a DPOC tem uma taxa de mortalidade de 8% (os cancros do pulmão rondam os 30%, as pneumonias os 20%,  e a insuficiência respiratória os 25%) e o número total de internamentos por doenças respiratórias aumentou 26% nos últimos anos.

Bombeiros, pessoas que trabalhem em fundições ou agricultura ou com materiais como madeiras, por exemplo” têm maior risco de inalar partículas com o Aspergillus. Já o consumo de tabaco é um fator de risco para o desenvolvimento da DPOC, uma doença pulmonar que favorece a infeção por Aspergillus. Mais cedo ou mais tarde, vai acabar por “induzir o desenvolvimento no dia-a-dia destas doenças”, garante o investigador.

O interesse de Agostinho Carvalho por esta área surgiu no final da Licenciatura. Nasceu no Porto, mas aos 3 anos os pais mudaram-se para Fafe. Apesar de, no segundo ano da faculdade, ter começado finalmente a gostar do curso de Biologia Aplicada, foi apenas no último ano, em 2002, que se deu o turning point.

“Tive cadeiras opcionais, como Imunologia, Estudo do Sistema Imunitário e Genética e fiquei fascinadíssimo com essa vertente”, recorda. Fez o estágio em Microbiologia na Escola de Medicina da Universidade do Minho, numa componente mais clínica, usando modelos genéticos de levedura para ajudar o grupo de pesquisa onde estava integrado, que investigava um conjunto de doenças genéticas.

Em 2003, desafiaram-no a estudar as infeções fúngicas, no âmbito de um doutoramento, ligando o conhecimento da Genética e da Imunologia com a questão da suscetibilidade humana. Foi nessa altura que teve o primeiro contacto com o tópico no qual trabalha atualmente. No início teve “muitas dificuldades”. Por ser um trabalho que “implica acesso a material de doentes, tornou-se muito complicado conseguir estabelecer um conjunto de redes em Portugal”.

Mas uma viagem a Nice, em França, em 2005, para participar numa conferência sobre diferentes vertentes da questão das infeções fúngicas e da interação hospedeiro-fungo” mudaria essa contrariedade. “Apresentei um poster sobre um estudo de variações genéticas num conjunto de genes do sistema imunitário chamados os recetores de toll like [família de proteínas que formam uma parte do sistema imunológico inato], que tinham sido descobertos recentemente, na altura, e os nossos resultados praticamente mostravam que, efetivamente, havia uma associação entre a presença dessas variantes genéticas nesses genes com o desenvolvimento de infeções fúngicas”.

Era ainda um estudo muito limitado, porque tinha um número pequeno de doentes hematológicos de quem recolheu as amostras, mas que, mesmo assim, chamou a atenção da imunologista italiana Luigina Romani. “Ela gostou muito da nossa perspetiva mais translacional com os doentes” [aplicação prática de investigação científica, sobretudo na área da medicina], recorda Agostinho. “E disse-me: ‘Conheço pessoas que podem dar-te acesso aos doentes que precisas. Tens é de vir para Perugia’.”

“Como evitar e melhorar o tratamento de infeções respiratórias?” É esta a pergunta que mobiliza o projeto de Agostinho Carvalho uma “abordagem transdisciplinar para a identificação de biomarcadores personalizados e alvos terapêuticos para a aspergilose pulmonar crónica”

Três meses depois, Agostinho estava a viajar para Itália. Conseguiu acesso a cem pacientes que faziam transplante de medula. “Nós colhíamos as amostras dos doentes e víamos se a frequência de uma determinada variante era maior nos doentes que desenvolviam infeção ou não”. Seis meses depois voltou para Portugal para concluir a investigação do doutoramento. “Aquilo que nós fizemos foi tentar perceber o que faziam essas variantes. E isso foi efetivamente aquilo que me fez aperceber que era aquilo que eu queria continuar a fazer.”

