O caso ocorreu no sul de Itália e está a atrair a atenção mediática internacional: o bispo católico Giacomo Cirulli, líder das dioceses de Teano-Calvi e Alife-Caiazzo, na região da Campania, proibiu os padres que recusam ser vacinados contra a Covid-19 de distribuir a comunhão aos fiéis. O objetivo é impedir que padres não-vacinados contribuam para a difusão do coronavírus durante a distribuição de hóstias nas missas — um problema que, segundo explicaram várias fontes da Igreja Católica ao Observador, não se está a colocar nas dioceses portuguesas.
Numa altura em que a variante Ómicron não dá tréguas e Itália atravessa um novo pico da pandemia — que levou nos últimos dias o país a ultrapassar a barreira dos 200 mil casos novos em 24 horas —, também as igrejas estão a voltar a impor várias medidas de combate à disseminação do vírus, limitando a lotação dos templos, suspendendo as atividades paralelas como a catequese e mantendo o uso de máscara durante a missa.
Na região de Nápoles, este bispo católico foi mais longe. Todos os padres, frades, freiras e outros leigos que colaborem habitualmente na distribuição das hóstias têm obrigatoriamente de estar vacinados contra a Covid-19. Aqueles que não estiverem imunizados ficam expressamente proibidos de o fazer.
A distribuição da comunhão é, efetivamente, o ato de maior risco de contágio durante uma missa, uma vez que a partícula de pão é distribuída aos fiéis pelo sacerdote com a própria mão e, muitas vezes, colocada diretamente na língua do fiel. Durante a pandemia, a hierarquia eclesiástica em vários países, incluindo em Itália e Portugal, tem recomendado que os padres adotem especial cautela nestes momentos: devem desinfetar as mãos imediatamente antes de distribuir a comunhão, manter a máscara posta e colocar a hóstia na mão do fiel (e não na boca). Depois, o fiel deve dar alguns passos para o lado e só aí baixar a máscara e comungar.
Estas orientações têm sido genericamente bem acolhidas nas comunidades católicas, à exceção de alguns grupos conservadores e tradicionalistas, que defendem que a comunhão na boca é a forma mais válida — sob os argumentos de que esta forma evita perdas de partículas, reduz a possibilidade de a hóstia ser roubada para rituais profanos e impede que a hóstia seja tocada por quem não recebeu o sacramento da ordem. Esta discórdia causou, nos primeiros meses da pandemia, um debate aceso entre as fações ultraconservadoras da Igreja, a hierarquia eclesiástica e o próprio Vaticano.
O bispo Giacomo Cirulli veio agora sublinhar que, além de todas estas regras, os não-vacinados não podem realizar a distribuição da comunhão nas suas dioceses. Num documento citado pelo jornal Crux, Cirulli reconhece que a pandemia está “a piorar constantemente e gravemente”, pelo que os fiéis devem respeitar as normas já conhecidas. No mesmo texto, Cirulli anunciou a sua decisão de “proibir a distribuição da Eucaristia por padres, diáconos, religiosos e leigos que não estão vacinados“.
Cirulli recorreu às palavras do Papa Francisco para defender a decisão, lembrando uma intervenção em que o líder da Igreja classificou, em agosto do ano passado, a vacinação como um “ato de amor“.
A controvérsia gerada em torno da decisão levou o bispo italiano a ter de emitir um novo comunicado sobre o caso, defendendo que “o respeito e a proteção da vida” obrigam, “neste momento da história”, a “questionar as escolhas de cada um“. Cirulli disse ainda que a vacina é uma medida que pretende proteger os mais frágeis da sociedade — e lembrou que há “um número crescente de casos em hospitais por toda a Itália” a “testemunhar” essa necessidade.
Problema não tem expressão em Portugal
Ao contrário do que sucede naquela região italiana, o problema do negacionismo da vacina não está a atingir a Igreja Católica portuguesa de modo expressivo, segundo foi possível ao Observador perceber junto de cinco elementos da hierarquia eclesiástica nacional. No que toca à própria hierarquia, não têm restado dúvidas quanto ao apoio dos bispos à vacinação. Como o Observador explicava pormenorizadamente em agosto do ano passado, em Portugal as religiões são unânimes quanto à não existência de qualquer motivo religioso para recusar a vacina.
