Foi há dez anos, mas ainda se lembra. Carolina Brito Lobato entrou no Teatro Nacional São João, no Porto, para assistir à peça O Ano do Pensamento Mágico e não saiu a mesma. Voltou para a rever na mesma semana. Interpretada por Eunice Muñoz e adaptada a partir da obra com o mesmo nome, de Joan Didion (1934-2021), começa com a mesma frase do livro: “Num instante muda tudo. Sentamo-nos para jantar e a vida, tal como a conhecemos, acaba.”

O poderoso relato – biográfico e visceral – é uma porta escancarada para a dolorosa experiência da doença, da morte e da perda daqueles que são mais amados. E marcou a identidade de uma Carolina ainda adolescente, com vontade de mudar o mundo e de, nas suas palavras, “ser útil aos outros”.

Com a pesquisa que pretende levar a cabo, Carolina vai tentar ajudar a resolver um mistério antigo: porque é que algumas pessoas que submetidas a uma cirurgia bariátrica sofrem hipoglicemias – descidas acentuadas no açúcar no sangue – depois da operação?

Foram anos de dúvida, os da adolescência. A médica e investigadora, hoje com 25 anos, sabia que era nas ciências, possivelmente na investigação, que estava o seu caminho. Pensou em seguir Engenharia Biomédica, Biologia ou Medicina Veterinária. “Mas ser médica – tratar pessoas – era uma coisa que me fazia alguma confusão. Achava que não iria ser capaz de lidar com o drama da vida humana.” (Que é como quem diz, com o dia em que alguém se senta para jantar e a vida, como a conhece, acaba.) Depois pensou que era egoísmo, essa incapacidade. “Achei que iria conseguir chegar a mais pessoas, direta e indiretamente, se escolhesse Medicina.” Não se arrepende. Terminado o curso, admite que é uma responsabilidade “acompanhar as pessoas na sua maior fragilidade”, mas também se sente recompensada pela potencialidade de as ajudar a sentirem-se melhor.

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Não desistiu da investigação, porém. Por um lado, num percurso ainda invulgar em Portugal, fê-la ao longo de todo o curso, numa conciliação nem sempre fácil com as aulas no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS). Agora, terminado o internato de formação geral no Centro Hospital Universitário do Porto, dedicou-se a tempo inteiro à investigação, pelo menos temporariamente.

Carolina partiu para Copenhaga a 1 de janeiro deste ano. É ali, na capital dinamarquesa, que nos próximos três anos fará o doutoramento financiado pela Fundação “la Caixa” e pela Danish Diabetes Academy (DDA). Com a pesquisa que pretende levar a cabo, Carolina vai tentar ajudar a resolver um mistério antigo: porque é que algumas pessoas que são submetidas a uma cirurgia bariátrica (a intervenção que tem como finalidade limitar a capacidade de ingestão e/ou de alterar o processo de digestão e absorção de alimentos) sofrem hipoglicemias – descidas acentuadas no açúcar no sangue – depois da operação?

A Covid-19 veio mostrar-se uma adversária à altura, mas a obesidade pode ser considerada a epidemia do século XXI: neste momento, mais de 50% da população portuguesa tem excesso de peso ou obesidade.”

A cirurgia da obesidade ou bariátrica – também conhecida como cirurgia metabólica, porque regula outras patologias como a diabetes e a hipertensão – é uma terapêutica eficaz para um grupo selecionado de doentes que, sem sucesso, já tentou perder peso ao longo de anos. “A cirurgia é a única terapêutica eficaz a longo prazo para doentes com superobesidade, ou seja, com um Índice de Massa Corporal (IMC) acima de 45. Permite a perda de peso, uma melhoria metabólica a longo prazo e até uma redução da mortalidade.”

No entanto, há um “mas”. Todas as intervenções médicas (farmacológicas ou cirúrgicas) têm riscos e a cirurgia bariátrica não é exceção. Há vários tipos de procedimentos, mas todos eles implicam uma reorganização do tubo digestivo, de forma a alterar a ingestão, digestão ou absorção de alimentos. “Ao mexer no tubo digestivo, estamos a alterar dinâmicas endócrinas de hormonas que são produzidas ao longo do tracto gastrointestinal e, como estas cirurgias estão a ser aplicadas agora em grande número, têm surgido alguns doentes com hipoglicemias após estas intervenções.”

“Em que é que isto consiste?” A investigadora faz a pergunta e dá a resposta logo a seguir: “Não se sabe muito bem.” Os médicos começaram a identificar doentes que, após as refeições, tinham sintomas bastante inespecíficos. Alguns até desmaiavam. “E iam ver os níveis de açúcar e estavam muito baixos, o que resulta, aparentemente, de uma hipersecreção de insulina em resposta à refeição.”

A cirurgia da obesidade ou bariátrica é uma terapêutica eficaz para alguns doentes que já tentaram perder peso ao longo de anos. Carolina Lobato quer ajudar a melhorar a qualidade de vida desses pacientes, tentando perceber por que estão mais suscetíveis à hipoglicémia. “Ao compreender como é que isto se processa, é possível explorar esse mecanismo para novos fármacos antidiabéticos”

Consoante a composição da refeição – que os médicos e investigadores consideram que deverá ser um dos mecanismos principais envolvidos – poderá haver uma hiperestimulação das hormonas gastrointestinais – e outros fatores que espera vir a descodificar – que resultam numa grande secreção de insulina em resposta à refeição.

