À primeira vista, até parece uma ilustração que poderia estar em qualquer consultório médico — mas não. Se assim fosse, a imagem de uma mulher grávida e de um feto não se teria tornado um caso popular na internet, no passado mês de dezembro, por uma mera diferença: a cor de pele.
Muitos utilizadores das redes sociais comentaram que nunca tinham visto um desenho de um feto negro numa mãe negra, já que em geral as representações são sempre de pessoas brancas. Mais: muitos nem sequer se tinham apercebido disso. Agora, outras ilustrações do criador dessa imagem vão fazer parte da segunda edição do livro “Mind the Gap”, um manual clínico sobre sinais e sintomas comuns em doenças de pele nas pessoas negras.
O autor é o nigeriano Chidiebere Ibe, de 25 anos, um estudante de medicina à distância na Universidade Médica de Kiev na Ucrânia, que começou a desenhar na pandemia. Ele viu o que muitos nunca viram e interrogou-se: porque é que são sempre figuras caucasianas nos livros médicos?
Autodidata, diretor criativo da Associação dos Futuros Neurocirurgiões Africanos, escolheu ilustrar pessoas de pele negra, desenhos que sempre foram apreciados, mas nenhum fez o sucesso global do bebé dentro da mãe. Colocou a ilustração no Twitter e no Instagram a 24 de novembro e rapidamente captou a atenção: já foi partilhada mais de 2.515 vezes e recebeu 106 mil gostos.
Não foi a primeira vez que Ibe falou do seu trabalho. Já em junho lançara um crowdfunding no Youtube chamado Chidi to Kyiv onde explicava o seu projeto. Ultrapassou em muito o seu alvo: recolheu cerca de 30 mil euros quando pedira 18,400 euros. O financiamento é para a sua formação médica e para continuar a promoção da diversidade nos manuais clínicos.
https://www.youtube.com/watch?v=YgCZWH_Us0A
Com o seu trabalho, Ibe quer “defender a diversidade nas ilustrações médicas”, disse à CNN. É que mesmo no seu país, a Nigéria, as imagens de pele branca dominam a literatura médica. E isso não é apenas um detalhe que pode interessar ao discurso da não discriminação racial ou à tendência do politicamente correto. É que há doenças de pele, por exemplo, que têm uma aparência diferente numa pessoa de pele clara ou escura.
Aliás Jenna Lester, professora de dermatologia e diretora do programa Skin of Color da Universidade da Califórnia, conta que quando era estudante um professor explicou numa aula que uma determinada doença poderia aparecer de forma diferente nas peles negras, mas não mostrou como. Está “agradecida” pelas pessoas começarem a admitir que a falta de representatividade da diversidade nos manuais médicos é “um grande problema”.
É essa lacuna que que Ibe quer mudar e para isso pretende criar uma rede de ilustradores médicos africanos.
Quero que seja regra que, sempre que uma pessoa pesquisar por uma condição de pele específica, um problema de saúde específico, os primeiros pop-ups sejam ilustrações negras ou ilustrações de pessoas de cor”, assumiu o também diretor criativo da Association of Future African Neurosurgeons.
Já em dezembro manifestara a intenção de “mostrar a beleza dos negros”, ao HuffPost UK, quando se mostrou surpreendido por tamanho sucesso do desenho do feto: “Sinceramente, eu não estava à esperava. [A imagem] viralizou e tocou muita gente”. E se admitiu que “é importante [ter negros nas ilustrações] porque as pessoas se querem ver na literatura médica”, foi mais longe. “Não precisamos apenas de mais representações como esta—precisamos de mais pessoas dispostas a criar uma representação como esta”.
O coautor do livro Malone Mukwende destacou também à CNN que a representatividade na área da saúde “é imperativa” para evitar que se cultivem preconceitos. Jenna Lester vê outro alcance nesta luta: acredita que exemplos como os deste ilustrador nigeriano podem ser uma inspiração para os jovens sub-representados entrarem no mundo da ciência.
Os desenhos de Ib — pode ver alguns na fotogaleria do Observador — que apresentam patologias e procedimentos médicos, trouxeram pois à tona o debate sobre a ausência de pessoas negras em revistas científicas.
A falta de representatividade nas ilustrações médicas prova que o racismo sistemático existe?
“Historicamente, as ilustrações médicas sempre foram predominantemente brancas e centradas no homem”, constatou Ni-ka Ford, presidente do comité de diversidade da Associação de Ilustradores Médicos (AMI, na sigla em inglês), à NBC News, quando a polémica estalou.
Um estudo da Universidade de Wollongong, na Austrália, de 2014, analisou o preconceito baseado no género em 17 livros de anatomia, examinando mais de 6.000 imagens com sexo identificável publicadas entre 2008 e 2013. Concluiu que a grande maioria era branca, pouco mais de um terço era mulher, cerca de 3% apresentavam corpos deficientes e 2% eram pessoas idosas. Já outro estudo da Universidade da Pensilvânia descobriu que apenas 4,5% das imagens em livros de medicina geral retratavam pele escura.
Ni-ka Ford caraterizou este cenário como uma extensão do racismo médico, garantindo que as ilustrações médicas são “material de educação visual” para os médicos,enfermeiros e restantes profissionais de saúde. “Isto literalmente afeta a saúde do paciente no final do dia”, sublinhou, já que mais diversidade nas imagens aumentaria a confiança, a honestidade e a empatia de quem cuida para quem recebe os cuidados.
Há investigações, citadas pela CNN, que comprovam que os pacientes negros estão mais suscetíveis de sofrer preconceito e serem diagnosticados erradamente para certas doenças. Outra investigação mostrou que uma parcela substancial de estudantes de medicina brancos têm noções falsas sobre as diferenças biológicas entre negros e brancos, o que pode levar ao preconceito racial relativamente à forma como aa dor é compreendida e tratada.
Também a pandemia de Covid-19 revelou que o racismo médico está enraizado até nos equipamentos médicos. Em novembro, a Associated Press noticiou que o departamento de estatísticas da Grã-Bretanha descobriu que no primeiro ano da pandemia, até março de 2021, negros e sul-asiáticos no Reino Unido tiveram taxas de mortalidade mais altas do que seus compatriotas brancos, mesmo depois de fatores como ocupação e condições de saúde subjacentes terem sido levados em consideração. Uma das causas estaria nos oxímetros de pulso, que medem os níveis de oxigénio no sangue através da pele: funcionam menos bem em peles mais escuras.
Por isto (e muito mais) o “Mind the Gap”quer tornar-se “um modelo para o mundo”, nas palavras de Mukwende. Pelo seu lado, Ibe pretende continuar a desenhar, mesmo depois de acabar o curso (prevê ir para Kiev ter aulas presenciais no próximo ano). O sucesso do desenho do feto negro nas redes sociais já lhe abriu outras portas: não só terá algumas das ilustrações publicadas, como conseguiu financiamento para fazer um doutoramento nos Estados Unidos.