Em 2008, voltou para Itália, onde esteve mais seis anos, para continuar a expandir a investigação num Pós-Doutoramento sobre a base genética de suscetibilidade à infeção fúngica numa parceria entre o ICVS e a Universidade de Perugia. Entre 2012 e 2014 assumiu uma posição de investigador auxiliar no Departamento de Medicina Experimental, especializando-se em Imunologia e Imunogenética Fúngica.

“Nesse período, o que alcançamos foi conseguir a identificação e caracterização das consequências funcionais de variantes genéticas num gene (pentraxina 3) que codifica uma proteína”, explica, clarificando que os anticorpos per se são extremamente específicos a um determinado antigénio, mas esta proteína é “evolutivamente um ancestral desses anticorpos, no sentido em que têm as mesmas funções e é capaz de ligar-se a agentes patogénicos, mas não é tão específica [como os outros anticorpos]”.

Agostinho e os colegas descobriram que essas variantes genéticas levavam a um defeito na expressão e na função dessa proteína nas pessoas que a aportavam. Todos temos a proteína, o que muda é a presença das variantes genéticas. “O problema acontece em determinadas circunstâncias clínicas, como este caso particular em que os doentes fazem transplante de medula. Verificamos que o risco de infeção poderá ser mais elevado”.

Esses resultados tiveram muita visibilidade, não só porque foram publicados  na principal revista clínica mundial, a famosa New England Journal of Medicine, “mas também porque, depois, um conjunto de estudos subsequentes validaram estes resultados em populações completamente independentes”. Até ao momento, enfatiza Agostinho, trata-se do estudo mais robusto na área e é uma molécula que ainda hoje está a ser estudada em contextos diferentes.

Nessa altura, em 2014, já de regresso ao ICVS, Agostinho estava a trabalhar em colaboração com o cientista holandês Frank van de Veerdonk – que tinha particular interesse em aspergilose pulmonar crónica – e com o pneumologista Helder Bastos, do Hospital São João, no Porto, para poder recolher amostras de doentes com DPOC. Dessa forma, juntaram-se os alicerces essenciais para a proposta de financiamento à Fundação “la Caixa”, que reuniu um conjunto de colaboradores para um consórcio de investigação até 2023.

A aspergilose pulmonar crónica é causada pelo fungo Aspergillus. Os cientistas querem saber qual a suscetibilidade a esta infeção dos pacientes com doenças pulmonares anteriores

O projeto é muito focado na análise de doentes, por isso, o recrutamento dos pacientes ainda está a decorrer. Mas um dos primeiros resultados, sobre os quais estão já a escrever um artigo, é a identificação, neste grupo de doentes que desenvolve esta infeção crónica, de uma deficiência na produção de uma citocina muito importante do ponto de vista da imunidade antifúngica, que é o interferão-gama.

Isso é relevante, não só porque podem identificar esta deficiência e agir de imediato para evitar a infeção, mas porque o interferão-gama é usado como imunoterapia,  “apesar de nunca ter sido tentado neste contexto particular”, nota o investigador. O interferão-gama é uma proteína que pode funcionar como uma espécie de soldado de estimulação imunológica, ativando redes celulares e combatendo infeções virais, por exemplo. “Conseguimos saber quais são os doentes que apresentam esta deficiência e identificar de imediato aqueles que, no futuro, poderão eventualmente beneficiar desta imunoterapia”, especifica.

É nesse sentido que estão a planear um ensaio clínico com o uso desse interferão-gama para tratamento da infeção nestes doentes em concreto. O tratamento atual dá-se através de antifúngicos, mas sem grande eficácia. “E isso porque os pacientes de DPOC têm um problema particular: estas infeções causam granulomas nos pulmões por causa dos danos associados à doença de base e criam as condições para que se formem agregados de fungo”. Na prática, constata-se, é muito difícil fazer com que os fármacos antifúngicos consigam penetrar nesses agregados de forma a eliminar o fungo.