“Isso é, de certa forma, o que pretendemos para tratar indivíduos diabéticos, porque ao conseguir aumentar a secreção natural de insulina estamos a melhorar o seu controlo glicémico. O problema é que depois temos estes pacientes que parecem ter uma reação extrema. E depois da secreção excessiva de insulina, vem uma queda exagerada da glicose”, explica. Os sintomas podem ser ligeiros, como fome, tremores ou dor de cabeça, mas também podem ser exuberantes, com desmaios e cansaço extremo, sendo muito incapacitantes.

Este é o mistério que Carolina quer ajudar a resolver no seu doutoramento. Os objetivos são dois. O primeiro é ajudar a melhorar a qualidade de vida destes doentes, tentando perceber porque é que estão mais suscetíveis a desenvolver esta condição e como se pode reduzi-la. Depois, refere, “ao compreender como é que isto se processa, é possível vir a explorar esse mecanismo para novos fármacos antidiabéticos.” Para isso, vai reunir um conjunto de doentes em vários centros europeus, nomeadamente em Londres e Copenhaga, e caracterizá-los bem, para entender, por exemplo, os factores de risco que podem ser identificados antes da cirurgia.

De momento estamos no escuro: uns estudos dizem que são mais as mulheres, outros mais os homens; uns referem que são sobretudo os jovens, outros os mais velhos. Há resultados muito discordantes.”

A esperança é que Carolina tenha tanto sucesso no seu doutoramento quanto teve na dissertação de mestrado: 20 valores. Como é que se faz isso? Com a modéstia que a caracteriza, refere “os que apontaram o caminho e ajudaram”: os investigadores que a motivaram e abriram portas, os professores que flexibilizaram o seu horário de aulas para as compatibilizar com as responsabilidades de investigação, a família que apoiou os verões que passou em Copenhaga, em estágios, em detrimento da presença nas férias. Depois – não sem alguma resistência – reconhece também o seu papel: as horas extra para conciliar aulas e investigação, a dedicação, o empenho, as noites sem dormir. “Mas gosto de pensar que quem corre por gosto cansa pouco: por cada noitada investida fui uma pessoa mais feliz, mais motivada e com mais energia.”

Carolina vai ter saudades do Porto. Foi a cidade em que nasceu e cresceu e o seu ADN está, literalmente, gravado naquelas paredes. Às vezes passa por um prédio e não consegue evitar um sorriso: o seu avô desenhava azulejos e há muitas fachadas na cidade que saíram das mãos e imaginação do artista. Apesar disso, sente que será feliz na Dinamarca. “Mais do que os monumentos históricos, lagos e boas pastelarias, o que acho extraordinário é a gestão trabalho-família que os dinamarqueses fazem e a forma como conseguem encontrar felicidade em coisas pequenas, como um raio de sol no meio de uma semana cinzenta.”

Carolina partiu para Copenhaga a 1 de janeiro deste ano. É ali, na capital dinamarquesa, que nos próximos três anos fará o doutoramento financiado pela Fundação “la Caixa” e pela Danish Diabetes Academy

Tem a expectativa que, daqui a três anos, possa ter respostas para as suas perguntas de investigação e que estas possam melhorar a vida dos doentes. Mas também sabe que a resposta a uma pergunta não resolve tudo. “A minha curta experiência diz-me que, no fim, vou ter mais perguntas.” E isso leva à questão das perguntas e respostas sobre o seu próprio caminho. Por exemplo, se vai voltar a Portugal e retomar a formação em medicina ou se vai prosseguir uma carreira na investigação. “A investigação vai ser sempre uma parte importante na minha vida, mas não ponho de lado a possibilidade de voltar à clínica, até porque acho importante ter um contacto direto com o doente, que é onde tudo começa e acaba.”

A sensatez, porém diz-lhe que essa é uma pergunta que não pode ser respondida pela Carolina do presente, apenas pela Carolina do futuro. “A pessoa que eu sou hoje não é a pessoa que vou ser daqui a três anos: vou saber outras coisas, estar noutras culturas, conhecer outras pessoas.” Com trabalho – e alguma sorte – uma das coisas que irá saber é como melhorar a vida destes doentes.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. Carolina Brito Lobato, da Universidade do Porto, atualmente a desenvolver investigação na Universidade de Copenhaga, foi uma dos 120 selecionados (quatro em Portugal) – entre 1325 candidaturas internacionais – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2021 do Programa de Bolsas de Pós-Graduação no Estrangeiro. A investigadora recebeu 27 mil euros para desenvolver o projeto HypoBar: Unravelling Post-Bariatric Hypoglycaemia ao longo de três anos. As candidaturas para a edição de 2022 encerraram a 2 de fevereiro. Os prazos para a edição de 2023 abrem em novembro.