Dentro da Igreja Católica, a hierarquia tem repetido os apelos à vacinação, que o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP, organismo que reúne todos os bispos católicos do país) já classificou como “um grande feito científico e uma esperança para uma normalização da vida social e económica“.
Esta terça-feira, o Conselho Permanente da CEP, organismo executivo que se reúne mensalmente, publicou um comunicado apelando “à importância da vacinação para todos os cidadãos contra a Covid-19 e ao cuidado reforçado em relação às medidas de proteção nos espaços litúrgicos“. À saída da reunião do Conselho Permanente, o porta-voz da CEP, o padre Manuel Barbosa disse ao Observador não ter conhecimento de qualquer caso de sacerdote que tenha apelado publicamente à não-vacinação ou recusado a vacina.
“A recomendação é a de sempre, a de que todos se vacinem, sejam padres ou não“, disse Manuel Barbosa. “Reiteramos que todos se devem vacinar.”
O sacerdote explicou que, apesar de não haver conhecimento de nenhum caso polémico, não nega a possibilidade “de existir uma pessoa ou outra que seja negacionista”, mas insistiu que não chegou aos bispos portugueses nenhuma situação controversa, pelo que a CEP não sentiu a necessidade de emitir orientações específicas para padres nem de emitir qualquer proibição destinada a padres não-vacinados.
Uma ronda de contactos feita pelo Observador junto de membros da Igreja Católica em vários pontos do país confirma o cenário.
“Não tenho conhecimento de nenhum sacerdote que seja negacionista ou que não tenha querido vacinar-se”, diz o padre Paulo Terroso, reitor da Basílica dos Congregados, na cidade de Braga, e diretor de comunicação da arquidiocese bracarense, sublinhando que, se há polémica, é no sentido oposto. “Se bem se lembra, até houve uma polémica no início da vacinação, com alguns padres que se disse que até teriam ultrapassado a fila. Eu próprio fui vacinado no início, porque sou diretor de um lar e recebemos a indicação de que toda a direção deveria ser vacinada.”
Paulo Terroso reconhece que não pode “dizer a 100%” que não houve nenhum padre a recusar a vacina, mas garantiu que “não há qualquer registo, indicação ou queixa”, pelo que a arquidiocese de Braga nunca necessitou de fazer qualquer comunicação dirigida aos padres para assegurar a vacinação. O sacerdote associa esta adesão unânime à vacina à cultura portuguesa, historicamente defensora das vacinas. “Eu sou de uma geração em que para entrar na escola era necessário ter vacinas“, diz ao Observador, lembrando que ouviu pela primeira vez falar de “anti-vacinas” quando estudou em Itália e assistiu a discussões éticas sobre um assunto que, em Portugal, não se discutia.
“Tenho, isso sim, conhecimento de alguns fiéis que não se quiseram vacinar. Uns porque acham que a Covid não é assim tão grave, outros por razões filosóficas e políticas, porque acham que o Estado não tem nada a ver com a decisão”, acrescenta Paulo Terroso, lembrando que houve também uma minoria de oponentes à vacinação associada a grupos mais conservadores, que são “barulhentos nas redes sociais, mas uma minoria“.
Na diocese de Bragança-Miranda, o cenário é semelhante. “O clero e todos os agentes pastorais aceitaram, desde o primeiro momento, a administração das vacinas contra a Covid-19. Assim sendo, não existe qualquer orientação interna”, disse ao Observador fonte oficial da diocese, lembrando que têm sido seguidas todas as recomendações da Direção-Geral da Saúde (DGS) e da CEP nas celebrações.
O mesmo se regista na diocese de Leiria-Fátima, liderada pelo cardeal D. António Marto, que tem sido um defensor das medidas de contenção — e até causou irritação entre os mais conservadores quando rejeitou as críticas à comunhão na mão, argumentando que “Jesus disse ‘tomai e comei’, não disse ‘abri a boca’“. “A Diocese nunca achou necessário a publicação de instruções internas nesse capítulo”, disse ao Observador fonte oficial do gabinete de António Marto, lembrando que não houve conhecimento de “situações delicadas nesse campo, nem da parte dos padres nem da parte das comunidades“.
