Em francês, pode dizer-se débâcle. Em inglês, pode dizer-se catastrophe. Em português, pode dizer-se hecatombe. No fundo, independentemente da expressão escolhida, todas as línguas do mundo podem encontrar uma palavra pertinente para explicar o que aconteceu em Old Trafford, no passado domingo, quando o Manchester United foi goleado, humilhado e anulado pelo Liverpool.
Ainda assim, confirmou-se o cenário que tinha transpirado logo após o apito final: as ondas de choque foram maioritariamente externas e não internas, com Ole Gunnar Solskjaer a manter-se no comando da equipa depois de uma reunião decisiva da cúpula do clube logo no início da semana. Apoiado por Alex Ferguson e pela maioria dos elementos da direção do Manchester United, o treinador norueguês voltou a resistir, viu a confiança ser renovada por pelo menos mais um jogo e sobreviveu às notícias de que Antonio Conte estaria disponível para assumir os red devils.
O problema era que, já este sábado, o desafio de Solskjaer não era menor. Em Londres, contra o Tottenham de Nuno Espírito Santo, o Manchester United tinha de vencer para inverter uma série de quatro jornadas sem ganhar na Premier League e não perder mais pontos para os principais rivais. Já o treinador, a título individual, tinha de vencer para continuar a ter trabalho — ainda que não esperasse que esses três pontos lhe dessem garantias.
“Tenho falado com a direção e não estou à espera de garantias de nada. Quando há uma exibição daquelas e uma série como aquela em que nós estamos, não fico à espera disso. O meu trabalho é colocar as coisas a funcionar e é isso que estou a tentar fazer. Não estou aqui para pedir garantias (…) Aquele jogo foi como se nós fôssemos um pugilista bêbedo a levar socos, a ficar KO nos primeiros quatro minutos, logo no primeiro round. Sofremos um golo, quisemos responder e abrimo-nos muito. É extraordinário como o Tyson Fury, por exemplo, mantém a compostura depois de ir ao chão umas vezes. Conta até seis ou oito e está pronto para lutar outra vez. É aí que as nossas mentalidades têm de ser melhores”, explicou Solskjaer na antevisão da visita ao Tottenham, utilizando uma curiosa analogia com o pugilista britânico, natural de Manchester, que já foi campeão do mundo de pesos-pesados.
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Ora, contra o Tottenham e para não voltar a levar socos como um pugilista bêbedo, Solskjaer protegeu-se. Pela primeira vez em quase um ano, o Manchester United atuava com três centrais — Lindelöf, Varane e Harry Maguire eram todos titulares, com o francês a voltar de lesão. McTominay rendia Pogba no meio-campo, já que o médio cumpria castigo depois de ter sido expulso contra o Liverpool, e Cavani surgia no onze inicial à frente de Bruno Fernandes e perto de Cristiano Ronaldo, com Sancho, Greenwood e Rashford a começarem todos no banco. Do outro lado e depois de uma derrota com o West Ham na última jornada, Nuno Espírito Santo fazia apenas duas alterações e trocava Reguilón e Ndombele por Ben Davies e Lo Celso.
Os primeiros instantes da partida permitiram perceber desde logo qual era o objetivo de Solskjaer ao lançar Cavani: com Ronaldo a recuar muito pouco para defender, era o uruguaio quem desempenhava esse papel e procurava tapar Højbjerg, com o Manchester United a atuar num quase 3x5x1 sem bola. A primeira parte desenrolou-se de forma viva e desamarrada mas era notório que ambas as equipas tentavam proteger-se e apresentar-se com algumas cautelas, explorando as debilidades adversárias a pouco e pouco e tentando aproveitá-las para chegar com perigo ao último terço.
O Tottenham teve a primeira oportunidade do jogo, com Lucas Moura a isolar Son na grande área e o sul-coreano a atirar por cima já em desequilíbrio e na cara de De Gea (24′). O Manchester United respondeu com um cabeceamento ao lado de Cavani (25′), na sequência de um cruzamento de Bruno Fernandes, e a partida abriu definitivamente a partir desse momento. Os spurs colocaram a bola dentro da baliza por intermédio de Romero, que marcou ao segundo poste depois de um desvio de Eric Dier após um canto na esquerda (28′), mas o lance acabou anulado por fora de jogo do central. Escassos minutos depois, foi a vez de Fred atirar com muita força de fora de área, para Lloris afastar (33′), mas acabou por ser o nome inevitável a abrir o marcador ainda antes do intervalo.
Numa jogada de enorme insistência por parte dos red devils, Bruno Fernandes tirou um passe perfeito a partir da esquerda, ainda muito longe da grande área, e encontrou Ronaldo a fugir na direita, com o avançado português a atirar cruzado, de primeira e sem deixar a bola cair para bater Lloris (39′). Até ao fim da primeira parte, Lo Celso ainda ficou perto do empate, ao rematar de longe e por cima da trave (44′), mas o Manchester United foi mesmo para o intervalo a vencer e a respirar com algum alívio.
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Na segunda parte, sem que nenhum dos treinadores fizesse qualquer alteração, Son voltou a ter a primeira oportunidade com um remate à entrada da grande área que passou ao lado (47′). Logo depois, porém, o Manchester United respondeu com muito perigo: McTominay soltou-se no meio-campo e isolou Cristiano Ronaldo, que atirou em força para voltar a colocar a bola no fundo da baliza mas foi apanhado em fora de jogo (48′). O jogo encaixou novamente com o avançar dos minutos e o Tottenham, apesar de ter mais bola e de jogar durante muito tempo no meio-campo adversário, não conseguia construir ocasiões nem chegar perto do último terço, permanecendo sem remates enquadrados.
Assim, Nuno Espírito Santo decidiu mexer ainda antes da hora de jogo e tirou Lucas Moura para lançar Bergwijn e tentar soltar Harry Kane, que estava totalmente fixo e perdido entre os três centrais do Manchester United e ainda não tinha tido qualquer influência na movimentação ofensiva da equipa. A eficácia dos red devils, porém, anulou qualquer tipo de tentativa do treinador português: Bruno Fernandes recuperou a bola no meio-campo, temporizou até à chegada de Cristiano Ronaldo e o avançado fintou Skipp para isolar Cavani, com o uruguaio a finalizar de forma sublime à saída de Lloris (64′). A cerca de 25 minutos do fim, a equipa de Solskjaer aumentava o balão de oxigénio, dava um quase golpe de misericórdia ao Tottenham e ficava ainda mais perto da vitória.
Espírito Santo respondeu com as entradas de Ndombele e Dele Alli para os lugares de Skipp e Lo Celso e Solskjaer também mexeu ao lançar Rashford e Matic para tirar Ronaldo e Bruno Fernandes. Contudo, até ao fim, já pouco aconteceu. O Tottenham manteve-se praticamente inofensivo e sem conseguir criar oportunidades, numa exibição para lá de pobre em que saltou principalmente à vista o total apagão de Harry Kane, e o Manchester United voltou às vitórias depois de quatro jornadas sem ganhar para a Premier League, com Rashford a fechar as contas com o terceiro golo (86′). Depois de reconhecer que a equipa pareceu um “pugilista bêbedo” contra o Liverpool, Solskjaer mostrou que ainda tem vidas, soluções e alternativas e acertou em cheio na aposta nos três centrais e na titularidade de Cavani. E, com um golo e uma assistência de Cristiano Ronaldo, soube vencer por KO.
Bouncing back with a big ????.
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