Queremos fazer um boost ao nosso sistema imunitário, de forma que seja ele a fazer a eliminação da infeção”, diz o investigador.

A equipa de Agostinho Carvalho não está, assim, focada em atacar o fungo diretamente. Em vez disso, vão tentar transformar o sistema imunitário num super-herói. “Essa é a parte mais importante deste conceito que se está a utilizar muito noutros settings clínicos, que é aquilo que se chama terapia dirigida ao hospedeiro”.

Segundo o cientista, até recentemente os estudos focavam-se ou em análises genéticas ou análises funcionais, imunológicas. Esta abordagem do TRANS-CPA é diferente no sentido em que combinaram os dois tipos de informação, privilegiando, assim, a genómica funcional, um ramo da biologia molecular que descreve as funções de genes e proteínas através da determinação e sequenciamento completo do genoma de um organismo. “Não só caracterizamos a variabilidade genética de determinado doente, como caracterizamos também do ponto de vista funcional a resposta das suas células imunitárias”, avança.

O que a equipa está a fazer é colher as células destes doentes, fazer a cultura, proceder à infeção in vitro com o Aspergillus e, depois, medir a capacidade dessas células em eliminar a infeção. Querem compreender, em termos genéricos, “como é que estas células conseguem lidar com o fungo”: se são muito ou pouco eficientes e, do ponto de vista funcional do sistema imunitário, como é que as nossas células respondem.

“Depois combinamos esta informação com o perfil genético E não só encontramos variantes genéticas que predispõem, ou que podem conferir resistência à infeção – não sabemos –, como também vamos saber que variantes genéticas se associam com uma eficácia mais alta ou mais baixa do próprio sistema imunitário.”

A licenciatura em Biologia Aplicada acabou por ser “um acaso”. Mas tornou-se uma paixão de vida para o investigador, que já chegou a publicar no conceituado New England Journal of Medicine

A partir do momento em que conseguem identificar um potencial biomarcador, a vantagem maior é prever o desenvolvimento da infeção e agir o mais rapidamente possível do ponto de vista terapêutico. “Imaginemos que um doente é diagnosticado com DPCO. Naquele momento nós conseguimos imediatamente saber se vai estar presente uma variante genética que predispõe, ou não, aos elementos da infeção. Se o risco for elevado, os profissionais de saúde podem monitorizar esse doente de uma forma mais intensiva.” E ao primeiro sinal podem intervir de forma que a infeção seja eliminada antes da formação das estruturas pulmonares que permitem a infeção crónica.

Apesar de o TRANS-CPA estudar um fungo muito particular, Agostinho acredita que é uma investigação com implicações transversais. “Pode ser interessante, no futuro, perceber que aquilo que identificamos aqui como um biomarcador, como algo terapêutico, pode também ser transversal a outro tipo de infeções”, diz o investigador. Por exemplo? “Pode ser que saiam daqui informações relevantes para a aspergilose alérgica. É muito comum para pessoas que têm asma, ou fibrose quística, mais rara. E há pessoas que têm patologias alérgicas muito severas na inalação destes esporos, que é uma inalação diária, contínua.”

Dessa forma, Agostinho Carvalho e os colegas estão convictos que poderão melhorar a qualidade de vida não só das pessoas que padecem de aspergilose, diminuindo ainda o risco de morte, como também a de milhões de pessoas no mundo que sofrem de infeções por fungos, sobretudo do foro respiratório.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto TRANS-CPA: Como evitar e melhorar o tratamento de infeções respiratórias?, liderado por Agostinho Carvalho, do ICVS (Universidade do Minho), foi um dos 25 selecionados (dez em Portugal) – entre 785 candidaturas – para financiamento pela Fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2018 do Concurso HealthResearch. O investigador recebeu um milhão de euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. O concurso chama-se agora CaixaResearch de Investigação em Saúde e as candidaturas para a edição de 2022 encerram a 25 de novembro.