Também no Patriarcado de Lisboa, liderado pelo cardeal D. Manuel Clemente, se verifica uma situação semelhante. Segundo fonte do patriarcado, o cardeal não necessitou de emitir qualquer instrução interna sobre a vacinação destinada aos padres, uma vez que a adesão à vacina foi geral.
Ainda assim, várias eclesiásticas, pedindo ao Observador que não fossem identificadas, apontaram a existência de alguns casos pontuais de sacerdotes portugueses que têm mantido posições de grande ceticismo quanto à pandemia, designadamente questionando a profundidade das restrições à liberdade religiosa, o uso de máscaras nas missas, o problema da comunhão na mão e, em casos limite, até recusando vacinar-se. Porém, em todos estes casos terá bastado uma intervenção informal do bispo respetivo para serenar a situação — que em nenhum caso se traduziu em qualquer tensão nas comunidades ou paróquias.
Um bispo português disse ao Observador que vários dos casos de “negacionismo” registados entre o clero católico na fase inicial da pandemia acabariam por se dissipar quando os próprios foram infetados ou através de mais informação sobre a gravidade da doença. Várias fontes da Igreja estabeleceram a mesma ligação entre a maior prevalência da recusa da vacina e do negacionismo da Covid-19 e os grupos tradicionalistas e conservadores.
Num caso mais moderado, basta recordar o caso do padre Mário Rui Leal Pedras, da paróquia de São Nicolau — a paróquia de Lisboa onde ainda se celebram diariamente missas em latim segundo o rito antigo —, que em outubro do ano passado acusou o Governo de discriminar as celebrações religiosas. Num caso muito mais extremo, regista-se o caso do padre Samuel Bon, um dos líderes do movimento cismático FSSPX em Portugal, que em dezembro de 2020 apelou diretamente aos fiéis para que não recebessem a vacina. A FSSPX é um movimento desvinculado da Igreja Católica, uma vez que não reconhece o Concílio Vaticano II e, por conseguinte, a autoridade do Papa — e não responde perante a Conferência Episcopal.
Bispo canadiano polémico por ordenar vacina de padres
A decisão do bispo italiano de proibir os padres não-vacinados de distribuir a comunhão não parece vir a ter réplica no cenário português — mas não é inédita. Em julho do ano passado, um bispo canadiano foi mais longe e determinou que todos os padres da diocese de Hamilton deviam ser vacinados, sob pena de verem as suas funções limitadas.
“Embora as vacinas não sejam, neste momento, obrigatórias, o Papa Francisco lembra-nos de que há um imperativo moral de que todas as pessoas sejam vacinadas de modo a evitar a potencial infeção e a disseminação da Covid-19 e das suas variantes”, escreveu o bispo Douglas Crosby numa carta aos membros do seu clero. “Quem não receber a vacina poderá ver-se limitado no seu ministério. Por exemplo, poderão não ser autorizados a entrar em instalações de saúde (hospitais e lares) e escolas.”
“De modo a que todos os membros do clero possam levar a cabo de modo eficaz os seus ministérios, incluindo a celebração da missa e de outros sacramentos, é imperativo que sejam completamente vacinados“, continuou o bispo.
Na altura, a carta do bispo causou grande polémica, sobretudo entre o setor ultraconservador da Igreja Católica. O portal LifeSiteNews, um dos principais meios de comunicação associados à fação tradicionalista da Igreja, criticou o bispo por estar a obrigar padres a serem vacinados com um produto ligado a abortos — motivo pelo qual se trata de um ato anti-ético. A polémica relação entre o desenvolvimento de vacinas e o recurso a fetos abortados é uma controvérsia ética antiga, que ressuscitou agora durante a pandemia, mas o Vaticano já se pronunciou sobre o caso, determinando que é moralmente aceitável receber essas vacinas quando não há alternativa.